Energia

Gás natural: uma saída para o Brasil crescer e ser mais competitivo

Juliana Rodrigues, da Abrace, escreve como evolução do mercado passa por olhar amplo do regulador para o setor de energia

Juliana Rodrigues, da Abrace, escreve como evolução do mercado de gás passa por olhar amplo do regulador para o setor de energia
Instalação do terminal de GNL da Baía de Guanabara (Foto: Agência Petrobras)

Recentemente, a Agência Internacional de Energia (AIE) publicou relatório apontando as reformas internacionais que poderiam servir de referência para a regulação em curso no Brasil. Na esteira do primeiro aniversário da Lei do Gás, a Agência levantou questões que são fundamentais para que a lei siga e seja, de fato, efetiva para o mercado de gás.

Um dos pontos mais relevantes apontados pela AIE foi o acesso ao mercado e como ele precisa ser feito em bases transparentes, para garantir flexibilidade, liquidez e a integração do mercado de gás com outros recursos energéticos, além de apoiar a introdução de sistemas descentralizados (small-scale) para monetizar a produção de gases de baixo carbono, como biometano, hidrogênio e metano sintético, permitindo a negociação eficiente destes recursos em termos de tempo e custo.

É óbvio que reformas de grande porte, como a que vem sendo implementada no Brasil, costumam levar décadas para se tornarem operacionais, com um nível desejável de concorrência. A Agência lembrou das experiências internacionais e como elas podem auxiliar e acelerar esse processo, se houver forte comprometimento das autoridades públicas e reguladoras.

No caso brasileiro, precisamos ficar atentos aos vícios históricos quando lidamos com mudanças que pretendem promover a competição nos mercados atacadista e varejista. Por aqui, a ânsia por privilégios a grupos específicos são riscos perigosos que podem estragar projetos modernos com potencial de promover verdadeira revolução no mercado, como é o caso da Lei do Gás.

Revolução do mercado  de gás passa por regulação clara

Para seguirmos o caminho técnico, da inovação e do desenvolvimento é preciso criar condições suficientes para que supridores e consumidores consigam encontrar opções para estabelecer negócios. Para isso, a regulação deve ser clara o suficiente para permitir que a negociação via mercado proporcione os sinais corretos aos investimentos na produção e no desenvolvimento de infraestruturas.

O primeiro ponto para garantir a eficiência do mercado de gás é evitar que uma empresa que tenha participação relevante na oferta e esteja em uma posição verticalizada possa ter informações privilegiadas em relação aos seus concorrentes.

O mesmo raciocínio pode ser feito caso uma empresa também tenha posição relevante em relação à demanda (monopsônio ou oligopsônio), sob o risco de distorcer os mecanismos de mercado, mesmo se houver uma regulação relativamente robusta em relação ao processo de contratação.

Neste caso, no Brasil, de forma estrutural, houve a tentativa de corrigir ambas as situações no Termo de Cessação de Prática, firmado entre o Cade e a Petrobras, em que a estatal se comprometeu a desinvestir nos segmentos de transporte e distribuição — regulados — e a conceder acesso não discriminatório ao escoamento e tratamento do gás produzido e aos terminais de importação. Ainda, de forma comportamental, a Petrobras também assumiu o compromisso de adaptar os seus contratos.

A ideia era que ela não pudesse recontratar gás de outros produtores e reduzir a parcela na importação do gás boliviano; além de reduzir a flexibilidade no transporte, liberando capacidade para contratação por outros agentes.

Estas medidas garantiram que outros ofertantes pudessem acessar o mercado de gás, algo que já vem surtindo efeitos desejáveis. As consequências para reduzir o poder de monopsônio que as distribuidoras possuem hoje — concentradas em poucos acionistas — dependerá, no entanto, da condução do Cade no processo de venda da Gaspetro.

Mesmo a Nova Lei do Gás não proibindo a verticalização, ela limita práticas abusivas que poderiam advir desta estratégia. Sendo assim, ela prevê independência dos operadores de transporte, a limitação ao self-dealing e os códigos de rede, os quais garantirão que o acesso às infraestruturas operadas em regime de monopólio seja isonômico, a promoção da competição na oferta ao mercado cativo e que os consumidores livres e elegíveis conseguirão, de fato, escolher o seu supridor.

Códigos de rede serão essenciais

Um dos principais temas que será regulado nos próximos anos, que tem importância elementar para o desenvolvimento do Novo Mercado de Gás são os Códigos de Rede, fundamentais para garantir a acessibilidade e, consequentemente, a competição na molécula.

Na Europa os códigos de rede são discutidos dentro de uma comissão formada por carregadores e potenciais carregadores, operadores do transporte e transportadores e reguladores dos estados-membros. Após intensas discussões sobre o teor do documento, são registrados os pontos de discordância e concordância e com base nisso a associação dos operadores do transporte (ENTSOG) elabora uma minuta que será submetida à apreciação dos demais participantes da comissão.

Após aprovado pela comissão, o documento segue para consulta pública e posterior aprovação e publicação pelo regulador.

No Brasil há um desafio maior em relação àqueles enfrentados pelos países europeus. Aqui, há uma segregação de competência regulatória entre o transporte e a distribuição de gás. A autoridade reguladora federal regula o transporte, enquanto as estaduais, os serviços de distribuição.

Então, será necessário que a regulação dessas infraestruturas seja coesa para garantir não apenas a interoperabilidade entre essas redes, como também liquidez e eficiência na contratação da molécula. Assim, arriscamos a dizer que o Código de Redes no Brasil não poderá se ater apenas à infraestrutura de transporte, mas também terá que envolver a distribuição, nem que seja para contemplar apenas as questões operacionais.

O desafio de unir oferta inflexível e demanda flexível

Para além dos desafios na segurança do acesso ao mercado, temos ainda outro grande desafio: convergir uma demanda flexível a uma oferta inflexível. Em grande medida a oferta de gás natural no Brasil é associada à produção do petróleo, fazendo com que busquemos alternativas para o abastecimento da demanda intermitente, dentre outras opções, principalmente na importação de GNL — que pode trazer alguns riscos como dependência externa e exposição à volatilidade dos preços, principalmente quando as condições internacionais não estiverem favoráveis, como agora.

Este tema é fundamental para o setor energético brasileiro, tendo em vista que a solução para as condições de flexibilidade na oferta e demanda é fundamental para promover a integração entre os setores de gás natural e energia elétrica.

O fato é que toda a relevância do desenvolvimento do mercado brasileiro de gás natural traz uma relação muito próxima com a competitividade energética. Em um contexto de transição para um mercado de baixo carbono, os desafios que o setor de energia enfrentará transcenderão a reconfiguração da matriz elétrica, em que a participação das hidrelétricas será reduzida, em detrimento de outras fontes renováveis, como eólica e solar. Mas o papel do gás natural tende a permanecer relevante, como suporte à flexibilidade e à intermitência dessas fontes.

Só vamos seguir a evolução cumprindo a proposta da Lei do Gás com um olhar amplo do regulador para o setor de energia, considerando no seu planejamento estruturas que possam suportar tanto a variabilidade da demanda de gás natural pelo setor elétrico como a flexibilidade da oferta, cada vez mais necessária nesta nova configuração de mercado.

Assim, o custo do insumo será menor, nossa indústria mais competitiva e evitaremos os riscos de monopólios, públicos ou privados.

Juliana Rodrigues é especialista de energia da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace)