Qual a posição brasileira na regulamentação do Artigo 6 do Acordo de Paris?, por Ronaldo Seroa da Motta

Qual a posição brasileira na regulamentação do Artigo 6 do Acordo de Paris?, por Ronaldo Seroa da Motta

O Artigo 6 do Acordo de Paris cria dois instrumentos de mercado, cuja operacionalização deverá considerar as metas das NDCs. Os Artigos 6.2 e 6.3 estabelecem um instrumento para comercializar resultados de mitigação internacionalmente transferidos (ITMO), que seriam transações centralizadas e diretas de redução de emissões entre as Partes (países).

Já os Artigos 6.4 a 6.6 estabelecem um mecanismo descentralizado para transações, entre entidades públicas e privadas, de créditos de carbono gerados por projetos ou programas de mitigação de GEE. Os créditos são mensurados pelas reduções adicionais a uma linha de base de trajetória de emissões que ocorreriam sem a execução dos projetos. 

É um sistema similar aos mecanismos do Protocolo de Quioto. A principal diferença é que, no Acordo de Paris, todos os países têm metas descritas nas suas NDCs. Por isso, as Partes hospedeiras (transferidoras) e receptoras (compradoras) devem evitar dupla contagem de emissões ou créditos transacionados nos dois instrumentos do Artigo 6, realizando ajustes correspondentes aos montantes comercializados nas suas NDCs. Ou seja, quem vende aumenta sua NDC pela quantidade comercializada para possibilitar a quem compra deduzi-la de sua meta. 

Por falta de consenso em diversas questões, o Artigo ainda não foi regulamentado pela Conferência das Partes. Além da complexidade técnica do desenho de um instrumento que garanta integridade ambiental em âmbito global dentro do arcabouço do Acordo de Paris, há também interpretações distintas do próprio texto do Artigo que afetam sua integridade ambiental e sua atratividade de mercado. 

O Ministério das Relações Exteriores (MRE) enviou agora no início de abril uma submissão com uma proposta brasileira para os diálogos técnicos que estão sendo promovidos no âmbito do órgão subsidiário para auxílio científico e técnico do Acordo de Paris (SBSTA), tendo em vista a regulamentação do Artigo 6 na COP26, em Glasgow, em novembro de 2021. A parte dominante dessa submissão trata justamente da não aplicabilidade dos ajustes correspondentes no mecanismo do Artigo 6.4.

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Com isso, o Brasil entende que os ajustes correspondentes desse mecanismo não deveriam ser aplicados na primeira venda, isto é, somente nas vendas seguintes. A justificativa se dá em quatro níveis, a saber, jurídico: a aplicação desses ajustes não é legal porque não está previsto no Artigo 6.4, técnico: os créditos do mecanismo 6.4 são adicionais, logo, ambientalmente íntegros, institucional: a governança desses ajustes por projetos junto aos inventários nacionais é tecnicamente complexa para países em desenvolvimento sem capacidade institucional e econômico: os benefícios das vendas de créditos são privados e os custos de aumento da meta NDC para realizar tais ajustes são da sociedade como um todo.

Mesmo diante dessas restrições, o Brasil oferece uma proposta de conciliação que inclui um período de transição, a ser definido entre 2021 e 2030, no qual as atividades de projetos fora do escopo da NDC poderiam ser comercializadas sem os ajustes correspondentes.

Além disso, essa discriminação entre atividades fora e dentro da NDC será definida pelo país hospedeiro, de acordo com indicadores de políticas direcionadas ao cumprimento da NDC, e não seria necessariamente relacionada com os setores e gases que os países discriminaram nos seus compromissos de redução de emissões quando apresentaram as suas NDCs. A duração desse período deverá ser longa o suficiente para planejar a NDC e, ao final dele, haveria uma cláusula de revisão para avaliar essa experiência e decidir como proceder até 2030.

Em suma, aparentemente, o Brasil insiste na natureza voluntária das obrigações dos compromissos das NDCs, o que flexibiliza aos países em desenvolvimento o cumprimento de metas, tal como no Protocolo de Quioto. 

Essa tentativa de “quiotização” do Acordo de Paris fere o objetivo primeiro do Acordo, em que as responsabilidades comuns, mas diferenciadas, dos países seriam respeitadas na determinação nacional voluntária de seus compromissos para que, então, se possa garantir mais previsibilidade das metas de limitação/redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) para sua ampliação na trajetória para manter o aumento da temperatura global em 1.5o grau. 

Essa visão do Brasil, além do mais, carece de fundamentos técnicos, e sua interpretação não reflete o posicionamento de vários segmentos da sociedade brasileira.

Primeiramente, o Artigo 6.5 do Acordo de Paris diz explicitamente que as reduções de emissões geradas no Artigo 6.4 não poderão ser usadas para demonstrar o cumprimento da NDC do país que as vendeu, caso sejam usadas por outra parte para cumprimento da NDC de quem comprou. 

