Opinião

Como critérios internacionais ajudam a clarear o debate sobre classificação de gasodutos

Ausência de parâmetros objetivos para classificação dos gasodutos de transporte tem gerado interpretações divergentes entre ANP e agências estaduais

Estação de entrega de gás natural do Gasbol – Gasoduto Bolívia-Brasi (Foto: Divulgação TBG)
Estação de entrega de gás natural do Gasbol | Foto Divulgação TBG

A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) acaba de encerrar a consulta pública documental (CP 01/2025) e a audiência pública (AP 01/2025) que tiveram o objetivo de ouvir a sociedade sobre uma minuta de resolução que regulamenta os critérios para classificação de gasodutos de transporte com base em diretrizes, procedimentos e limites de características físicas dos ativos.

É sempre bom lembrar que esta iniciativa da ANP se insere nas atribuições que lhes foram dadas pela Nova Lei do Gás (Lei 14.134/21), uma legislação que foi discutida durante sete anos no Congresso Nacional com ampla participação da sociedade e dos agentes econômicos.

Afinal, no inciso VI do Artigo 7º desta lei atribui-se explicitamente à ANP a prerrogativa de definir os critérios técnicos de classificação dos gasodutos.

Como se não bastasse o comando legal acima, a Constituição Federal define, em seu artigo 177, inciso VI, que a União detém o monopólio sobre as atividades de transporte de gás.

Portanto, a ANP — reguladora federal que representa a União — está apenas cumprindo seus deveres constitucional e legal ao abrir a CP 01/2025 e a AP 01/2025 para garantir que os agentes interessados se manifestem com transparência sobre o tema de classificação de gasodutos, assunto que tem absorvido muita energia dos reguladores e despertado controvérsias e disputas.

As premissas de grande interesse sobre o tema e da necessidade de ampla discussão se confirmaram: na CP 01 foram recebidas contribuições por escrito de 60 participantes, incluindo empresas distribuidoras de gás, empresas transportadoras de gás, associações, consultorias, consumidores e autoridades.

Já na AP 01, que precisou ser realizada em duas datas em função do grande número de inscritos, foram ouvidos 37 participantes.

Em antecipação a esta demanda regulatória e em busca de uma contribuição para ajudar a ANP a cumprir este objetivo, iniciamos há alguns meses – e acabamos de concluir – um estudo comparativo (benchmark) internacional que envolveu a análise dos critérios de classificação de gasodutos adotados tanto na União Europeia (de forma agregada) quanto em sete países (de forma individual).

A busca principal deste estudo, intitulado Benchmark internacional de critérios para classificação de gasodutos de transporte e de distribuição (na íntegra), foi visualizar grandes denominadores comuns e diferenças de critérios de classificação em diferentes geografias, mas sempre com o cuidado de evidenciar os contextos históricos e funcionais em que tais critérios se aplicavam e que poderiam ir além das características físicas e técnicas de diâmetro, pressão e extensão.

A ausência de parâmetros objetivos para a classificação dos gasodutos de transporte tem gerado interpretações divergentes e conflitos jurisdicionais entre a ANP e as agências reguladoras estaduais.

Essa indefinição tem levado a disputas sobre as competências regulatórias que trazem insegurança jurídica, inflam divergências técnicas (tanto entre a ANP e os estados quanto entre os próprios estados da federação), prejudicam investimentos e ameaçam a real integração do mercado brasileiro de gás natural, integração esta tão almejada pelos legisladores na concepção dos marcos legais do gás natural.

A fim de identificar referências globais que podem ser utilizadas pela ANP para a definição dos critérios brasileiros para classificação de gasodutos, nosso estudo analisou a legislação e os marcos regulatórios em diversos países com infraestrutura relevante de gás natural: União Europeia, Espanha, França, Itália, Portugal, Reino Unido, Argentina e Estados Unidos.

