A tradução literal da palavra de língua inglesa “sandbox” é caixa de areia. Isso mesmo, daquelas que as crianças, estando em um lugar seguro, usam para brincar e ali reproduzir toda a sua imaginação criando cenários, personagens, estruturas e histórias, com infinitas possiblidades e simulações.
A literalidade extraída acima nos convida facilmente à analogia: uma política (regulatória ou não) por sandbox, portanto, é aquela experimental que se baseia na realização de testes e simulação de hipóteses regulatórias a serem aplicáveis a um caso concreto sem que se altere o quadro regulatório vigente.
Trata-se, assim, de uma de um ambiente regulatório experimental em que se testam possibilidades, tendo como premissa a lógica do planejamento, para que, após o período de teste, se possa formular um arcabouço regulatório geral ou alterar o já existente.
O instrumento teve sua origem associada à regulação dos dinâmicos mercados financeiros , sendo que a primeira “sandbox regulation” oficialmente conhecida foi a implementada pela FCA (Financial Conduct Authority) no Reino Unido, na época definida pelo regulador inglês como um “espaço seguro” no qual, de um lado, as empresas podem testar produtos, serviços, modelos empresariais e mecanismos de entrega inovadores sem incorrer imediatamente em todas as consequências regulatórias e concorrenciais normais daquela atividade regulada, ao passo que, por outro lado, o regulador pode observar e testar os impactos e efeitos do experimento, como se pode verificar no documento disponível no link: https://www.fca.org.uk/publication/research/regulatory-sandbox.pdf.
O mecanismo então testado pela FCA, considerado ainda recente (com estudos mais aprofundados publicados em 2015), foi apontado como potencialmente eficiente do ponto de vista concorrencial e em prol não apenas do interesse coletivo mas do mercado como um todo, por razões pragmáticas bem interessantes:
(i) redução do tempo e do custo para novos projetos e ideias estarem disponíveis no mercado para o consumidor;
(ii) e maior facilidade de financiamento dos projetos inovadores, pois as hipóteses eram testadas previamente e isso implica em garantia não só para quem investe ou financia, mas para o mercado que daquele projeto se beneficiará;
Em suma, um instrumento facilitador de inovação.
O caso concreto da FCA consistia em destravar o desenvolvimento de inovações no setor FinTech (“financial” e “technology”, majoritariamente startups que trabalham para inovar e otimizar serviços do sistema financeiro mas com um custo operacional inferior às tradicionais instituições) do Reino Unido, ao criar um ambiente propício para concorrência efetiva entre empresas do mercado financeiro, mesmo sendo elas de pequeno porte e aparentemente não comparáveis com as tradicionais empresas do ramo.
No espaço seguro, as empresas poderiam desenvolver seu potencial, protegidas da aplicação de uma regulação que, por não ter sido especificamente endereçada a elas, estaria, potencialmente, inibindo um processo de inovação no segmento em apreço.
Assim, a intenção da FCA com a aplicação do conceito de sandbox foi garantir que se criasse um espaço próprio para o desenvolvimento de modelos e produtos atrativos para o consumidor e, ao mesmo tempo, manter um quadro regulatório mais geral direcionado à estrutura mais madura do setor em teste.
Importante ressaltar a necessidade de se estabelecer critérios para a seleção das empresas aptas a participarem do experimento.
Tomando-se como exemplo o já mencionado caso inglês, interessante notar quais foram os critérios de elegibilidade adotados e como estes demonstram uma preocupação com a efetiva inovação e em impedir a utilização abusiva do mecanismo para formar reservas de mercado:
(i) se a nova solução ou projeto foi concebido para apoiar a indústria de serviços financeiros, ou seja, se traria eficiência a uma estrutura já existente;
(ii) se a nova solução ou projeto seria efetivamente novo ou significativamente diferente de soluções já existentes;
(iii) se a inovação beneficiaria concretamente os consumidores;
(iv) se a empresa teria uma intenção genuína de realizar testes no âmbito do sandbox e não meramente de criar uma situação de proteção regulatória, (regulation shielded) como meio de obter uma vantagem;
(v) se para o desenvolvimento da solução inovadora a empresa teria investido recursos de forma aderente à regulação aplicável e tendo em consideração eventual mitigação dos riscos envolvidos;
A experiência da FCA nos chama a atenção não só pelo que uma regulação por sandbox pode alcançar, mas também por ser um exemplo de planejamento e objetividade regulatória, sobretudo enquanto mecanismo regulatório disruptivo que evidencia o esforço do regulador em se manter atual e comprometido com soluções eficientes, de incentivos e responsivo à realidade.
