ENTREVISTA É preciso acelerar o acesso à infraestrutura, para abrir o mercado de gás, defende Augusto Salomon

Unidade de Tratamento de Gás de Caraguatatuba/SP (Foto: Queiroz Galvão)
Unidade de Tratamento de Gás de Caraguatatuba/SP (Foto: Queiroz Galvão)

A falta de acesso à infraestrutura essencial de produção, processamento e transporte de gás natural, na visão da Associação Brasileira de Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás), ainda é um dos principais desafios para abertura do mercado, para aumento da oferta e do consumo de gás natural no Brasil.

“Ainda faltam um cronograma e regras claras para que essa abertura do mercado realmente se estabeleça.
E essa é uma etapa fundamental para que os agentes do mercado realmente se interessem em ofertar o gás”, afirma Augusto Salomon, presidente executivo da Abegás, nesta entrevista para epbr.

A associação vem cobrando celeridade para que seja colocado em prática o acordo firmado entre o Conselho Administro de Defesa Econômica (Cade) e a Petrobras, em julho de 2019. A petroleira assumiu o compromisso, em linha com as políticas do governo federal, de sair de diversas etapas da cadeia de gás, mas ela ainda controla a maior parte da oferta do país.

O gargalo ao qual Salomon se refere são os pontos por onde o gás produzido, especialmente no offshore, passa para chegar ao consumidor: os dutos de escoamento, as unidades de tratamento e os gasodutos de transporte – vendidos ou em processo de venda, mas ainda atrelados a contratos com a Petrobras.

“O principal desafio é acelerar, com regras claras, esse processo de transição na oferta de gás natural — de um único agente dominante no suprimento para uma situação ideal, com ampla concorrência na oferta da molécula de gás nos citygates”.

Esta semana, a Petrobras publicou uma longa nota à imprensa (veja a íntegra), listando as iniciativas previstas e o que já foi realizado em sete meses, desde a assinatura do acordo. O planejamento prevê que a próximas iniciativas serão realizadas entre 2020 e 2021.

“A Petrobras reitera seu posicionamento e compromisso de continuar a apoiar e contribuir para a efetiva abertura do mercado de gás natural”, diz a nota.

Estão previstos, entre outros: a oferta de gás boliviano na fronteira, comprado pela Petrobras da YPFB ou a abertura de capacidade para negociação direta com a petroleira estatal da Bolívia; transição no contrato com a YPFB, até março, com redução da quantidade diária contratada, liberando gás para outros interessados; e negociações para acesso de terceiros à infraestrutura essencial, mas sem prazo informado.

Desenvolvimento do mercado e o papel das distribuidoras

Salomon destaca que pelas características do mercado de gás, é preciso desenvolver a demanda para justificar investimentos no uso comercial dos recursos disponíveis no país.

“A demanda firme poderia ser criada com a integração desse gás do pré-sal ao sistema elétrico, usando a termogeração como base para o crescimento das novas energias renováveis, que são fontes intermitentes”, sugere.

O executivo destaca também o potencial não explorado no mercado de transporte de carga – esta semana, o jornal O Globo informou que o governo federal pretende zerar o imposto de importação de caminhões a gás, para incentivar a substituição do diesel no setor.

“O uso do gás natural em transporte de carga é uma realidade nos Estados Unidos e na Europa, onde existem os chamados corredores logísticos, nome dado às rodovias que permitem percorrer longas distâncias abastecendo somente com gás”, avalia.

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Em defesa do papel das distribuidoras nesse processo, o executivo destaca que essas empresas são as mais bem preparadas para desenvolver o consumo atual e novos modelos de negócio – desde que acha oferta de gás competitivo.

“São as distribuidoras que desenvolvem o mercado e atraem novos clientes. E esse é um ponto indispensável para ganhar escala e tornar o gás mais acessível para todos os consumidores. As distribuidoras são especializadas em implantar, operar e manter sistemas de distribuição e agregar novos consumidores e mercado.”

De acordo com a Abegás, a margem de distribuição é da ordem de 17% do valor pago pelos consumidores. E ressalta que esse valor que remunera o serviço, mas também investimentos em segurança, manutenção e expansão das redes.

“O chamado “monopólio das distribuidoras” nada mais é do que um monopólio natural semelhante a concessões como energia elétrica, saneamento etc. É fundamental valorizar o papel das distribuidoras. Nos últimos oito anos, as redes de distribuição cresceram cerca de 80%, enquanto os gasodutos praticamente não tiveram crescimento”, afirma.

A Abegás acaba de completar 30 anos de fundação e reúne as distribuidoras regionais de gás natural de todas as regiões do país. A associação é responsável pela defesa dos interesses do setor nas discussões legais e regulatórias que ocorrem no Congresso Nacional e nos órgãos executivos estaduais e federais.

Leia a entrevia completa com Augusto Salomon, presidente executivo da Abegás:

Quais são os principais desafios para o setor de distribuição de gás nos próximos anos?

O principal desafio é acelerar, com regras claras, esse processo de transição na oferta de gás natural — de um único agente dominante no suprimento para uma situação ideal, com ampla concorrência na oferta da molécula de gás nos citygates (pontos de entrega).

