Nas últimas décadas, a interação do governo e da sociedade brasileira com o ambiente de exploração de petróleo e gás natural ocorreu dentro de um contexto essencialmente doméstico. Isso, de certa forma, fortaleceu o governo vigente para interpretar da forma que quisesse os direitos de exploração e produção de petróleo e gás natural, bem como todo o aparato burocrático e fiscal relacionado ao mesmo.
A sociedade, como sócia majoritária do processo e da utilização dos recursos provenientes, entendia que esta atividade era apenas mais uma categoria de política pública.
Com o crescimento da narrativa ao redor das energias renováveis, por meio do setor privado assim como de organizações multilaterais, a política energética brasileira passou a ter uma característica mais internacionalizada, se tornando uma parceira importante para a narrativa ambiental.
Se o ambiente político brasileiro ainda trata as ambições ambientais e energéticas como antagonistas, a expectativa global sobre o papel do Brasil forçou o governo brasileiro a compreender que se trata de dois lados da mesma moeda.
É fato que ainda há um equilíbrio mundial do poder na geopolítica energética de ambas as energias, tradicionais e renováveis. Muito provavelmente elas coexistirão por um bom tempo.
As recentes ações e intenções venezuelanas em relação a Guiana, colocam o Brasil forçosamente em um jogo geopolítico bem mais amplo do que simplesmente a fator fronteiriço.
A Venezuela confia no Brasil como agente neutro por opção ou neutro por inação. Independentemente do tipo de neutralidade, a Guiana, alvo do momento do regime bolivariano, entende que o Brasil é o parceiro ideal para a sua expansão comercial, mas não para mediar e/ou neutralizar as ações venezuelanas.
Nicolas Maduro entende que a Venezuela bolivariana possui poucas opções no momento. Dívidas impagáveis, dificuldades técnicas de exploração, sanções, falta de credibilidade, sócios complexos (Rússia, Irã, Cuba, China) e uma candidata presidencial da oposição que pode, finalmente, ganhar as eleições, coloca-o contra a parede e com pouca margem de manobra.
Uma dessas poucas margens de manobra é a criação de um fato novo, extraordinário e tão cataclísmico que, dando certo, poderia resolver vários problemas financeiros, além de atrasar, indefinidamente as eleições presidenciais. Uma invasão à Guiana não seria complexa e não alteraria substancialmente a rejeição internacional já existente em relação à Venezuela.
Nossa cobertura
- Maduro quer prazo para petroleiras pararem de operar em Essequibo
- Referendo na Venezuela aprova incorporação de Essequibo
- Invasão da Guiana teria que passar pelo Brasil e desagradaria a China, diz Ian Bremmer
- Venezuela faz referendo e Lula pede “bom senso” para evitar guerra
- Lula diz que teme guerra e pede ‘bom senso’ a Venezuela e Guiana
- Venezuela faz referendo neste domingo em escalada da tensão com a Guiana
- Referendo na Venezuela aumenta tensão com Guiana; entenda
- Entenda como o leilão de petróleo na Guiana reacende disputa territorial de quase 2 séculos com Venezuela
Um ponto de grande importância é que para a Venezuela obter uma vitória nesse debacle com a Guiana, ela não necessita executar uma invasão per se. Burocraticamente, dentro da Venezuela, o processo de anexação já está bastante avançado.
No momento em que anuncia o novo mapa do país e designa um governador para a região anexada, seu comportamento passa a ser voltado para a mediação e não mais para a agressão. Essas sutilezas são, muitas vezes, suficientes para alterar a dinâmica política doméstica em um país convulsionado como a Venezuela.
Geopoliticamente falando, essa “invasão” à Guiana, impacta o tabuleiro global num interessante efeito dominó:
- Os Estados Unidos passam a rever o acordo de afrouxamento das sanções. O processo de negociação entre EUA e Venezuela visava afrouxar sanções em troca de uma certa transparência eleitoral. Na prática, se trata de um acordo essencialmente ruim para Venezuela, pois a “transparência eleitoral” é a garantia de derrota.
