Lei do Gás não garante o direito ao livre mercado para todos os consumidores

A nova lei do gás deve garantir a gradativa evolução do mercado de gás na direção de um regime de efetiva e ampla concorrência, escreve Bruno Armbrust

Citygate (ponto de entrega de gás) da Compagas, distribuidora de gás natural do Paraná; Rede de gasodutos nas cores amarela e vermelha, com trabalhador realizando inspeção; veste uniforme azul e capacete branco (Foto: Divulgação)
Citygate (ponto de entrega de gás) da Compagas (Foto: Divulgação)

A aprovação do regime de urgência na tramitação do PL 6407/2013 intensificou os debates sobre o tema nas últimas duas semanas. Os que são a favor de uma rápida aprovação do projeto, sem modificações em seu texto, sustentam afirmam que o projeto alavancará rapidamente expressivos investimentos, e que aprovado o PL, ocorrerá também uma rápida e significativa redução dos preços do gás aos consumidores. Particularmente, tenho algumas dúvidas quanto a essas duas afirmações, e principalmente, se essa esperada redução significativa do custo do gás chegará efetivamente a todos os consumidores.

Antes de contextualizar as razões dessas dúvidas, é importante remarcar que o principal objetivo de um processo de liberalização do mercado de gás natural deve ser o de disponibilizar ao cliente final um fornecimento seguro a preços competitivos, ampliando a possibilidade real dos consumidores elegerem seu fornecedor. O aumento dos investimentos virá como consequência de uma maior competitividade dos preços e do provável aquecimento da demanda.

No que se refere aos esperados investimentos, que muitos asseguram que o projeto trará, os mesmos estarão sempre condicionados a evolução da demanda, que por sua vez, dependerá da competitividade do preço do gás e do ritmo de crescimento do país. O investimento virá, se houver demanda, e onde fisicamente estiver essa demanda.

A demanda terá que voltar a crescer em altas taxas para viabilizar os investimentos, e essas altas taxas dependerão diretamente de alguns mercados âncoras, como por exemplo: térmicas a gás operando na base, um grande programa de uso do gás natural nos transportes, ou mesmo novas plantas industriais intensivas em gás. No entanto, não se vê nesse momento nada de concreto nessa linha. Investimentos expressivos que não venham acompanhados de um crescimento substancial da demanda acabarão por levar ao aumento do custo final do gás ao mercado, e à ineficiência do setor.

Na última década, o gás natural, por diversas razões, veio perdendo competitividade frente a outros energéticos, com efeitos diretos na redução da demanda. Esse fator, somado ao baixo crescimento do país, fez com que o consumo convencional de gás ficasse estagnado, e, em muitos estados, apresentasse inclusive uma redução expressiva, como a que ocorreu no Rio de Janeiro. O crescimento da demanda por gás no país, nessa última década, se deu basicamente, pelo seu uso na geração termelétrica, e esteve sempre condicionada a fatores climáticos, portanto, com efeitos sazonais e conjunturais.

É certo que o uso do gás na geração termelétrica contribuiu para o aumento no consumo de gás no país. Por outro lado, provocou um efeito nocivo no mercado. Como a Petrobrás deveria garantir a oferta para o despacho full das térmicas, comprava nessas ocasiões o GNL mais caro, e usava toda a capacidade do sistema de transporte, que durante parte do ano ficava subutilizado. A Petrobras, por seus compromissos de garantir o fornecimento de gás para geração, se via obrigada a manter uma política de preços com viés de alta, como forma de controlar o crescimento da demanda.

A ausência de concorrência, que marcou o setor do gás nas últimas décadas, limitou o ritmo de crescimento do mercado de gás no país. Nesse período, a impossibilidade do acesso de terceiros à infraestrutura de escoamento e processamento obrigava outros produtores a entregar o gás à Petrobras a preços irrisórios. O mesmo gás era revendido pela estatal às distribuidoras e chegavam ao consumidor final com preços bem mais elevados e portanto, pouco competitivos.

O Termo de Compromisso de Cessação de Prática, recentemente firmado entre a Petrobrás e o Cade, tem o objetivo de corrigir essa distorção, mas seria fundamental, que em complemento ao TCC, o PL 6407/2013, garantisse que esses volumes de gás de terceiros, que a Petrobras deixará de comercializar, venha a ser, num primeiro momento, ofertado prioritariamente e por meios de leilões, ao mercado livre, evitando dessa forma, que seja direcionado ao uso em térmicas ou mesmo, a umas poucas grandes indústrias.

Nesse novo contexto, o PL 6407/2013 surge como um elemento fundamental para consolidar os avanços do TCC, e ao mesmo tempo, garantir que continuaremos na direção do livre mercado, e da efetiva concorrência na comercialização de gás no país. A tão falada convergência dos agentes do setor, quanto a necessidade urgente de se aprovar o PL 6407, não pode ser usada como justificativa para se aprovar um texto pouco arrojado, e que está muito distante de ser comparado aos marcos regulatórios mais abertos e modernos.