Hoje, embora o termo de cessação de conduta (TCC) firmado em julho passado pela Petrobras e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) estabeleça um compromisso para o acesso de outros agentes à infraestrutura existente (rotas de escoamentos, Unidades de Processamento, Terminais de Gás Natural Liquefeito e outras), ainda faltam um cronograma e regras claras para que essa abertura do mercado realmente se estabeleça. E essa é uma etapa fundamental para que os agentes do mercado realmente se interessem em ofertar o gás.

Também falta clareza que propicie segurança ao mercado de que, nessa transição, o fornecimento será mantido. Costumamos dizer que não existe Novo Mercado de Gás sem que haja novos ofertantes. Sem concorrência não será possível implementar o consumidor livre. Então, é um conjunto de desafios interligados.

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E esse desafio principal nos leva a outro, não menos importante, que é como viabilizar a exploração e a produção do gás do pré-sal e do pós-sal de um modo que os interessados tenham clareza de que terão como escoar esse gás e, sobretudo, de que haverá mercado para esse novo gás.

Portanto, para não desperdiçar essa riqueza em subsolo marinho, o país precisa de uma estratégia que, de um lado, crie demanda firme e, de outro, políticas públicas que favoreçam o investimento em infraestrutura básica (rotas de escoamento, UPGNs, gasodutos de transporte, terminais de GNL e de armazenamento de gás).

O Brasil tem uma rede de dutos muito inferior à Argentina, por exemplo. A demanda firme poderia ser criada com a integração desse gás do pré-sal ao sistema elétrico, usando a termogeração como base para o crescimento das novas energias renováveis, que são fontes intermitentes; e, ainda, com a adoção do gás natural veicular no transporte público e transporte de carga, como acontece em diversos países da Europa, América do Sul e nos Estados Unidos. Esses são os desafios principais.

As distribuidoras vêm fazendo a sua parte para desenvolver o mercado, mas é preciso que todo o ciclo se complete para que todos sejam beneficiados — principalmente o consumidor.

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A Petrobras pode vender gás boliviano na fronteira e a TBG vai fazer uma chamada incremental de gás para o Gasbol. Como vocês enxergam esse movimento?

Como toda transição, esse momento apresenta oportunidades e algumas ameaças. No caso do Gasbol, é preciso bastante atenção para que o processo não reforce a concentração de mercado existente até aqui. O processo deve assegurar a ampla participação de outros agentes na contratação do gás natural boliviano — de um modo, claro, que garanta a continuidade de fornecimento.

O que observamos é que os órgãos competentes estão atentos. As distribuidoras, particularmente as que já são atendidas pelo gás do Gasbol, também estão atentas à chamada incremental da TBG e muitas delas apresentaram propostas. Estamos na expectativa e acompanhando o processo no sentido de que este possa dar um passo adiante para um acesso a um gás natural em condições mais competitivas e com menos risco para quem faz a aquisição.

Augusto Solomon, presidente executivo da Abegás
Augusto Salomon, presidente executivo da Abegás

Como compatibilizar o mercado livre de gás proposto pelo Novo Mercado de Gás com o desenvolvimento das distribuidoras que atuam nos estados?

Na nossa visão, a implementação do mercado livre só será viabilizada se o principal objetivo de o Novo Mercado de Gás cumprir seu principal objetivo, que é o de estimular mais agentes a ofertar a molécula de gás no citygate.

Se persistir a exclusividade da comercialização do gás, como ainda acontece, o cliente final não terá a possibilidade de escolha.

Portanto, só com um número maior de ofertantes haverá competição e a possibilidade de um gás a custos menores, dando a oportunidade para que se efetive a presença dos consumidores livres no mercado. Não é por falta de regulação.

O estado de São Paulo, por exemplo, já conta com regulamentação desde 2011. São mais de 10 comercializadores. E, ainda assim, não se estabeleceu o consumidor livre. Inclusive porque, hoje, os riscos são grandes e as distribuidoras é que assumem os riscos em cláusulas como take or pay or ship or pay.

O chamado “monopólio das distribuidoras” nada mais é do que um monopólio natural semelhante a concessões como energia elétrica, saneamento etc. É fundamental valorizar o papel das distribuidoras. Nos últimos oito anos, as redes de distribuição cresceram cerca de 80%, enquanto os gasodutos praticamente não tiveram crescimento.

São as distribuidoras que desenvolvem o mercado e atraem novos clientes. E esse é um ponto indispensável para ganhar escala e tornar o gás mais acessível para todos os consumidores. As distribuidoras são especializadas em implantar, operar e manter sistemas de distribuição e agregar novos consumidores e mercado. E só irão conseguir viabilizar isso com um sinal econômico que viabilize a substituição de outros combustíveis mais poluentes, caros ou menos eficientes pelo gás natural. As distribuidoras não produzem gás. Elas não o processam ou transportam.

