Opinião

A recepção da estocagem de gás pelo direito tributário brasileiro

Modelo inspirado no mercado internacional busca reduzir volatilidade de preços, mas enfrenta desafios tributários e regulatórios, escrevem Paloma Rosa e Katiana Bilda

Dutos de rede de distribuição de gás natural (Foto: Divulgação Generac)
Distribuição de gás natural (Foto Divulgação Generac)

A estocagem de gás natural parece estar próxima de ser uma realidade para o mercado de gás brasileiro, trazendo consigo uma expectativa de que, em alinhamento ao formato já adotado pelo mercado internacional, o mercado fique menos sujeito aos riscos de variações que acabem por dar causa ao desequilíbrio entre a oferta e a demanda.

Esse desequilíbrio, por vezes, gera o aumento do preço do gás e atrai uma postura menos flexível dos agentes de mercado para fins de contratação relacionada à compra e venda da molécula.

À título de contextualização, vale destacar que estudos desenvolvidos pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) demonstram o elevado potencial de produção de gás natural associado detido pelo Brasil, o que nos revela a importância dessa atividade para fins de se alcançar o balanceamento do mercado.

A proposta inicial da atividade, conforme mencionado pela Origem Energia S.A. (no evento Encontro da Comunidade de Gás, realizado pelo IBP em 18 de junho de 2024), coincide inicialmente em atender a uma finalidade de ferramenta de balanceamento a curto prazo, equalizando os desequilíbrios e oscilações naturalmente verificadas no dia a dia das operações.

A proposta finalística, por sua vez, consiste na utilização da estocagem como prática permanente dos agentes de mercado, que, ao passo em que fosse confirmado o êxito da referida atividade, expandiriam a sua capacidade contratada em bundles (ie.: prática já adotada para segregar o espaço da estocagem e organizar o fluxo de entrada, saída e permanência da molécula).

Neste contexto, é certo que o direito tributário se vê novamente desafiado a rever algumas das suas premissas tradicionais de interpretação e aplicação do ordenamento jurídico para recepcionar e viabilizar o desempenho desta nova atividade, de forma a evitar que a ausência de encaixe perfeito sirva de barreira ao desenvolvimento do mercado.

Neste sentido, cumpre esclarecermos que, como regra, o volume total de gás contido em uma estocagem é constituído de duas partes distintas: Gás Base ou Cushion Gas e Gás Útil ou Working Gas.

O gás base, ao contrário do gás útil, não pode ser totalmente recuperado ao final da sua vida útil da estocagem e tende a permanecer no horizonte inferior do reservatório para manter a pressão suficientemente alta durante as operações de retirada do gás útil.

O gás útil, por sua vez, é aquele que será movimentado de acordo com as injeções e retiradas projetadas pelos agentes, na forma e condições em que contratarem o serviço de estocagem.

Ainda é muito cedo para prevermos todos os desafios tributários que virão, mas podemos sinalizar, desde já, a necessidade de que:

  • seja reafirmada a prevalência do fluxo jurídico em detrimento do fluxo físico da molécula;
  • seja definido o marco espacial para fins de alocação da competência ativa tributária, considerando que alguns locais de estocagem podem se alastrar por mais de um território limítrofe;
  • sejam instituídas obrigações acessórias que confiram transparência tanto na injeção e retirada, quanto no volume mantido (working gas + cushion gas), de forma a viabilizar, ainda que no futuro, a realização de operações de mútuo e compra e venda de gás com segurança jurídica.

Como resultado de um trabalho direcionado, foi editado o Convênio ICMS nº 219/23, que — apesar de ter autorizado os estados a conceder a “suspensão” do ICMS nas “operações de remessas internas e interestaduais de gás natural nacional para estocagem subterrânea” — previu, como prazo máximo de permanência do gás estocado o período de 90 dias, prorrogáveis por mais 90 dias.

Essa medida, apesar de atender à finalidade mais imediata da nova atividade, parece incorrer no mesmo equívoco da suspensão dos bens remetidos para conserto, reparo e industrialização, quando aplicada pela indústria de O&G.

Isto porque, as atividades do setor, em razão da sua especificidade e complexidade, demandam, como regra, um prazo maior do que a maioria das demais atividades

A insuficiência dos prazos previstos acaba gerando a necessidade de consecutivos pedidos de prorrogação e a alocação desnecessária de força de trabalho para realizar o referido controle de alto volume de operações de remessa/retorno, além de culminar no alto volume de autuações em decorrência de falhas no controle da expiração do referido prazo.

Portanto, não há dúvidas de que a limitação de tempo de estocagem por motivos tributários representa um potencial de servir como barreira tributária ao desenvolvimento do mercado de gás.

A insuficiência do prazo de suspensão foi, inclusive, reconhecida no âmbito do estado do Rio de Janeiro, por meio da veiculação do Decreto nº 48.641/23, que alargou o prazo de suspensão de 90 dias para 540 dias em se tratando de estabelecimento classificado como bloco de exploração, campo de produção, jazida unitizada ou instalação compartilhada.

Além disso, cumpre lembrarmos que a concessão de suspensão do ICMS sobre as operações de remessa e retorno de bem a ser objeto da atividade de armazenagem representa, em nosso entendimento, verdadeiro ato de imprecisão técnica, já que tal operação não está sujeita à incidência do ICMS sob qualquer circunstância, pois não envolve a transferência de titularidade do gás estocado.

Neste sentido, permitir que seja cobrado o ICMS sob o gás estocado que não retorne ao seu titular no prazo máximo estabelecido seria, neste caso, o mesmo que (i) permitir que seja presumida a venda do gás estocado para o titular do “armazém”; (ii) permitir que o ICMS seja utilizado como verdadeira sanção aplicável à extrapolação do prazo máximo previsto, em violação ao art. 3º do CTN; ou (iii) permitir que seja cobrado ICMS sobre operação sobre a qual este não incide, em violação à hipótese de incidência prevista pela CF. 

Por fim, apesar de o processo da Reforma Tributária pretender solucionar parte dos dilemas apontados – solução esta que precisa prezar pela simplificação e pela ausência do aumento da carga tributária cobrada em operações similares -, ainda temos longos anos para buscarmos a melhor forma de solucionar tais controvérsias

O objetivo é contribuirmos para que tais “gargalos” não se sobreponham à importância do desenvolvimento do mercado de gás e não se coloquem como óbice ao avanço do processo de transição energética nacional.

Este artigo expressa exclusivamente a posição das autoras e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculadas.


Paloma Rosa é sócia da área Tributária e Aduaneira do Vieira Rezende Advogados.

Katiana Bilda é advogada especializada no mercado de gás natural.

Inscreva-se em nossas newsletters

Fique bem-informado sobre energia todos os dias