Os planos de grandes empresas para alcançar o net-zero nas próximas décadas podem não funcionar ou até piorar a crise climática, por falta de detalhamento e ações reais, conclui um estudo conduzido pelas organizações Corporate Accountability, Global Forest Coalition e Friends of the Earth International.
As organizações tentam, com o relatório, chamar atenção para um risco de planos de sustentabilidade serem contaminados por saídas para a crise climática que não coloquem as economias globais na rota necessária, ameaçando a integridade dos planos de transição.
Trabalhos como o da Corporate Accountability têm ganhado força pelo mundo, especialmente em países ricos, como EUA e na Europa, sede das grandes corporações ocidentais do mercado de energia.
E têm pressionado. Na Holanda, uma corte local decidiu favoravelmente a um pedido para forçar a Shell a antecipar seus planos de transição, em uma ação inédita na indústria de óleo.
Um contraponto do mercado é que o corte de emissões por restrições na oferta, seja de combustíveis ou produtos, implica em preços mais altos para os consumidores. E custo significa acesso à energia.
É em meio a esse difícil equilíbrio econômico e climático que consumidores, de forma desigual pelo mundo, votam com o bolso, divididos entre a pressão em corporações por um mundo mais limpo e por acesso às energias na forma mais barata disponível.
Um dilema enfrentado no Brasil, intensificado pela inflação, que resultou em mais um programa de subsídio direto às fontes fósseis, com uma desoneração da ordem de R$ 3 bilhões para o diesel este ano, enquanto caminhoneiros falam em greve.
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Lupa nos planos net-zero
As organizações analisaram 17 planos net-zero (de neutralidade de carbono) de grandes corporações de setores variados — aviação, tecnologia, varejo, alimentos, além dos combustíveis fósseis.
Em entrevista à epbr, Rachel Rose Jackson, co-autora da pesquisa e diretora de Política Climática e Pesquisa da Corporate Accountability, afirma que a falta de detalhamento e ações reais nos planos net-zero atrasam a transição necessária para uma economia de baixo carbono.
“É importante ter em mente que net-zero é só um termo. Não existe um entendimento global do que isso significa e nem uma referência clara do que é necessário para alegar que um plano é net-zero”, afirma.
Segundo o relatório, há uma tendência de as empresas enxergarem no net-zero apenas um potencial para novas oportunidades de negócios, ao invés de restringir a produção e consumo de seus produtos poluentes a qualquer custo.
Na visão do grupo, três estudos de caso apontam planos net zero conservadores: da brasileira JBS, e das majors Shell e Total Energies – aliás, nova marca da companhia, que faz parte do grupo de petroleiras com planos de se tornar empresas amplas de energia.
No caso da JBS, os pesquisadores classificam como “preocupante e atrasado” o compromisso da maior produtora de carne do mundo de eliminar o desmatamento em sua cadeia de abastecimento até 2035.
“Se você olhar os detalhes do documento, a empresa afirma que planeja investir 1 bilhão de dólares nos próximos 10 anos no seu Programa Net-Zero, sem especificar em que esse programa consiste. Pelas poucas informações que temos sobre os projetos de pesquisa e desenvolvimento da JBS, esse montante deve ir principalmente para fortalecer distrações perigosas sobre captura, armazenamento e compensação de carbono”, explica Rachel.
“A única coisa concreta que podemos afirmar sobre o plano Net-Zero da JBS é que ela planeja continuar desmatando por mais quatorze anos”, completa a co-autora do estudo.
Em resposta, a JBS diz não tolerar desmatamento em sua cadeia de fornecimento, e que o relatório menciona fazendas e municípios que não fornecem para a companhia.
“A JBS está traçando seu plano com base em metas científicas, dentro da metodologia Science Based Targets. Sabemos que frear as mudanças climáticas é a única forma de continuarmos existindo enquanto pessoas, empresas, sociedade e planeta”, diz em nota.
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“Distrações perigosas”
O plano da Shell é criticado como “um roteiro para seguir os negócios como de costume”, diz o documento.
O compromisso da empresa de petróleo e energia é reduzir gradualmente a produção de óleo em cerca de 1% a 2% a cada ano.
No entanto, diz o relatório, a comunicação da Shell com seus acionistas indica que a produção de petróleo e gás da empresa ainda terá uma fatia relevante do seu orçamento de US$ 8 bilhões.
Outra crítica é em relação aos planos de compensação de emissões.