Nem tudo são rosas, claro, e como toda medida política, há que se ter atenção na sua execução para evitar vícios e efeitos indesejados (perverse effects) que somente são aprimorados na prática e com o tempo.
Não obstante a genial ideia do sandbox, era inevitável que surgissem também algumas críticas ou pontos de atenção após a sua implementação (que podem ser consultadas no report da própria FCA intitulado “Regulatory sandbox lessons learned report”) dentre as quais destacamos as questões pontuadas por Dan Quan[1], do Cato Institute’s Center for Monetary and Financial Alternatives da Universidade de Standford: necessidade de divulgação máxima do projeto que se pretende na sandbox (garantir maior alcance a todos os interessados) e o cuidado e planejamento prévio que a Agência Reguladora precisa ter, como é bem abordado na doutrina dos professores Robert Baldwin e Julia Black no paper “Really Responsive Regulation”.
No Brasil, o mecanismo de sandbox surgiu muito recente e no contexto de inovação para mercado financeiro via Instrução CVM nº 626, de 15 de maio de 2020 que “dispõe sobre as regras para constituição e funcionamento de ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório)”.
Da leitura do dispositivo, verifica-se na definição legal: as finalidades (semelhantes aos da FCA, dispostos logo no artigo 1º da Instrução mencionada), criação de um Comitê especifico com funções pré-definidas e os critérios mínimos de elegibilidade para participação no sandbox regulatório e como serão escolhidas as propostas e projetos.
Aproximando do assunto ao qual nos dedicamos no dia a dia, importante lembrarmos que o setor de energia no Brasil, assim como a maioria dos setores de infraestrutura, demonstrou paradoxalmente que a regra é um ambiente dinâmico marcado por contínuo processo de adaptação ou seja, a garantia é a constante mudança dos interesses e recursos, que devem atender ao setor, ao mercado, à sociedade e equilibrar desafios como sustentabilidade e financiabilidade.
Para tanto, como já frisamos em oportunidades diversas, não há como fugir da necessidade de se repensar a regulação e um regulador que seja responsivo e aberto para a construção de soluções em conjunto com a sociedade e o mercado, o que parece ser a única forma de lidar com problemas tão complexos e cada vez mais multidisciplinares.
Neste contexto, a possibilidade de se utilizar sandbox para simular a viabilidade de assuntos inovadores e que requerem planejamento, testes e ajustes prévios às mudanças efetivas no quadro regulatório vigente se mostra como uma ótima opção e com grande potencial de efetividade ainda pouco explorado.
O desenvolvimento de novas tecnologias e projetos (hidrogênio, por exemplo, sem prejuízo de diversos outros), ou de modelos de negócios, independente do porte, pode ser mais célere e agregar mais benefícios de uma forma geral se houver uma regulamentação do que seria um “projeto piloto” ou fase de testes.
Um exemplo pioneiro e justamente no setor de energia é o da Geração Distribuída para constituição de Microrredes[2], que possibilita aos geradores menores vender a energia gerada para a distribuidora, que fica responsável pelo controle e segurança da operação e, com isso, alimentará um grupo de consumidores próximos.
O projeto-piloto durará 5 anos, com autorização da ANEEL de um sandbox regulatório – na qual algumas regras podem ser flexibilizadas e/ou alteradas, com duração e condições previamente delimitadas para que os agentes do setor possam realizar inovações.
No entanto, os resultados, caso sejam eficientes, podem embasar novos passos rumo a esta modalidade de compra e venda de energia.
Ficam, aqui, sementes para cuidarmos e fazer florescer – através do estudo – neste contexto de regulação que queremos que caminhe cada vez mais para a descentralização, planejamento, inovação e cooperação múltipla.
Os próximos passos para implementar a sandbox no setor de energia, quais seriam os casos elegíveis e como eleger os projetos, essas e outras são questões já maduras e interessantes o suficiente para ocuparem uma Audiência Pública, Análise de Impacto Regulatório e, confirmadas a sua viabilidade, serem devidamente regulamentadas para destravar muitas oportunidades que certamente contribuirão para a transição energética e diversificação da matriz.
[1] https://pacscenter.stanford.edu/a-few-thoughts-on-regulatory-sandboxes/
[2] https://www.copel.com/hpcweb/microrredes/
Maria João C. P. Rolim é sócia do Rolim, Viotti, Goulart Cardoso Advogados. Doutora em Direito de Energia pelo Centre for Energy, Petroleum and Mineral Law and Policy (CEPMLP) da Universidade de Dundee/Escócia, LLM pela London School of Economics (LSE) – (Energy Markets). Mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduada em Direito e Economia
Alice de S. Khouri é advogada do Rolim, Viotti, Goulart Cardoso Advogados. Doutoranda em Direito e Economia na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas)
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