A ausência de um regime de concorrência no mercado de gás provocou graves prejuízos ao país nos últimos anos. Portanto, se faz necessário uma nova lei que reflita as melhores práticas existentes em mercados abertos, e que garanta, que todos os consumidores, sem exceção, tenham resguardados os mesmos direitos de livre escolha e direitos de eleger seu comercializador.

Para tanto, seria fundamental a realização de alguns aperfeiçoamentos e adições ao texto do projeto, no capítulo da comercialização, que está longe das melhores práticas vistas em países que tiveram sucesso na abertura de seus mercados. O projeto deveria deixar explícito que todo cliente tem o direito de ser livre e de eleger seu comercializador, evitando que os estados por meio dos contratos de concessão ou por atuação de suas agências reguladoras venham impor limites para um consumidor ter a liberdade na escolha de seu comercializador de gás.

Poderia citar muitos exemplos dessa desordem de critérios entre os diferentes estados na definição dos consumidores que podem ser livres ou não. Exemplo mais recente é a consulta pública lançada pela Agência Reguladora de Saneamento e Energia do estado de São Paulo (Arsesp), que em sua proposta, exclui os consumidores comerciais e residenciais, do rol de consumidores que poderiam contratar gás no mercado livre.

A tão necessária “Harmonização Regulatória” defendida por todos não deveria estar baseada num caderno de “Melhores Práticas Regulatórias”, como propõe o Ministério de Minas e Energia (MME), mas sim, no texto da Lei, como forma de garantir que todos os estados adotem os mesmos critérios. E que todos os consumidores tenham, no médio e longo prazo, o direito de eleger seu comercializador.

Dentre os pontos que deveriam ser incluídos no Capítulo VII do projeto, que trata da comercialização, destacaria:

  • Os estados não poderão impor limites para um consumidor ser livre, seja por volume ou por classe de consumo. Atualmente cada estado define, a seu critério, quem pode ou não ser livre;
  • Os estados, terão, a partir da promulgação dessa Lei, um prazo determinado para obrigar que as concessionárias de distribuição de gás, promovam a separação societária e administrativa entre as atividades de distribuição e comercialização;
  • As comercializadoras, oriundas da separação das atividades de distribuição e comercialização das atuais concessionárias de distribuição de gás, serão designadas Comercializadoras de Última Recurso (CUR), continuando a fornecer o gás aos clientes que decidam permanecer como clientes cativos. A esses seriam aplicadas Tarifas de Comercialização de Último Recurso – TUR, reguladas pelas agências reguladoras estaduais;
  • Será permitido aos clientes residenciais o direito de voltar a Tarifa de Último Recurso – TUR, mesmo depois de sua eventual migração para o mercado livre;
  • Os grupos verticalmente integrados poderão atuar nas atividades de distribuição e comercialização, concomitantemente, desde que com CNPJs e nomes distintos.
  • Deve-se garantir, no texto do PL, o pleno e indiscriminado acesso ao sistema de transporte e distribuição, e a obrigação de “usar ou ceder” a capacidade contratada, quando um comercializador (não o carregador) perder para outro, o contrato de fornecimento de gás com o consumidor final. Nessa hipótese, o direito de uso das capacidades de transporte e distribuição passa automaticamente para o novo comercializador;
  • A ANP, em coordenação com as agências reguladoras estaduais, deverá estabelecer critérios homogêneos, objetivos e transparentes para as condições de migração de clientes do mercado cativo para o mercado livre, estabelecendo uma plataforma de fácil comunicação dos câmbios de comercializador e das tarifas vigentes;
  • Os comercializadores deverão estabelecer contratos de demanda e movimentação do gás com as distribuidoras, e não com os consumidores livres. Cabe, nesse aspecto, ressaltar que é prática nos mercados já liberalizados, que o comercializadores detêm o contrato com o cliente livre, e são responsáveis por faturar o fornecimento do gás, incluindo na fatura os custos de transporte e distribuição.

A Constituição Federal de 1988 adotou a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica e dos Princípios Gerais da Atividade Econômica. Faz menção também a livre concorrência e a defesa do consumidor. A livre concorrência permite ao consumidor adquirir um produto a um menor preço. A liberdade de iniciativa envolve o livre exercício de qualquer atividade econômica.

A Câmara de Deputados que votará o PL 6407/2013 nos próximos dias cumpre, dentre outras, a função de representar o povo brasileiro. O texto atual do projeto está longe de garantir a todos os consumidores, sem exceção, o direito de livre escolha de seu comercializador de gás.

Já perdemos muito tempo. A nova lei do gás deve garantir a gradativa evolução do mercado de gás na direção de um regime de efetiva e ampla concorrência, e para tanto, não podemos permitir que a pressa em aprovar o projeto venha deixar alguns aspectos relevantes de fora do texto da nova lei, sob pena de perdemos uma nova oportunidade.

Bruno Armbrust foi presidente do grupo espanhol Naturgy no período de 2007 a 2019 e é atualmente sócio da ARM Consultoria, que presta consultoria para comercializadoras e distribuidoras de gás.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.