Gás de sobra, demanda de menos

Gás de sobra, demanda de menos. Na imagem: Instalações industriais, com rede de dutos metálicos e chaminés, da Braskem (Foto: Divulgação)
Instalações industriais da Braskem (Foto: Divulgação)

O artigo expressa apenas a opinião dos autores

Esta edição da Coluna do Gauto foi escrita em colaboração com Fernanda Delgado, doutora em Planejamento Energético, professora e assessora estratégica na FGV Energia.

Segue forte no país a discussão acerca do gás natural como o energético de salvação do crescimento econômico nacional. Entretanto, para dar ao gás essa importância cabal é necessário estabelecer um ambiente propício, e isso ainda está sendo construído e estudado. Desde 2009[1].

Em julho (2020) esta coluna tratou do “Gás natural e o preço para a reindustrialização brasileira”, onde foram abordadas questões relativas a oferta e precificação do gás no Brasil. Relembrando parte do que foi descrito, haverá crescimento da oferta de gás, via pré-sal, de forma contundente na próxima década.

A reinjeção tem sido prática recorrente por necessidade técnica, mas também por razões econômicas associadas a falta de uma demanda mais consistente. Gerar demanda firme é condição necessária para aumentar de forma significativa o escoamento de gás. Como fazer isso, sem subsídios, pela livre iniciativa, é o cerne da questão. Nesse sentido, a regulação adequada é fundamental, mas ela por si só não é capaz de impulsionar a demanda.

Os principais consumidores de gás natural no país são os segmentos industrial e de geração de energia elétrica. Somados, incluindo cogeração, eles representaram, em média, pouco mais de 85% da demanda pelo gás na última década (gráfico 1).

Gráfico 1 – Demanda de gás natural no Brasil por segmento

Fonte: elaboração própria a partir de MME, 2015 e 2020

Sabendo-se disso, há um pleito de diversas entidades para que a geração térmica inflexível seja colocada na pauta de discussões do setor elétrico. Normalmente, as usinas termoelétricas são despachadas conforme necessidade, a pedido do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), sendo por isso ditas flexíveis. Colocar a geração térmica como base do sistema, operando de forma contínua, garantiria maior demanda pelo gás. Todavia, tal decisão tem prós e contras.

Manter as usinas térmicas em stand by tem um custo fixo associado a sua disponibilidade, então, realmente é justo que se avalie a opção de se manter parte delas operando de forma inflexível. É necessária uma avaliação detalhada, contudo, a respeito do custo associado a isso, para que o consumidor não seja onerado e acabe pagando mais na sua conta de energia. Há de se analisar, inclusive, se existem termelétricas suficientes no país para atender à demanda elétrica no transcorrer da curva do pato[2]. Os dados da ANEEL indicam que sim.

Adicionalmente, o aumento esperado na oferta de energia por fontes eólica e solar nos próximos anos (EPE, 2020) impõe também certo embate sobre o uso do gás em maior escala na geração de base. Optar pelas fontes mais limpas, sem emissões de carbono e que se apresentam cada vez mais competitivas, faz do uso do gás uma opção menos interessante sob a ótica ambiental.

A intermitência das renováveis, porém, exige algum tipo de produção de energia inflexível, que dê segurança ao sistema elétrico como um todo. Talvez, o gás não seja um concorrente, mas um parceiro neste sentido. Hoje, porém, as hidrelétricas fazem este papel de balanceador do sistema. Essa discussão prosseguirá, é um tema complexo, que merece ser avaliado no detalhe técnico e econômico envolvidos.

Outro setor que tem potencial para alavancar o uso do gás é o industrial, cujo pico de consumo foi alcançado em 2015. A indústria demandou quase 50% do gás consumido no país na última década. Mesmo a preços bastante altos, se comprados ao dos principais hubs internacionais, o consumo de gás natural pela indústria nacional cresceu de 2010 a 2015 (MME, 2015).

A recessão econômica brasileira nos anos seguintes, no entanto, reduziu em 15% a demanda do setor, quando o consumo em 2019 atingiu valor semelhante ao observado em 2010.

Gráfico 2 – Preços do GN no segmento industrial – Brasil

Obs.: dados de 2020 consideram de janeiro a junho.
Fonte: elaboração própria a partir de MME, 2014 e 2020

A indústria é bastante sensível ao ambiente macroeconômico e um aumento da atividade industrial depende de uma recuperação econômica do país nos próximos anos. Segundo dados da FGV-IBRE, o crescimento estimado para o PIB brasileiro em 2020 será de -5,5% e de 2,3 a 3,0% até 2027, o que não é animador para uma retomada forte no uso do gás no setor. Ainda neste sentido, dados da ABIQUIM também mostram que não há novos projetos até 2022 para a indústria química, grande consumidora de gás.

A retomada da operação das Fafens Sergipe e Bahia é o que há de concreto, após arrendamento das unidades da Petrobras para Unigel (mas apenas essas não são alavancadoras de demanda). Além disso, o ambiente macro nacional aponta ainda para um alto nível de endividamento do governo após a pandemia, juros reais muito baixos, um aumento dos índices de incerteza política e fiscal além da expectativa de retomada do superávit primário apenas para 2027 (FGV IBRE, 2020)

Os segmentos automotivo, comercial e residencial, representam hoje próximo de 10% da demanda de gás e dependem da capilarização da rede de gasodutos nas cidades para crescerem. Embora tenham um potencial imenso de crescimento, não serão os pilares de sustentação de uma nova demanda no acompanhamento da oferta. Isso não quer dizer, de forma alguma, que são menos importantes, apenas que não têm envergadura para acompanhar a superoferta de gás que se enxerga no horizonte.

