O gás natural ocupa hoje um papel central no debate energético brasileiro. O movimento do Governo Federal para reduzir preços e fomentar a reindustrialização é um sopro de renovação para o setor e pode mesmo reforçar a ideia, como escreveu Fernando Teixeirense, de que É a hora do gás natural na transição energética e econômica do país.
Mas, há temores de que esse momento seja ameaçado por políticas estaduais equivocadas que perpetuam ciclos econômicos insustentáveis — ciclos esses que podem, paradoxalmente, declarar a morte do gás natural no Brasil justamente em seu momento de maior destaque.
Os ciclos são naturais à dinâmica do mercado de gás e, no cenário estadual, as revisões tarifárias são os ciclos mais relevantes para definir se o gás natural terá sua hora ou seu fim. E aqui não há hipérbole, somente uma constatação do papel estrutural que esses processos regulatórios desempenham.
As tarifas de distribuição são periodicamente revisadas para atualizar a remuneração devida às concessionárias pela prestação do serviço de distribuição de gás, seja gás natural ou biometano.
O rito já é bem conhecido: processos regulatórios anuais ou quinquenais em que a remuneração da concessionária, chamada de margem de distribuição, é definida — sempre ex ante — com base nos custos previamente reconhecidos de capital e de operação da rede de gasodutos, considerada a depreciação, e na expectativa de demanda de gás do estado.
Nesse rito, a aprovação do regulador estadual e o crivo do poder concedente são mandatórios. A depender do modelo adotado no contrato de concessão, esses custos podem ser remunerados pelo método do custo do serviço ou pelo modelo Price Cap.
A transição do modelo do custo do serviço para modelos de remuneração mais eficientes representa mais um elemento relevante para o equilíbrio entre remuneração justa e tarifas módicas em algumas concessões brasileiras, e é também uma seara complexa que, não por acaso, vem sendo postergada para anos futuros.
Em resumo, a margem de distribuição resulta da razão entre o montante reconhecido para cobertura dos investimentos, custos operacionais e depreciação, e o volume de gás que a concessionária estima que distribuirá. Os termos dessa simples divisão podem definir se a concessão entrará num ciclo econômico virtuoso ou vicioso.
Em se tratando de um monopólio natural, a distribuição de gás canalizado deveria seguir um ciclo virtuoso. A lógica regulatória dessa organização de mercado deveria induzir à redução dos custos marginais com o ganho de escala da atividade.
A tendência seria de que, a cada ciclo tarifário, os custos para expandir as redes e atender a novos clientes fossem reduzidos frente à ampliação dos volumes distribuídos e, consequentemente, a margem de distribuição se mantivesse equilibrada. Ou seja: nova demanda, redes expandidas e tarifas módicas.
Infelizmente, essa não é a realidade. No país, a maior parte das concessões de gás canalizado têm flertado com os ciclos viciosos ao receberem o aval para praticar margens de distribuição cada vez maiores a cada revisão tarifária. E todos os anos os exemplos se repetem.
Em 2025, a primeira concessionária a ter seu processo regulatório de revisão tarifária concluído foi a distribuidora de Alagoas (Algás).
A margem de distribuição da concessionária subiu 40%, mais de 0,20 R$/m3, mantendo a tendência de elevação das margens nos últimos três anos. O curioso é que, hoje, a demanda no estado é cerca de 3/4 do que era há três anos.
No Rio Grande do Sul, a demanda da concessão também vem caindo. Segundo projeções da própria concessionária Sulgás, o mercado consumidor do estado deve encolher cerca de 6% neste ano, inclusive com perda de demanda no mercado industrial.
Apesar desse cenário, a proposta de reajuste tarifário colocada em consulta pública prevê um aumento na margem de distribuição superior a 20% — impulsionado por vultosos investimentos em instalação e operação de gasodutos, que, a cada ano, transportam volumes cada vez menores de gás.
Os casos de Alagoas e Rio Grande do Sul ilustram de forma clara a inversão da lógica do monopólio natural e sinalizam o início de ciclos viciosos para as concessões.
Ano após ano, os investimentos se elevam, mas sem a correspondente ampliação do mercado consumidor. Como resultado, a margem de distribuição aumenta e a oneração das tarifas para os consumidores se torna recorrente.
É preciso destacar que a alternativa para reverter esses ciclos viciosos não está em restringir a expansão ou direcionar os investimentos exclusivamente à captura de grandes demandas.
O verdadeiro desafio dos estados é conciliar, com prudência, os investimentos com a real perspectiva de crescimento do mercado. Caso contrário, as concessionárias continuarão investindo de forma desproporcional em segmentos com baixo potencial de retorno de demanda em troca da elevação dos custos.
Esse movimento acaba por aumentar o custo final do gás para todos os consumidores, impactando especialmente aqueles que consomem maiores volumes de gás — notadamente as indústrias.
O efeito para o mercado das concessionárias é uma discreta ampliação na demanda dos segmentos de menor consumo e uma importante redução nos grandes segmentos.
Exemplo disso é a situação da concessão da Comgás, em São Paulo. Nos últimos 10 anos, o mercado residencial teve sua demanda ampliada em pouco mais de 280 mil m3/dia, ao passo que o mercado industrial sofreu uma retração de quase 1,6 MM m3/dia.
Quando as concessões apresentam esses efeitos, um risco ainda maior se instala: os ciclos viciosos podem evoluir para ciclos fatais. Estes ocorrem quando grandes consumidores abandonam a concessão, reduzindo ainda mais o volume distribuído e pressionando a elevação das tarifas para os usuários remanescentes — é o chamado ciclo da morte do gás canalizado.
Em um contexto nacional em que o gás natural, apontado como combustível da transição, já enfrenta preços de molécula e transporte pouco competitivos, o aumento dos custos de distribuição torna-se motivo suficiente para que consumidores busquem alternativas energéticas mais baratas.
Para as indústrias, esse movimento não apenas afasta o gás natural como opção viável, mas também compromete os planos de descarbonização que poderiam incluir o biometano, tendo em vista que o energético renovável, complementar ao gás natural, poderia chegar aos consumidores por meio da mesma infraestrutura de distribuição.
Assim, os investimentos desmedidos e a inversão da lógica do monopólio natural na distribuição de gás no Brasil acabam por reverter também o sentido da transição energética, agravando os desafios ambientais e econômicos para os estados.
A estratégia nacional se direciona para o fortalecimento do mercado de gás, posicionado o gás natural como um energético para a transição e reindustrialização do país.
Esse esforço, entretanto, pode ser comprometido se não houver, nas esferas estaduais, uma gestão prudente sobre os investimentos das concessionárias, garantindo que sejam efetivamente orientados pela expansão sustentável da demanda.
Sem esse senso, as concessões irão se aprofundar em ciclos viciosos, comprometendo sua sustentabilidade econômica, a competitividade das indústrias e os próprios objetivos de descarbonização do país.
O futuro do mercado de gás no Brasil será definido, sobretudo, pela capacidade de conter essa dinâmica que transforma ciclos naturais em ciclos irreversíveis.
A hora da morte do gás natural não precisa ser declarada — ainda há tempo para mudar o rumo das concessões antes que os ciclos tarifários se tornem fatais. Essa decisão está, principalmente, nas mãos dos estados.
Letycia Pedroza é analista de Energia da ABRACE Energia, associação nacional que representa os grandes consumidores de energia elétrica e gás natural