- Toda tensão em torno da Guiana traz a petrolífera americana Exxon para o jogo, com suas reservas de cerca de 11 bilhões de barris de petróleo e gás natural. Isso força os EUA a mudar seu posicionamento em relação ao afrouxamento de sanções.
- A Rússia se interessaria por um processo de anexação venezuelana dentro de um contexto histórico. Isso alimentaria a sua própria narrativa em relação a determinados territórios ucranianos.
- Mais do que isso, a Venezuela possui grandes dívidas com a Rússia. Parte dessas dívidas são pagas por meio de mineração de ouro. A possibilidade de utilizar novas minas na Guiana, facilitaria a equalização de algumas dívidas e o retorno para uma parceria mais estratégica do que a anunciada entre os dois países.
- Além disso, a Rússia adoraria mais um foco de instabilidade global para desinflamar a atuação e influência americana na Ucrânia.
- Já a China, principal credora da Venezuela, também desejaria ver novas fontes de pagamento emergindo. No entanto, a crescente relação entre China e Guiana, faz com que a China adote um tom mais silencioso em relação às atuações venezuelanas.
Neste quebra cabeça geopolítico, o Brasil já está envolvido ao máximo. A fronteira brasileira, que oferece a única passagem viável ao exército venezuelano em caso em uma invasão por terra, já coloca o governo brasileiro em uma participação obrigatória no processo.
As ações recentes do governo venezuelano levantam questões importantes para o futuro de alguns recursos naturais essenciais.
No caso brasileiro, a exploração de hidrocarbonetos na Faixa Equatorial do Oceano Atlantico, na denominada Margem Equatorial, que engloba porções offshore no litoral do estado do Rio Grande do Norte até o Amapá, acaba se tornando uma via de âncora para a garantia da segurança e soberania nacional.
Com seu potencial geológico reconhecido mundialmente e estimativa provável de cerca de 15 bilhões de barris de óleo equivalente recuperáveis nas áreas contratadas, esta região necessita, de forma urgente, de criação de valor, prevenindo-se contra as perdas decorrentes de eventuais recursos petrolíferos “encalhados”.
Vale registrar que a Guiana, pequena territorialmente e pobre, amazônica por suas florestas, com balanço neutro ou negativo de carbono, tomou a decisão política de explorar seus recursos petrolíferos como opção de reduzir a pobreza rumo a um desenvolvimento ecologicamente sustentável.
A divisão global, a partir da “Guerra Fria 2.0” entre EUA e China, levou a criação de polos distintos. O polo sob a liderança chinesa, envolve países que estão sob sanções dos Estados Unidos ou excluídos da comunidade internacional por uma razão ou outra. Venezuela, Rússia, Irã entre outros estão dentro desse clube.
O Brasil, buscando exercer sua liderança por meio da neutralidade, está caminhando sob uma fina camada de gelo, pois busca exercer tal neutralidade apenas no campo do antagonismo com o lado liderado pelos EUA, enquanto críticas mais contundentes em relação aos países dentro do “grupo” China, são esporádicas.
A real liderança brasileira nessa questão entre Venezuela e Guiana será demonstrada por meio da neutralidade ativa e reforçada pelos valores que fazem um país um líder regional: defesa infalível da democracia e das regras internacionais acordadas entre os países, incluindo a soberania da Guiana sobre Essequibo, até que a Corte Internacional diga outra coisa.
Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.
Guilherme Eduardo Zerbinatti Papaterra é especialista sênior em Regulação de Petróleo e Gás Natural da Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP), Mestre em Geologia, Especialista em Política e Estratégia.
Thiago de Aragão é sociólogo, Mestre em Relações Internacionais, Pesquisador Associado do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington e do Instituto das Américas na Califórnia, CEO da Arko Internacional.