RIO – O novo decreto regulamentador da Lei do Gás reforça a posição da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) no planejamento do setor, ao instituir o Plano Nacional Integrado das Infraestruturas de Gás Natural e Biometano.
Hoje, a estatal já publica planos de expansão para cada um dos elos da cadeia (transporte, escoamento e processamento, terminais de GNL). O que muda então?
Os estudos publicados pela EPE são, atualmente, meramente indicativos: cabe à iniciativa privada a decisão de investimento nos projetos mapeados.
O decreto, no entanto, muda os ritos e traz um papel mais ativo para o Estado não só no planejamento da expansão dessas infraestruturas, mas também na proposição de projetos aos agentes do mercado.
A intenção é que a EPE faça a integração de todos os seus planos e a coordenação das necessidades dos diversos agentes e, a partir daí, subsidie a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) no processo de outorga de novos projetos.
Como vai funcionar
A EPE indicará, por meio do Plano Nacional Integrado, as melhores alternativas de expansão das infraestruturas, analisadas de forma sistemática.
A ANP ofertará, então, a outorga da autorização para as instalações previstas no Plano para os investidores interessados, por meio de processo seletivo público para escolha do projeto mais vantajoso, considerados os aspectos técnicos e econômicos.
A estatal do planejamento energético, aliás, poderá realizar chamada pública visando estimar a demanda efetiva por serviços nas infraestruturas de todos os elos da cadeia do gás e identificar o potencial de oferta e de demanda de gás e de seus derivados.
Funcionará como principal referência para a ANP nas outorgas, mas o decreto abre espaço para exceções nesse rito. Um agente pode pedir autorização para um projeto não contemplado no plano, desde que ele tenha “compatibilidade com o planejamento setorial” e não prejudique o “uso eficiente e compartilhado das infraestruturas existentes”.
A EPE pode vir a ser requisitada a avaliar previamente o projeto, nesse caso. E a ANP poderá indeferir a solicitação de autorização caso, por exemplo, a infraestrutura se mostre potencialmente prejudicial ao uso eficiente das demais infraestruturas existentes; ou não seja necessária ao abastecimento nacional e gere impacto ao preço do consumidor.
O que o governo espera com o Plano?
A proposta do planejamento integrado está presente no relatório produzido pelo comitê técnico sobre o acesso ao mercado de gás natural, do programa Gás para Empregar.
Com o modelo de processos seletivos públicos para escolha dos projetos mais vantajosos, a intenção é que haja uma competição no mercado pelas autorizações propostas, com efeitos sobre a modicidade tarifária. O governo também entende que um plano integrado permite identificar ganhos de escala nos gasodutos de escoamento e UPGNs:
“A melhor alocação de investimento nas infraestruturas da rede de gás natural proporcionará um menor impacto no preço ao consumidor final, além de remover uma barreira à entrada de novos agentes”, cita o relatório.
O governo também espera que o Plano Nacional ajude a casar a oferta e demanda e, assim, destravar investimentos.
Um dos diagnósticos dos estudos do Gás para Empregar é que existe uma dificuldade de coordenação dos agentes do setor: falta um planejamento da ampliação da capacidade existente ou construção de novas infraestruturas; e falta coordenação entre produtores para construção de infraestruturas compartilhadas, por exemplo.
“Como resultado do planejamento integrado e coordenado, o investidor da infraestrutura terá maior previsibilidade de demanda por seus serviços, decorrente da produção de gás natural do cluster, proporcionando maior segurança de retorno para o investimento. Isso permitirá redução dos riscos ao investidor, ensejando uma remuneração justa, adequada e compatível com tais riscos”, cita o relatório.
O governo entende que o Plano Integrado garante também uma maior eficiência das infraestruturas – que não se limitarão mais a atender um agente ou de um campo e poderão ser dimensionadas para atender o potencial de determinado cluster.
“A escolha de cada alternativa não poderia ser relegada ao agente privado, que não tem a visão estratégica de todo o sistema de infraestrutura de gás natural do país e não tem o objetivo de buscar a economicidade do conjunto das infraestruturas”, argumenta o relatório.