Para movimentar o gás, recebem uma parcela da tarifa — a ‘margem de distribuição’, que equivale a cerca de 17% do total pago pelos usuários, em média. E elas recebem essa remuneração não só pelos serviços prestados aos consumidores, mas pelos investimentos em segurança, manutenção da integridade dos ativos e expansão da rede. Não é correta a visão que defende o consumidor livre com duto dedicado e tarifa específica. Isso encarece o gás para todos os demais consumidores, dificultando a universalização.

Como a Abegás vê a participação do gás na transição energética brasileira?

O gás natural, por suas próprias características, como a mais limpa fonte energética entre os combustíveis de origem fóssil, vem apresentando um papel importantíssimo em boa parte do mundo — especialmente na Europa, Estados Unidos e em alguns países da América do Sul — como base firme de transição para um cenário que tende a ter uma presença maior das chamadas novas fontes renováveis.

O mundo justamente vem procurando soluções energéticas mais limpas e que reduzam a emissão de gases causadores de efeito estufa e de material particulado nocivo à saúde, mas sem comprometer a segurança no fornecimento. E esse é o caso do gás natural.

Um recente estudo do Instituto Saúde Sustentabilidade, divulgado em outubro, mostra que a substituição do modelo energético (hoje baseado em diesel) por gás natural veicular em metade das frotas de ônibus do transporte público em São Paulo e no Rio de Janeiro poderia salvar 10 mil vidas ao ganho em produtividade de 4,5 bilhões até 2025. O cálculo ainda estima evitar 5 mil internações públicas, com a economia de R$ 8,8 milhões ao SUS.

Esses dados mostram que há uma imensa janela de oportunidade para fomentar o consumo de gás natural no Brasil, além de criar demanda firme com a interiorização do gás, criando condições para a expansão da rede de distribuição e até mesmo a atração de novas indústrias interessadas em instalar suas plantas em localidades que não contam com essa opção.

Tudo isso passa pela criação de infraestrutura para que o gás do pré-sal, ainda com um amplo índice de reinjeção (de 35%, em média), possa ser levado para o continente e monetizado, gerando renda, empregos e arrecadação para a União, estados e municípios.

Governo sinaliza com a possibilidade de dar incentivos pra caminhões a gás no país. Como vocês enxergam a possibilidade?

Vemos com bons olhos. Defendemos essa agenda há muito tempo e desde 2018 temos realizado anualmente, no Rio, um seminário internacional para debater o tema com governo, setor privado e terceiro setor — e encontrar caminhos que permitam a viabilização de políticas públicas que coloquem essa ideia de pé.

O uso do gás natural em transporte de carga é uma realidade nos Estados Unidos e na Europa, onde existem os chamados corredores logísticos, nome dado às rodovias que permitem percorrer longas distâncias abastecendo somente com gás.

Na Europa, por exemplo, é possível trafegar dos países escandinavos aos ibéricos somente com gás, encontrando postos de abastecimento a cada 100 quilômetros. Na Holanda, em Roterdã, funciona primeiro posto europeu criado especialmente para o reabastecimento de caminhões movidos a gás natural liquefeito (GNL).

Nos Estados Unidos, a Califórnia concentra o maior número de postos dedicados ao abastecimento de veículos pesados movidos a gás, de acordo com levantamento da American Gas Association, o percurso entre Los Angeles e Phoenix, de aproximadamente 600 quilômetros, já forma um hub para o tráfego de caminhões a gás.

Isso poderia ser perfeitamente viabilizado no Brasil: o Centro de Pesquisa Inovação e Difusão do Gás (RCGI) vem se dedicando a um estudo sobre a possibilidade de criação do “Corredor Paulista”. Segundo o RCGI, um corredor entre São Paulo e Campinas, onde se concentra o maior volume de tráfego de carga no estado, teria plena viabilidade. A ideia também poderia ser implementada em outras estradas paulistas com tubulação de gás nas imediações.

Recentemente, a proposta dos corredores azuis integrou a pauta da missão internacional à Europa, realizada em novembro, pelo Consórcio Nordeste, com a presença de diversos governadores. Sob o nome ‘Rota Azul’, o projeto inclui a instalação de postos de combustíveis capazes de fornecer gás natural liquefeito (GNL) para veículos de carga.

O Brasil tem amplas condições para transformar sua matriz de uso de combustíveis em direção a um modelo mais limpo, que emita menos particulados nos centros urbanos, e com benefícios econômicos, sociais e ambientais.

É preciso, agora, que governo federal e os governos estaduais estabeleçam políticas que criem uma agenda para estimular essa mudança. A indústria automotiva está plenamente preparada para suprir essas necessidades — a fábrica da Scania em São Bernardo do Campo, por exemplo, tem unidades de produção voltadas para a produção de ônibus e de caminhões especialmente preparados para o uso de gás natural.

O projeto para caminhões da Scania envolve um investimento de 2,6 bilhões, o que sinaliza a importância desse mercado para a multinacional. No entanto, essa produção por enquanto, está sendo voltada para a exportação.
Ouras montadoras e o setor como um todo têm veículos e tecnologia para suprir as necessidades do mercado, É preciso, portanto, decisão política para substituir o diesel — comprovadamente mais poluente e com peso negativo na balança comercial brasileira.

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