Mesmo que se consiga dobrar o consumo de gás nestes segmentos na próxima década, o que já seria fenomenal, o incremento de consumo seria de 8,5 milhões de m³ por dia (MMm³/d), enquanto a produção líquida de gás projetada no Brasil sairá de 59 para 147 MMm³/d (EPE, 2019). Avaliações de substituições interenergética a partir da troca de equipamentos industriais a óleo combustível, óleo diesel ou carvão para gás natural podem ser considerados, mas improváveis em um ambiente recessivo face aos altos custos envolvidos e aos altos preços do gás em vigor.

Gás de sobra

Em 2014, o consumo de gás natural atingiu pico[3] de 94,9 MMm³/d, enquanto a de 2019 foi de 73,4 MMm³/d, uma retração de 21,5 MMm³/d (-22,6%) no período. Considerando que a Rota 3 do pré-sal tem capacidade de escoamento projetada de 18 MMm³/d, assim que for concluída haverá pelo menos 39,5 MMm³/d de capacidade ociosa para escoamento de gás, isto é, a infraestrutura existente permitirá crescer quase 50% a atual demanda.

Como aproveitar a atual oferta de gás e a capacidade disponível existentes, bem como aquela futura que se vislumbra em 2021 pela Rota 3, é o que precisa ser equacionado. Pelos dados apresentados, é possível perceber que é possível consumir mais gás, algo que não ocorre por falta de demanda firme termoelétrica, bem como por um ambiente econômico deprimido, piorado pela pandemia da Covid-19.

O ambiente regulatório tem caminhado para proporcionar um marco legal que favoreça a livre iniciativa e traga segurança jurídica para novos investimentos, mas não há uma política industrial clara de fomento ao uso do gás.

O BNDES (2020) no minucioso relatório a respeito do gás natural no Brasil afirmou que “não é suficiente realizar investimentos somente no lado da oferta de gás natural sem que haja investimentos também na demanda.”

Em outro trecho, o mesmo relatório considera que “sem um aumento da demanda firme, o investidor nos campos de produção de petróleo e gás poderá continuar preferindo reinjetar o gás nos reservatórios em vez de realizar investimentos em gasodutos de escoamento no futuro. O gás reinjetado não potencializará a geração de riqueza, valor, arrecadação e empregos para o país.”

Haverá gás de sobra, mas sem um planejamento específico de incentivo a demanda. A perspectiva de baixo crescimento econômico deixa os investidores mais cautelosos. A volatilidade é a maior inimiga dos investimentos de longo prazo. É necessário discutir a implementação de térmicas inflexíveis, propor metas setoriais para ampliação do uso do gás nos Estados e municípios, avaliar linhas de financiamento, mapear e eliminar os gargalos e trabalhar para que esta agenda avance nos seus devidos fóruns, coordenados pelos agentes de interesse.

Há necessidade de pragmatismo e diligência, encarando o fato de que sem demanda o programa “Gás para Crescer” não se concretizará de forma plena como desejado.

[1] Data da primeira versão da Lei do Gás.

[2]A curva do pato é uma referência ao gráfico que mostra a diferença na demanda de eletricidade na rede e a quantidade de energia fotovoltaica disponível ao longo do dia. O desbalanço observado cria uma curva que se assemelha a silhueta de um pato. O termo foi cunhado pelo Operador do Sistema Independente da Califórnia, EUA, ao observar o fenômeno em 2012.

[3] Considerando o consumo nos gasodutos, desequilíbrios, perdas e ajustes.

Referências

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA QUÍMICA (ABIQUIM). O desempenho da indústria química brasileira em 2016. São Paulo: ABIQUIM, 2018.

BANCO NACIONAL DO DESENVOLVIMENTO (BNDES). Gás para o desenvolvimento. Disponível em: <https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/conhecimento/publicacoes/livros/gas-para-o-desenvolvimento>. Acessado em agosto de 2020.

EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA (EPE). Plano indicativo de processamento e escoamento de gás natural decenal de expansão de energia – PIPE. Rio de Janeiro: MME/EPE, 2019.

EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA (EPE). Estudos do plano decenal de expansão da energia 2030. Avaliação do suprimento de potência no sistema elétrico e impactos da Covid-19. Disponível em: <http://www.mme.gov.br/documents/78404/0/PDE+2030+-+Avalia%C3%A7%C3%A3o+do+Suprimento+de+Pot%C3%AAncia+no+Sistema+El%C3%A9trico+e+impactos+da+Covid-19+REV.pdf/0f5179b9-cfc1-01f7-b937-6218567ec7eb.> Cessado e agosto de 2020.

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS – INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA (FGV IBRE). Boletim Macro Agosto de 2020. Rio de Janeiro: FGV IBRE, 2020.

MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA (MME). Boletim Mensal de acompanhamento da indústria do gás natural – Dezembro de 2015. Disponível em: http://www.mme.gov.br/web/guest/secretarias/petroleo-gas-natural-e-biocombustiveis/publicacoes/boletim-mensal-de-acompanhamento-da-industria-de-gas-natural>. Acessado em agosto de 2020.

MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA (MME). Boletim Mensal de acompanhamento da indústria do gás natural – Maio de 2020. Disponível em: <http://www.mme.gov.br/documents/36216/1119340/05+-+Boletim+Mensal+de+Acompanhamento+da+Ind%C3%BAstria+de+G%C3%A1s+Natural+-+Maio+2020/540c1e86-e48b-044f-124a-cbc0257adf65?version=1.0&download=true>. Acessado em julho de 2020.

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