Também espera-se mitigar riscos de descasamento de projetos. Uma experiência concreta vivida no mercado, nesse sentido, foi o atraso na entrega do Rota 3 e da UPGN do Polo Gaslub, que vão começar a operar mais de um ano e meio depois da conclusão do gasoduto Itaboraí-Guapimirim (Gasig), construído para movimentar o gás do Rota 3.
Experiência internacional: O desenho do novo planejamento estatal parte do estudo de experiências de países como Noruega, Reino Unido e EUA e de recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês).
A IEA chegou a apresentar em 2020, ainda no governo de Jair Bolsonaro, contribuições para o Novo Mercado de Gás que indicavam, dentre outros pontos, a necessidade do planejamento da rede de gás – uma realidade presente na Europa, onde, segundo a agência, há países onde o planejamento central envolve não apenas gasodutos, mas também o upstream e o downstream (terminais de GNL, instalações de armazenamentos subterrâneos, pontos de injeção de gás renovável etc).
O risco de um “Novo Pemat”
O Plano Nacional Integrado das Infraestruturas de Gás Natural e Biometano não é uma nova roupagem para o Plano Decenal de Expansão da Malha de Transporte Dutoviário (Pemat) – antiga publicação da EPE que indicava gasodutos para leilões de concessão.
Como o nome sugere, o novo plano é integrado, sem se limitar ao setor de transporte.
O Pemat era um rito obrigatório para a concessão de gasodutos de transporte do marco legal anterior. Acabou com o fim do próprio regime de concessão.
A Nova Lei do Gás, em 2021, retomou o regime de autorização, depois de mais uma década de experiência do modelo anterior, sem que tenha sido leiloado um único projeto.
Existe no mercado, contudo, uma desconfiança em torno do funcionamento do Plano Nacional Integrado.
O Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), que representa os produtores, manifestou preocupação com a centralização do planejamento na EPE, não mais de maneira apenas indicativa; e à nova posição da estatal, que “poderá definir quando e onde novas infraestruturas de escoamento e processamento deverão ser construídas”.
A Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres (Abrace) manifestou apoio ao decreto e destacou que, “ao organizar o mercado brasileiro de gás natural, preservando a transparência e a previsibilidade no acesso, com o objetivo de aumentar a oferta e a competitividade, todos ganham”.
O diretor de gás da Abrace, Adrianno Lorenzon, no entanto, cita que as experiências passadas com o planejamento centralizado da malha de gasodutos deixa lições aprendidas.
“O mais importante é não pecar pelo problema do Pemat, que era uma coisa mais burocrática e que efetivamente, ao invés de facilitar, travou novos investimentos”, disse, em entrevista à agência eixos.
O relatório do Gás para Empregar sugere que o Plano Nacional Integrado seja publicado periodicamente, a cada dois anos, com ampla participação social em diversos momentos.
O diretor sênior na Alvarez & Marsal, Rivaldo Moreira Neto, cita que o novo modelo de planejamento centralizado adiciona mais etapas no processo de outorga e traz o grande desafio de dar respostas rápidas ao mercado, sob o risco de ter um efeito contrário ao esperado, de ajudar a destravar investimentos.
“O decreto coloca a ANP ainda mais no centro da decisão de novos investimentos… Então, o desafio aqui é não deixar o processo de autorização ainda mais moroso para um setor que vai demandar cada vez mais agilidade na aprovação de investimentos”, disse.
“Porque há uma competição por capital com várias outras praças do mundo, pelo investimento das empresas de petróleo, e eu tenho a pressão da transição energética, enfim, eu preciso cada vez mais ser rápido e eficiente na aprovação dos projetos para poder colocá-los rapidamente em operação”, complementou.
O fim do regime de concessão e a retomada do modelo de autorização para construção de novos gasodutos de transporte, na Nova Lei do Gás, em 2021, se deu justamente a partir do diagnóstico de que o modelo de planejamento centralizado da expansão da malha não foi capaz de cumprir o seu objetivo e de que era preciso dar mais liberdade aos agentes.
Três anos depois da aprovação da lei, porém, o novo modelo também tem mostrado dificuldades de viabilizar uma expansão mais robusta da malha.
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