“Em 2035, a Shell precisará capturar e armazenar 25 milhões de toneladas de carbono por ano. Também se propõe a compensar um total de emissões de cerca de 120 milhões de toneladas por ano até 2030 e quer estabelecer um mercado global de soluções baseadas na natureza. Isso é irreal, dado que todo o mercado voluntário de compensação de carbono em 2019 era de apenas 104 milhões de toneladas”, calculam.
Para os ambientalistas, a companhia está contando com “distrações perigosas” para atingir emissões net-zero.
A controvérsia nos planos net-zero de majors do petróleo, por exemplo, não é novidade.
Em maio, um tribunal na Holanda decidiu favorável a uma ação movida por organizações da sociedade civil para obrigar a Shell a cortar suas emissões em 45%. A companhia recorre.
Ao comentar a decisão, o CEO da Shell, Ben van Beurden, escreveu que a estratégia é expandir os investimentos em energia com baixo teor de carbono, incluindo o fornecimento de carregamento de veículos elétricos, hidrogênio, energia eólica e solar e biocombustíveis.
Apesar de acreditar que a produção própria de petróleo tenha atingido pico em 2019, a empresa espera, escreve Ben van Beurden, continuar fornecendo energia na forma de produtos de petróleo e gás por muito tempo.
“Imagine que a Shell decida parar de vender gasolina e diesel hoje. Isso certamente cortaria as emissões de carbono da Shell. Mas não ajudaria nem um pouco o mundo. A demanda por combustível não mudaria. As pessoas abastecem seus carros e caminhões em outros postos”.
O esquema de compensação de emissões da Total Energies também é alvo de críticas no documento.
Segundo o documento, parte dos planos envolve a exploração de mais de 10 milhões de hectares de reserva de terra na África para o plantio de árvores.
“Grande parte dessas terras nesta área do Congo é o lar de pigmeus indígenas Aka e dos produtores rurais Bantu. (…) É provável que eles sejam despejados dessas terras pela Total ou pelo governo. A Total não abordou isso publicamente, alegando apenas que seus projetos de compensação criarão empregos e terão ‘impacto positivo para milhares de pessoas’”, alerta.
Procurada, a Total Energies no Brasil respondeu via assessoria que não se manifestaria.
Um marco comum da indústria é atingir a neutralidade de carbono em 2050, para colaborar com a meta de controle do aquecimento global em 2ºC ou menos prevista no Acordo de Paris.
O CEO da Total Energies, Patrick Pouyanné, é uma das principais vozes da indústria e tem buscado convencer investidores da necessidade de manutenção das opções de financiamento da transição de grandes corporações, como a sua, para garantir a capacidade de entrega de energia limpa no futuro.
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ENTREVISTA | Greenwashing atrasa a transição para uma economia de baixo carbono
Net-zero é a palavra da moda no mundo corporativo para dizer “neutralidade de carbono”.
Essa neutralidade é atingida quando as emissões são reduzidas “para o mais próximo do zero em um período específico e compensar quaisquer emissões remanescentes com projetos que removam gases da atmosfera”, define o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) da ONU.
Na prática, as grandes empresas inverteram o significado do termo: reduzir as emissões em zero por cento, tentando compensá-las com esquemas de captura e armazenamento de carbono (CCS). O problema é que esses esquemas podem não funcionar, alerta o relatório The Big Con.
A seguir, os principais pontos da entrevista com Rachel Rose Jackson, co-autora da pesquisa e diretora de Política Climática e Pesquisa da Corporate Accountability.
No estudo, vocês falam que há uma tentativa dessas corporações de esvaziar o sentido do termo Net-Zero. Por que?
Há uma grande tendência de anúncios de compromissos climáticos Net-Zero — foram mais de 1500 manifestações do tipo por grandes corporações apenas nos anos mais recentes.
Mas ao olhar o nível de detalhamento e implicações de alguns desses planos em diferentes indústrias, não apenas as de combustíveis fósseis ou de energia, você está absolutamente certa em aludir a uma espécie de greenwashing.
Raramente há detalhes ou ações reais nesses planos. E quando há algum nível de detalhamento, ele não corresponde à ação climática necessária naquele setor, e sim a mais poluição, negligência e abusos ambientais e climáticos.
A maioria dessas corporações têm um histórico de décadas de deturpação e cooptação de termos, fazendo com que eles sirvam à intenção específica de atrasar ações e manter as coisas como estão, assim eles podem lucrar.
O estudo mostra que isso está acontecendo novamente. Independentemente das oportunidades e promessas que a ideia de Net-Zero poderia ter tido algum dia, hoje um plano com essa denominação pode não apenas ser insuficiente, como pode estar causando mais estrago.
Você poderia dar mais detalhes de como as empresas estão fazendo isso?