Em segundo lugar, aplicar ajustes correspondentes é uma questão técnica climática. Não há outra forma de se garantir que uma redução vendida seja usada por dois países ao mesmo tempo. Essa dupla contagem não está relacionada com a garantia de que as emissões dos projetos que vão gerar créditos para vendas no mecanismo 6.4 são adicionais, isto é, somente aconteceriam com o financiamento dos recursos das vendas desses créditos – que serão corretamente verificadas e monitoradas. Os créditos vendidos são reduções adicionais à trajetória atual de emissões daquela atividade e, caso não sejam realizados ajustes correspondentes, serão contabilizados para cumprimento da NDC do país que vende e na NDC do país que compra. Logo, a adicionalidade das emissões de uma atividade não evita dupla contagem das reduções por dois países, mas garante que as reduções realmente acontecerão e que o esforço de cumprimento do país vendedor será menor para cumprir sua NDC, caso não sejam feitos ajustes correspondentes. Se o Brasil objetiva financiamento para cumprir sua NDC sem ter de aumentar as suas metas, deve, então, criar programas de pagamento por resultados de financiamento climático e não trocas comerciais. Como, por exemplo, restabelecer o Fundo Amazônia onde tínhamos três bilhões de reais em doações sem qualquer vínculo com mercado de créditos de carbono.

Em terceiro lugar, menos realista ainda é a questão de governança. As experiências de gestão e contabilidade dos mecanismos do Protocolo de Quioto já permitem aos países a capacidade básica de assegurar um acompanhamento da geração desses créditos e incluí-los nos inventários nacionais, que irão acompanhar o cumprimento das NDCs. Atividade inventorial para qual a própria Convenção do Clima oferece uma gama de programas de assistência técnica.

Por último, um aumento de NDC para compensar ajustes correspondentes de um comércio de emissões será financiado por estrangeiros, o que trará investimentos ao país que não seriam viabilizados de outra forma. E, portanto, as trocas no Artigo 6, seja no mecanismo do Artigo 6.4 seja no Artigo 6.2, vão gerar empregos e ampliar o desempenho tecnológico do país dentro de uma trajetória de baixo carbono. Ao contrário, se não houver ajustes correspondentes, a possibilidade de o país atrair investidores será muito menor. A maioria dos países europeus potencialmente “demandantes” e países em desenvolvimento que são importantes “ofertantes” de unidades do Artigo 6 (por exemplo, Peru, Colômbia e Costa Rica) já são signatários dos Princípios de San Jose, que entre seus princípios está o compromisso com os ajustes correspondentes a fim de evitar dupla contagem.

Quanto à proposta brasileira de um período de transição, ela significa inequivocamente reduzir o esforço global de redução de emissões. E não está correta a premissa de que são políticas e medidas que definem essencialmente o escopo de uma NDC, mas sim os setores e gases cobertos. Caso contrário, não seria possível se estabelecer a necessária comparabilidade entre as NDCs. Mesmo que a discriminação de “dentro” e “fora” da NDC seguisse o escopo de setores e gases dos compromissos das NDCs, a não aplicação de ajustes correspondentes para atividades de fora do escopo da NDC constitui um incentivo perverso, pois irá desencorajar os países a apresentarem NDCs mais ambiciosas e resultará, para toda a economia, justamente no oposto do que se pretendeu no Acordo de Paris. Ademais, em um período de transição com regras flexibilizadas, a tendência seria uma facilitação na oferta de créditos sem uma demanda dos potenciais compradores. Ou seja, preços que não viabilizariam as atividades que se deseja promover.

Embora muitas das posições apresentados pelo Brasil não sejam novas, trata-se de posições que nunca haviam sido explicitadas em textos oficiais. Contudo, os argumentos apresentados parecem inconsistentes do ponto de vista legal, técnico, institucional e econômico.

Estudos estimam que os instrumentos do Artigo 6 podem gerar de US$ 58 bilhões a US$167 bilhões no período até 2030, se houver integridade climática e de mercado para incentivar esse comércio. Somente o Brasil poderia gerar receitas líquidas nesse período entre US$ 19 e 27 bilhões

Logo, a regulamentação do Artigo 6 não é só uma questão de respeito aos compromissos brasileiros no combate à mudança do clima, mas, também, de grande importância para uma recuperação verde e de baixo carbono do país.

Ainda que a submissão brasileira seja para apresentar uma proposta para os diálogos antecedentes COP 26 entre os países signatários do Acordo de Paris, seus argumentos não foram devidamente respaldados com a sociedade brasileira. E na forma que foram apresentadas podem prejudicar a até hoje exitosa reputação do país na Convenção do Clima, além de desvalorizar as vantagens competitivas do país com os instrumentos de mercado do Artigo 6. 

É importante consultar e rever esse posicionamento. Há um caminho de diálogo até a COP26 e o governo federal e/ou Congresso Nacional deveriam convocar a participação do setor empresarial e da sociedade civil para construírem, juntos, um posicionamento do país.

Ronaldo Seroa da Motta é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ()