A descoberta do valor energético do biogás não é nova. No século XVII, atribuem-se ao britânico Thomas Shirley as primeiras observações de caráter científico sobre a substância inflamável gerada em pântanos a partir da decomposição anaeróbica de matéria orgânica. E foi o italiano Alessandro Volta quem teve o mérito de, um século depois, ter identificado o metano como o seu principal componente.
Contudo, foi apenas no século XIX que começaram os primeiros usos comerciais do biogás em maior escala na Índia, no Reino Unido e no Norte da Europa. A partir das crises de escassez de petróleo na década de 1970, ganharam impulso novos estudos e tecnologias sobre a purificação do biogás na perspectiva de diversificação e independência energética.
Ou seja, a história do biometano como um combustível comercialmente relevante é recente. Por um lado, há o desafio gerado pela pouca experiência acumulada sobre o tema; por outro, a oportunidade de se estar diante de uma “tela em branco”, na qual se pode construir do zero políticas públicas de qualidade para o fomento da produção do energético e o seu uso eficiente.
Dentre os países europeus em que o biometano tem sido mais usado, destacam-se a Dinamarca, a Alemanha e a Itália. As três nações optaram pela adoção de políticas de incentivo tendo em vista as metas de descarbonização da União Europeia e o fato de os custos de produção do biometano ainda serem maiores do que o de outras fontes tradicionais de energia.
Existem, no entanto, diferenças entre as políticas públicas traçadas por cada país. Enquanto a Dinamarca e a Alemanha focaram mais em políticas de subsídios, incluindo o pagamento por biometano produzido e injetado na rede, a Itália impôs um mandato legal de acréscimo de biometano a combustíveis fósseis usados no setor de transporte, além de também adotar subsídios para investimentos em plantas de biometano e tarifas de incentivo.
Tanto a Dinamarca como a Alemanha reduziram subsídios, ou, pelo menos, buscaram alocá-los de maneira mais eficiente, com base em leilões ao invés de sua concessão automática, de forma a reduzir o gasto público e incentivar a integração com mecanismos de mercado.
A restrição dos subsídios foi acompanhada pela redução do número de lançamentos de plantas diante dos custos comparativamente mais altos dos projetos de biometano em relação a outras fontes de energia.
Exemplo italiano
O exemplo italiano mostrou-se bem-sucedido. A Itália focou seus esforços em incentivar o uso do gás renovável no setor de transporte. Os italianos estipularam a obrigação de que supridores de combustíveis fósseis adquirissem volumes mínimos de biocombustíveis para compor o seu mix de fornecimento.
Uma parte do biocombustível a ser adicionado aos combustíveis fósseis deve ser considerado “biocombustível avançado”, ou seja, produzidos a partir de substâncias não alimentares, como resíduos agrícolas e industriais. Um percentual de 75% dos biocombustíveis avançados deve ser necessariamente biometano.
A meta de adição de biocombustíveis aos combustíveis fósseis iniciou-se em 5% em 2015, avançando para 10% em 2020. A exemplo da lei brasileira, a meta poderia ser performada tanto com a efetiva compra da molécula de biocombustível como de direitos que atestassem seu cumprimento na forma de certificados (similarmente ao Certificados de Garantia de Origem de Biometano — CGOB).
Pode-se notar que a experiência brasileira guarda similaridades com o precedente italiano, já que a opção da Lei do Combustível do Futuro (Lei 14.993/2024) foi por instituir um mandato legal de consumo de biometano, transferindo diretamente o ônus do financiamento de ações de fomento à produção de biometano para os produtores e importadores de gás natural. Tal opção certamente levou em consideração as restrições fiscais do estado brasileiro.
A experiência italiana, embora bem-sucedida, também serve de alerta para eventuais empecilhos ao desenvolvimento do objetivo preconizado pela Lei do Combustível do Futuro.
Explica-se: o modelo italiano prevê que a obrigação de mistura se dê de maneira relativamente simples, considerando o volume de combustível fóssil consumido e um percentual mínimo de mistura de biocombustível ao combustível fóssil.
O modelo brasileiro envolve a redução de emissões de gases do efeito estufa (GEE) no mercado de gás natural por meio da obrigatoriedade de compra de molécula de biometano ou de CGOB. A meta de redução se inicia em 1% em 2026, podendo atingir até 10%.
Contudo, a forma de cálculo parece mais complexa do que o modelo italiano, pois é feita com base na redução de emissão de GEE do setor de gás natural a partir de metodologia a ser definida pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Não é providência trivial nem de cumprir, quanto mais de regular.
Adicionalmente, o percentual de redução deve ser definido anualmente pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), havendo a possibilidade de o CNPE reduzir o percentual exigido por motivo justificado de interesse público ou quando o volume de produção de biometano impossibilitar ou onerar excessivamente o cumprimento da meta, o que aumenta a imprevisibilidade com relação aos percentuais a serem estabelecidos e, consequentemente, a tomada de decisão de investimento.
Embora de fato se trate de tarefa complexa, a definição da metodologia e a fixação do percentual devem ser perseguidas prontamente. Trata-se de medida fundamental para viabilizar o crescente setor de gás renovável brasileiro.
Há números que evidenciam o grande potencial do biometano no Brasil: o website da ANP indica uma capacidade cuja operação já se encontra autorizada de pouco menos de 700.000 Nm3/dia e a existência de diversos projetos produtores de biometano em fase de autorização, totalizando mais de 1,2 milhão de Nm3 /dia.
Esse relevante volume do energético requer a clareza e prontidão de regras para que possa afinal encontrar seu destino com a injeção nas redes, e no cumprimento do propósito de ajudar a descarbonizar o setor de gás natural brasileiro.
Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.
Felipe Boechem é sócio de Petróleo e Gás do Lefosse.
Rafael Martins é counsel de Petróleo e Gás do Lefosse.