Apesar da diversidade de critérios de classificação de gasodutos entre os países estudados, foi possível observar tanto a recorrência de alguns critérios qualitativos-funcionais quanto algumas tendências nos critérios quantitativos-físicos (pressão, diâmetro e extensão dos dutos).

Nos critérios qualitativos-funcionais, os elementos mais recorrentes para classificação de gasodutos envolvem a aderência ao planejamento e à eficiência operacional de redes para que haja clareza na separação dos papeis de transportador e distribuidor de gás, evitando inclusive uma nociva verticalização e concentração de atividades na cadeia de valor de gás natural que prejudica a competição e reduz as escolhas do consumidor final.

Já no que se refere aos critérios técnicos ou físicos, foi possível concluir que a minuta de resolução da ANP caminha para a definição de critérios de classificação de forma alinhada às conclusões do nosso estudo de benchmark internacional. Destacamos os seguintes pontos para as três dimensões (extensão, diâmetro e pressão) que são alvo da CP 01/2025, todos detalhados em tabelas comparativas na seção final do estudo:

  1. Tanto a minuta da ANP quanto nosso estudo estabelecem que a extensão do gasoduto é pouco relevante para a caracterização de gasodutos de transporte.
  2. Nosso estudo conclui que poucos países adotam o diâmetro como parâmetro para caracterização de gasoduto de transporte, e a minuta de resolução da ANP recomenda diferentes limites de diâmetro de acordo com a finalidade do gasoduto.
  3. Nosso estudo revela que vários países adotam a pressão como parâmetro mais relevante para caracterização de ativo de transporte (com limites para enquadramento como gasoduto de transporte que variam entre 7 e 20 bar de pressão), enquanto a minuta de resolução da ANP recomenda que gasodutos acima de 36,5 bar de pressão sejam sempre classificados como ativos de transporte independentemente da sua finalidade.

Nosso estudo de benchmark internacional ainda constatou que os legisladores e reguladores dos países estudados se preocupam em expressar que os critérios de classificação devem considerar a função do gasoduto, sendo que: (a) a função dos gasodutos de transporte é a conexão de fontes de suprimento; e (b) a função dos gasodutos de distribuição é a conexão de usuários finais.

Essa distinção funcional evidencia a centralidade do elo de transporte para a garantia da segurança do abastecimento e para a viabilidade da competição no mercado de gás natural e, portanto, este aspecto poderia ser refletido na minuta da ANP para assegurar a preservação do desenho de mercado e a coerência com o modelo conceitual já delineado pela própria agência.

O estudo de benchmark internacional que acabamos de concluir é uma contribuição técnica para que a ANP possa avançar na definição de um modelo claro e coerente para a classificação dos gasodutos nacionais, mas sempre mantendo a aderência aos princípios originais concebidos pelo legislador brasileiro e em prol de quatro objetivos interdependentes e cruciais para o desenvolvimento virtuoso da infraestrutura de gás natural no país:

  1. a preservação da competência exclusiva da União na regulação do transporte de gás natural, evitando conflitos federativos;
  2. a otimização da eficiência operacional e econômica das redes de transporte e distribuição, promovendo o uso racional da infraestrutura existente;
  3. a integração do mercado de gás, assegurando condições equitativas de acesso à infraestrutura de transporte para todos os agentes do setor;
  4. e a integridade da malha de transporte, evitando impactos tarifários adversos para os consumidores e garantindo a previsibilidade regulatória.

A ANP aceitou com coragem a desafiadora missão de trazer mais clareza técnica a uma dimensão relevante para o desenvolvimento do setor de gás natural e, portanto, merece o apoio de todas as autoridades dos Três Poderes e de todos os membros da sociedade brasileira interessados no desenvolvimento do mercado de gás natural e na conquista dos quatro objetivos acima.


Eduardo Müller Monteiro é diretor executivo do Instituto Acende Brasil.

Patricia Guardabassi é pesquisadora sênior do Instituto Acende Brasil.

João Cho é engenheiro sênior do Instituto Acende Brasil.

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