Opinião

“A montanha pariu a insegurança jurídica”

Geração distribuída avançou fora dos planos estruturados de expansão do sistema, escreve Darlan Santos

Darlan Santos é diretor-presidente do Cerne (Foto Divulgação)
Darlan Santos é diretor-presidente do Cerne (Foto Divulgação)

Conviver com as oscilações e incertezas do mercado brasileiro foi um aprendizado desenvolvido pelo setor de geração ao longo de sua história, especialmente após o período de diversificação e expansão iniciado nos anos 2000.

Para o setor renovável, com ênfase na geração centralizada eólica e solar, o processo, apesar dos desafios, se mostrou exitoso. O setor respondeu bem às exigências relacionadas ao desenvolvimento da cadeia produtiva, logística, viabilidade econômica, questões ambientais regionais e formação de mão de obra especializada.

O governo promoveu uma regulação que criou um ambiente favorável ao crescimento. As empresas se instalaram no Brasil e praticamente todos os componentes passaram a ser nacionais, fortalecendo uma nova indústria. O caminho estava construído, mas o Brasil nunca deixa de surpreender.

Em 2019, um novo mercado crescia: a Geração Distribuída. Seu avanço ainda enfrentava insegurança regulatória.

Os incentivos eram defendidos sob o discurso de “liberdade” de produção, “independência” das distribuidoras e geração de empregos — argumentos simplificados e distorcidos, já que independência plena só existe em sistemas off-grid.

No ambiente urbano, a rede é indispensável. A simplificação do discurso é um método conhecido e desleal, recorrente sempre que o tema surge.

Em meados do início de 2024, alguns números chamaram atenção: aproximadamente 30 GW de eólica centralizada e mais de 37 GW de fotovoltaica.

Porém, há uma armadilha nesses números: no volume solar, estão misturados os grandes parques fotovoltaicos regulados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e, em maior proporção, a soma das usinas de geração distribuída, aproximadamente 26 GW.

Enquanto a eólica e fotovoltaica centralizada cresceu sob total fiscalização da Aneel, Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e Ministério de Minas e Energia (MME), a GD avançou sem o mesmo controle e fora dos planos estruturados de expansão do sistema.

Apesar dos alertas do Operador Nacional do Sistema (ONS) sobre impactos operacionais, nada foi feito — até setembro de 2023.

Embora os cortes de geração (curtailment) sejam previstos em contrato e necessários para a segurança do sistema, o evento de 2023 provocou resposta crítica do ONS: aumentou a restrição na inserção das “fontes renováveis”.

Nas estatísticas, a GD estava incluída como “renovável”, mas, diferente das usinas centralizadas, cresceu sem coordenação e sem mecanismos de controle operacional.

O ONS pode ordenar a redução de um parque eólico, mas não pode “ligar” para um usuário de GD2 pedindo a parada de sua geração. No limite, GD deveria, para fins de acompanhamento, ser considerada uma fonte a parte.

A armadilha estava formada: o mercado centralizado arcando com o peso regulatório e os custos da manutenção do sistema; a GD crescendo sem ônus, amparada pelo discurso da liberdade energética.

Qualquer questionamento sobre o tema no Congresso é atacado imediatamente, e defensores da GD se apresentam como protetores do consumidor.

Nesse cenário, surge a Medida Provisória 1300, em maio de 2025, com mais de 600 emendas e expectativas de avanços: ressarcimento pelas perdas de curtailment, revisão de TUSD/CUST, critérios de autoprodução e tarifa social.

Parecia um alívio. Todas as fontes são importantes, e o equilíbrio da matriz é fundamental. O desequilíbrio, não.

A primeira decepção veio com a desidratação da MP: manteve avanços na tarifa social, mas frustrou profundamente as empresas de geração centralizada.

Contudo, o setor continuou acreditando, e a MP 1304, posteriormente convertida na Lei 15.269, reacendeu expectativas ao propor a modernização do setor elétrico. Representantes das empresas foram a Brasília.

O debate nacional girava em torno de uma palavra que o país inteiro aprendeu: curtailment. Com a proximidade da COP30 no Brasil, o discurso de matriz limpa parecia favorável. Mas o cenário mudou rapidamente.

As sugestões de compensação por curtailment e de divisão de custos da rede com usuários GD2 foram vetadas pelo Executivo.

A montanha não pariu apenas insegurança jurídica: trouxe um profundo questionamento sobre a capacidade de celebrar contratos de longo prazo com mínima previsibilidade. A cadeia produtiva do mercado centralizado: fabricantes de aerogeradores, pás, empresas de logística e construção, está se desintegrando a olhos vistos.

O que levou mais de uma década para ser construído sofre retrocesso acelerado. E isso tem recorte regional: grande parte dessa cadeia está instalada no Nordeste, historicamente carente de investimentos, onde o setor renovável melhorou indicadores sociais e econômicos.

O setor renovável projetou o Brasil no cenário internacional, criando expectativas para eólica offshore, hidrogênio verde e amônia.

Em algum momento, precisaremos aprender com nossos erros e garantir continuidade a projetos estruturantes de interesse nacional. Não podemos perder oportunidades de desenvolvimento em função de disputas que nada têm a ver com o país que desejamos construir.


Darlan Santos é diretor-presidente do Cerne.

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