É importante ter em mente que Net-Zero é só um termo. Não existe um entendimento global do que isso significa e nem uma referência clara do que é necessário para alegar que um plano é Net-Zero.
Há ações que tentam estabelecer parâmetros para o uso do termo, mas essas iniciativas são lideradas pelas próprias indústrias ou por organizações amigáveis a elas.
Há uma decisão deliberada de tornar o termo intencionalmente pouco claro, em parte porque as indústrias não querem o estabelecimento de parâmetros que permitam que elas sejam cobradas.
Quando olhamos para os detalhes dos planos, muitos deles não conseguem demonstrar nem mesmo que as emissões serão reduzidas em algum nível.
E o mais grave: esses anúncios estão servindo para disfarçar produtos intensivos em emissões de carbono.
Ou seja, as corporações continuam planejando aumentar pesadamente as emissões enquanto apostam em distrações perigosas, como as compensações de emissões de carbono.
Muito do investimento feito em inovação e tecnologia como parte dessas ações são na verdade a continuação das iniciativas que já estavam previstas pelas indústrias.
O que jornalistas e analistas devem observar quando planos Net-Zero são anunciados?
Uma importante questão é se o plano Net-Zero considera um inventário de emissões em três escopos, sendo o primeiro as emissões diretas [consumo de combustível e outras matérias-prima, por exemplo], o segundo as emissões indiretas [consumo de eletricidade para as operações] e o terceiro as emissões indiretas de terceiros implicados na cadeia de fornecimento.
Verificamos que muitas empresas assumem compromissos de Net-Zero sem considerar as emissões do escopo 3.
No caso do Walmart, essas emissões são 95% do total, mas o plano climático da empresa nem menciona esse segmento.
Outras perguntas importantes são: quantas operações da companhia estão comprometidas com as metas do plano climático? Qual o percentual de emissões que a empresa pretende reduzir com o plano ou quantos gigatons a empresa pretende compensar?
Também podemos perguntar sobre investimentos.
Muitos planos estão lançando o que parece ser investimentos bilionários em inovação ou ciência, mas esse dinheiro acaba financiando tecnologias que serão usadas, por exemplo, para retirar ainda mais petróleo em locais de difícil extração.
Outra tática muito útil é sair um pouco do plano climático apresentado e adentrar mais nos aspectos de reputação.
Por exemplo, quanto a corporação está investindo na eleição de políticos que negam a emergência climática, e se a empresa financia algum lobby para enfraquecer regulamentações ambientais.
Frequentemente, vemos supostos campeões de ambição climática que têm um histórico totalmente contrário à defesa do meio ambiente.
O relatório afirma que muitos dos falsos estudos usados por empresas para embasar seus planos climáticos foram feitos em instituições de pesquisa de enorme prestígio. Que tipo de discussão a comunidade acadêmica tem feito sobre isso?
Acredito que o silêncio diz tudo que eu preciso saber. Eu não tenho notícia de nenhuma resposta pública das instituições acadêmicas e de seus parceiros sobre a clara influência que essas empresas têm nas pesquisas que elas mesmas financiam e que as universidades apresentam ao mundo como sendo confiáveis.
Há uma tendência no mundo político de distanciamento em relação às empresas poluidoras, e as instituições acadêmicas deveriam fazer o mesmo.
E não basta apenas se comprometer a não receber financiamento desses segmentos.
Se as organizações acadêmicas quiserem mesmo ser vistas como autoras de rigorosas e transparentes pesquisas científicas sobre clima, elas não podem dormir na mesma cama com a indústria de combustíveis fósseis e de outros poluentes.
Vocês denunciam no relatório o uso de estratégias de compensação de emissões no lugar dos cortes. E nesse caso as soluções baseadas na natureza parecem ser a estratégia preferida das corporações. Só que esses mecanismos são bastante atraentes para o Brasil, onde o reflorestamento é uma medida necessária. Como você avalia esse dilema?
Uma coisa que nós definitivamente precisamos fazer para reduzir drasticamente as emissões é preservar as florestas e os ambientes naturais do planeta que absorvem carbono. Isso é essencial.
Mas quando olhamos para esses planos climáticos, isso não é o que os poluidores estão planejando ou divulgando.
É importante entender que nós precisamos de uma redução drástica das emissões oriundas dos combustíveis fósseis porque a natureza tem uma capacidade limitada de absorver carbono.
Quando eles dizem “Soluções Baseadas na Natureza”, eles querem comprar o direito de continuar emitindo intensivamente, mas usando uma maquiagem. Essa atitude nos levará diretamente à catástrofe climática.