Há duas semanas atrás, o mundo assistiu atento a uma histórica edição da Conferência das Partes das Nações Unidas (COP27), que ocorreu em Sharm el Sheik, no Egito.
Apesar da frustração dos países não terem definido o futuro em termo de uso dos combustíveis fósseis, peça fundamental no quebra-cabeça climático atual, foi aprovada a criação de um fundo para perdas e danos.
A aprovação pode ser observada sob diferentes ângulos. Por um lado, mostra que os países do norte estão dispostos a financiar, pelo menos em parte, a descarbonização dos países do sul.
Por outro, a criação do Fundo por si só não implica em resultados práticos positivos. É preciso articulação internacional para que os fundos sejam captados, mobilizados e direcionados aos países mais vulneráveis.
A cooperação internacional é, portanto, um elemento estratégico fundamental para a transição energética dos países e para que os mesmos possam atingir suas metas climáticas e ambientais. Apesar disso, é preciso pensar os termos destas parcerias.
A África do Sul é um caso emblemático pois 76% de sua energia primária advém do carvão, além de já ter sido o maior consumidor de petróleo do continente (25% em 2019).
O país tem se destacado na governança climática global por sua participação ativa, sobretudo durante a COP26, quando o país assinou o Plano de Transição de Energia Justa da África do Sul, que estabeleceu uma parceria de cooperação internacional com Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha e União Europeia.
Juntos, esses países formaram o International Partners Group (IPG) e se comprometeram a contribuir com US$ 8,5 bilhões para financiar a transição energética no país e reduzir a dependência do carvão na geração da eletricidade, até 2026. O plano previa que 90% dos fundos fossem usados para desativar usinas a carvão e incentivar empreendimentos que usem energia renovável.
Isso só aconteceu porque, em 2020, houve a criação de um órgão responsável por coordenação de políticas nesta área, a Comissão Presidencial do Clima (PCC). A comissão estabeleceu um diálogo nacional onde governo e organizações da sociedade civil (OSCs) sul africanas criaram um mecanismo de consulta a organizações locais que permitiu a capilaridade do tema na sociedade.
O modelo do país seria seguido pela Indonésia, Filipinas e pela Nigéria. Ou seja, a união entre o fortalecimento institucional da sociedade civil a nível nacional e a cooperação internacional com atores-chave promoveram um importante avanço, neste que é o maior poluidor do continente africano.
Doação, mas nem tanto
Durante a COP27, houve um avanço do detalhamento do plano e o governo da África do Sul oficializou o primeiro contrato para receber os recursos acordados previamente.
Apesar do otimismo em torno da parceria, passado um ano de sua assinatura, com os termos do acordo mais explícitos e a partir do início de sua implementação, controvérsias surgiram.
Análises ajudam a questionar se o plano realmente será benéfico ao país africano. Isso porque apenas uma parte dos montantes acordados será destinada ao país em formato de doação e 97% dos recursos prometidos pelos “doadores” será composta por empréstimos, que precisarão ser pagos futuramente, com juros.
Em um continente onde muitos países já apresentam consideráveis índices de dívida externa, sobretudo decorrente da pandemia de covid-19, propostas como essa podem representar ainda mais encargos financeiros às economias africanas.
Este tipo de resultado serve como um alerta aos outros países em desenvolvimento, pois a intenção dos países doadores tradicionais era de que o caso sul africano se tornasse um framework, um modelo que seria exportado para outros países do Sul geopolítico.
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Vantagens do Brasil
A participação institucional dos atores sociais em arranjos de transição energética poderia evitar que este tipo de situação acontecesse com o Brasil. O país já apresenta uma posição bastante diferenciada na governança climática internacional quando comparado a outros países em desenvolvimento.
Primeiro, porque além de ser um país que recebe cooperação internacional também é um país que pratica cooperação, especialmente a cooperação Sul-Sul.
Essa dupla identidade faz com que o Brasil consiga negociar ou barganhar os termos deste tipo de parceria com maior facilidade. Apesar da cooperação sul-sul ter sofrido uma significativa retração nos últimos quatro anos, o aparato institucional que trata do tema no Itamaraty continua presente, o que, inclusive, pode designar uma oportunidade de crescimento da atuação brasileira nesta área.
Em segundo lugar, o Brasil não precisaria estabelecer exatamente esse tipo de cooperação com os países desenvolvidos para financiar sua transição energética, porque o país já possui uma matriz energética e elétrica consideravelmente mais limpas do que vários dos outros países em desenvolvimento ou mesmo do Norte global.
Devido a esse pressuposto energético, a transição justa no Brasil apresenta muitas particularidades, sendo um processo menos demorado e custoso, do ponto de vista financeiro ou mesmo social.
Em terceiro lugar, as organizações da sociedade civil do Brasil já apresentam um nível de desenvolvimento institucional, de amadurecimento técnico-científico e de articulação internacional que muitos países em desenvolvimento não apresentam.
Esses capitais podem e devem ser mobilizados na definição de arranjos de cooperação internacional, a fim de evitar parcerias que possam ser custosas ao país.
Mudança de dentro
Internamente, já existe um debate sobre a institucionalização do tema transição energética dentro do aparato estatal brasileiro.
Inicialmente, com novo governo, a ideia é que haja uma secretaria da transição energética dentro do MME, que seria subdividida em três departamentos:
- energias da natureza (incluindo os temas energia solar e eólica)
- bioenergia (etanol e biodiesel)
- e novas energias e eficiência (que abarcaria o hidrogênio verde)
Além disso, há a proposta de criação de uma Secretaria extraordinária do clima ligada à presidência da República, o que aproximaria ainda mais o tema dos tomadores de decisão.
A participação institucional das OSCs no debate doméstico, nos moldes do que aconteceu na África do Sul pode, inclusive, ajudar a regulamentar os mercados de hidrogênio verde e eólica, fontes de energia consideradas controversas do ponto de vista social.
A primeira, por reproduzir a velha lógica imperialista e colonial presente na geopolítica energética, onde os países do sul adotam modelos de desenvolvimento voltados às necessidades dos países do norte.
- Neste caso, o hidrogênio verde seria produzido na região nordeste com a finalidade de atender a demanda europeia, além de apresentar possibilidades de riscos ambientais.
A segunda, já está produzindo impactos significativos e a ampliação de conflitos sociais, também no nordeste.
Caso não haja diálogo com a sociedade civil, ambas têm um potencial de ampliar conflitos sociais, a partir do estabelecimento de acordos de cooperação internacional.
Frente ampla e participação social
Durante a COP27, a ex-ministra de Meio Ambiente e agora deputada federal eleita Marina Silva (Rede/SP) afirmou que o Brasil deveria construir uma frente ampla com os governos estaduais e o federal para avançar com a agenda climática.
Pensar em atividades capilarizadas por meio do contato das OSCs com entidades subnacionais pode facilitar ainda mais o diálogo e a criação de consensos em torno da transição energética adequada para o Brasil.
Por exemplo, a reconstrução e retomada do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e demais conselhos que foram extintos na gestão atual, que contavam com ampla participação social e dos governos subnacionais, poderia ajudar a avançar no debate da regulação socioambiental da transição.
Ainda na COP, a participação da sociedade civil organizada brasileira foi um dos grandes destaques do evento. Com esperança renovada, as organizações marcaram posição, afirmando que o Brasil estava de volta ao chamado regime internacional das mudanças climáticas.
A vitória do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva trouxe novo fôlego para esses atores, que vinham sendo frequentemente excluídos da governança ambiental e climática dentro de seu próprio país e viram no cenário internacional um espaço para interlocução mais expressiva.
Ao longo dos últimos quatro anos, a cooperação internacional se tornou um ativo interessante e uma estratégia de mobilização das OSCs brasileiras diante dos retrocessos ambientais e climáticos.
Houve o estabelecimento de diálogo e parcerias, e a interlocução com atores internacionais conseguiu, por exemplo, paralisar o acordo Mercosul-EU, criticado por ser potencialmente nocivo ao meio ambiente, sobretudo à Amazônia brasileira.
Inserir institucionalmente as organizações da sociedade civil brasileira no processo decisório da transição energética, tanto domesticamente, quanto nos arranjos de cooperação internacional, pode ajudar a fortalecer este processo e concretizar uma transição justa e inclusiva no Brasil. Força nós já sabemos que elas têm.
Renata Albuquerque Ribeiro é pesquisadora Sênior na Plataforma CIPÓ, pesquisadora no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (DINTE-IPEA) e no Labmundo – Laboratório de Análise Política Mundial (IESP-UERJ). É doutora e mestre em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).
Foi consultora de Política Internacional no Instituto Clima e Sociedade e professora no Council on International Educational Exchange.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado