Em razão dos compromissos ambientais assumidos no âmbito da 21ª Conferência do Clima (COP 21) de reduzir a emissão de carbono, reduzindo a emissão de gases do efeito estufa (GEE), cada vez mais diversos países têm buscado fontes alternativas para a geração de energia em substituição aos combustíveis fósseis mais poluentes, como o óleo combustível, diesel e a gasolina (entre outros).
Nesse cenário em que, por um lado, há grande preocupação ambiental, e por outro, a necessidade de se preservar a segurança energética, cada vez mais o gás natural tem se apresentado como uma alternativa viável para uma transição para energias mais limpas, sendo incorporado à matriz energética de várias nações.
O Brasil, por sua vez, conta com grande capacidade de oferta desse energético, o qual se encontra principalmente nos campos de produção de petróleo. Entretanto, embora a produção de petróleo e de gás no país seja realizada há décadas, até o momento a indústria do gás natural não se desenvolveu como poderia, inclusive por ter sido concentrada em praticamente um único agente que atuava em todas as etapas da sua cadeia de valor.
Com vistas a formar um mercado de gás natural aberto, dinâmico e competitivo,o Governo Federal lançou, em 2019, o programa “Novo Mercado de Gás” (“NMG”), que possui como objetivo principal a promoção de condições para a redução do preço desse insumo para, ao final, contribuir com o desenvolvimento econômico do Brasil.
O NMG é baseado, portanto, em quatro pilares fundamentais com vistas a tornar ogás natural mais competitivo no País, quais sejam:
- (i) promover a concorrência;
- (ii) harmonizar as regulações estaduais e federal no setor;
- (iii) estimular a integração do setor de gás com os setores elétrico e industrial;
- (iv) e remover barreiras tributárias que impeçam a abertura do mercado e a competição.
Embora todos os pilares acima mencionados sejam relevantes para se alcançar o objetivo final do NMG, neste artigo pretendemos abordar de forma geral os principais gargalos tributários que dificultam o desenvolvimento da indústria do gás natural no Brasil.
De fato, a abertura do mercado de gás natural – com a entrada de novos agentes na indústria e novos modelos de negócio – resulta no surgimento de novas relações jurídicas que até então não estão devidamente contempladas pela legislação tributária em vigor, seja nos níveis federal, estadual ou municipal.
A falta de previsão legal sobre o regime tributário aplicável a essas novas relações jurídicas, somada à própria complexidade tributária brasileira (especialmente para fins de ICMS), têm impactado diretamente o desenvolvimento de novos negócios relacionados à indústria do gás natural no Brasil, em que pese algumas medidas específicas já tenham sido adotadas por alguns Estados, como é o caso do Estado de Sergipe.
Dentre os principais gargalos tributários que impactam o desenvolvimento da indústria do gás natural no Brasil encontram-se: (i) o regime de tributação do ICMS na cadeia para geração termelétrica e industrial; (ii) a falta de regulamentação sobre o compartilhamento de infraestruturas; e (iii) as complexidades jurídicas e operacionais para a importação de GNL.
A par desses aspectos específicos, em razão da limitada infraestrutura disponível na indústria do gás natural (seja para fins de escoamento, processamento, transporte e distribuição), a implementação de medidas de estímulo para a criação de um mercado consumidor mais capilarizado se mostra importante para viabilizar novos investimentos estruturais para essas infraestruturas essenciais.
A necessidade de investimento nessas infraestruturas foi objeto, inclusive, de um abrangente estudo elaborado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) intitulado “Gás para o Desenvolvimento”, o qual analisa profundamente o cenário de oferta e de demanda do gás natural no país, e as medidas de investimento que poderiam ser adotadas para incrementar o uso do energético no Brasil.
Feitos esses esclarecimentos introdutórios, passamos a apresentar os aspectos essenciais dos gargalos tributários acima mencionados, bem como o seu impacto na indústria do gás natural.
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Regime de tributação do ICMS na cadeia para geração termelétrica e industrial
O regime de incidência do ICMS aplicável à cadeia de valor do gás natural é o tradicional, no qual o ICMS incide em cada etapa (inclusive no seu transporte), sendo devido ao Estado em que se inicia a operação de venda ou transporte. Por outro lado, a Constituição Federal estabeleceu um regime de incidência de ICMS particular para as operações envolvendo energia elétrica, sendo orientada pelo princípio do destino, por meio do qual as saídas interestaduais são imunes do tributo, o qual é recolhido somente ao Estado em que ocorrer o seu consumo.
Sendo o ICMS um tributo sujeito ao princípio da não-cumulatividade (art. 155, §2º, inciso I da Constituição Federal), que prevê mecanismos de compensação do tributo incidente nas diversas etapas da cadeia de produção e comercialização de mercadorias com o montante devido nas operações subsequentes, o bom funcionamento da sistemática prevista na Constituição Federal exige a efetiva recuperabilidade do tributo incidente nas operações antecedentes, evitando, assim, a incidência ‘em cascata’.
Ocorre que a diferença entre os regimes de incidência do ICMS na cadeia do gás natural e nas operações com energia elétrica frequentemente ocasiona situações de acúmulo ou de estorno de créditos fiscais, tornando o imposto cumulativo na cadeia e impactando significativamente o preço da energia elétrica, e, por consequência, a viabilidade dos projetos como um todo.
Tendo em vista que a imunidade do imposto nas operações interestaduais com energia elétrica foi concebida pela própria Constituição Federal (de modo que a alteração de tal sistemática é demasiadamente complexa, demandando inclusive a aprovação de Emenda à Constituição Federal), uma das formas de compatibilizar economicamente os regimes é por meio da neutralização tributária na aquisição do gás natural para a geração termelétrica.
Vale mencionar que a viabilização de projetos de geração termelétrica é estratégica para o adensamento da indústria do gás natural no Brasil, dado que a demanda termelétrica é uma das âncoras para o consumo do energético e, com isso, para a viabilização de vários outros projetos que resultariam no desenvolvimento da indústria, como a extensão da rede de distribuição de gás natural para outras indústrias, para o consumo residencial, e até mesmo veicular.
Sergipe hoje dispõe do terminal GNL da Celse, primeiro privado do Brasil, com capacidade para atender a diversas demandas, além da UTE Porto de Sergipe. O estado está empenhado em aproveitar essa oportunidade, promovendo a interligação do terminal à rede de transporte, objetivando a atração de novos empreendimentos que possam utilizar o gás importado.
No âmbito industrial, a redução da carga tributária do ICMS nos fornecimentos de gás natural é especialmente relevante para as indústrias que possuem demanda intensiva do energético, como é o caso das fábricas de fertilizantes (Fafen`s) e das indústrias de vidro e de cerâmica, por exemplo.
No caso das Fafen`s, a incidência do ICMS no fornecimento do gás natural resulta em distorção ainda maior – e em perda de competitividade da indústria brasileira em comparação com a estrangeira – em razão do próprio regime de tributação dos fertilizantes (cujas operações de venda interestaduais são sujeitas à uma redução de base de cálculo de 70%, enquanto que as importações são isentas do imposto).
Desse modo, o ICMS eventualmente incidente na aquisição do gás natural utilizado como insumo para a fabricação de fertilizante acaba aumentando ainda mais o custo do produto brasileiro em comparação com o importado, prejudicando mais uma possível fonte de consumo firme de gás natural.
A esse respeito, é importante notar que algumas ações pontuais já foram implementadas para mitigar o efeito do ICMS no preço do produto industrializado sergipano, como a isenção ou a redução da carga tributária do imposto, através dos Decretos 40.401 e 40.402 de julho de 2019, sobre a venda de gás natural destinado ao consumo industrial de alguns setores de empresas inscritas no Programa Sergipano de Desenvolvimento Industrial- PSDI.
A falta de regulamentação sobre o compartilhamento de infraestruturas
A abertura do mercado de gás natural e a permissão de acesso a terceiros de estruturas detidas por outras sociedades resultará no surgimento de novas relações jurídicas, até então não contempladas devidamente na legislação tributária (especialmente em razão das peculiaridades do gás natural, por se tratar de bem fungível e de fluxo contínuo, quando movimentado por meio de gasodutos).
A ausência de regulamentação específica dessas novas relações jurídicas resulta em severa insegurança jurídica aos agentes de mercado, seja pela incompatibilidade das regras gerais de tributação do ICMS, seja pela possibilidade de até haver conflitos de competência entre entes políticos.
Como exemplos de casos em que as inseguranças jurídicas acima podem se aplicar destacam-se o compartilhamento de Usinas de Processamento de Gás Natural (UPGNs) e de Terminais de Regaseificação de gás natural liquefeito (GNL).
Nesses casos, tanto os Estados quanto os Municípios podem se entender legitimados a exigir impostos (ICMS e ISS, respectivamente) na contratação das atividades de processamento e regaseificação para terceiros, gerando dupla tributação sobre uma mesma atividade.
Isso porque os Estados poderiam considerar que essas atividades consistem numa espécie de ‘industrialização por encomenda’ e, considerando que se referem a atividades massificadas incorridas no curso da cadeia de comercialização do gás natural, exigir o ICMS. Por outro lado, os Municípios poderiam considerar que representam meras prestações de serviço, e, com isso, exigir o ISS, que, inclusive, sequer permite o registro de créditos fiscais.
Além disso, a legislação regular dos Estados normalmente não contempla regras adequadas para o cumprimento de obrigações acessórias de modo a acomodar as peculiaridades do gás natural, dada sua característica de produto fungível e de fluxo contínuo, dificultando e, em alguns casos, inviabilizando o exercício dessas atividadescom a necessária segurança jurídica.
Ademais, não há clareza jurídica ainda quanto à qualificação, para fins tributários, da atividade de escoamento, especialmente quando há a hipótese de compartilhamento dos gasodutos, o que pode levar a outros conflitos de competência entre Estados e Municípios. Dentre as possíveis qualificações jurídicas atribuíveis na contratação do escoamento tem-se (a) prestação de serviço de transporte do gás natural, (b) arrendamento, (c) prestação de serviço de operação e manutenção, inclusive com a possibilidade de contratação de capacidade específica.
A regulamentação da tributação nessas atividades é muito importante para que o investidor possa mensurar corretamente os custos que incorrerá no exercício da atividade, de modo a planejar com segurança e acuracidade a rentabilidade do negócio, contribuindo, dessa forma, igualmente para a redução do preço do gás natural para toda a cadeia.
As complexidades jurídicas e operacionais para a importação de GNL
Tendo em vista a grande oferta de GNL no mundo, somada à ausência de infraestrutura atual para o escoamento e o processamento do gás natural produzido no Brasil e à dificuldade para acesso ao gás natural importado da Bolívia, a importação de GNL tem se mostrado como uma importante fonte de introdução do energético no país.
Entretanto, as legislações aduaneira e tributária não estabelecem procedimentos e regras que sejam totalmente aderentes às operações com gás natural, o que também enseja insegurança jurídica e, em alguns casos, entraves operacionais aos agentes.
De fato, um primeiro ponto que se revelava como um elemento de complexidade dizia respeito à falta de clareza se uma Floating Storage Regasification Unit (FSRU) poderia ser alfandegada para fins aduaneiros, sendo tal qualificação importante para viabilizar o recebimento direto de GNL dos navios metaneiros estrangeiros.
A questão foi solucionada pela Portaria da Receita Federal do Brasil n° 473/2020, que incluiu uma previsão específica que autoriza o alfandegamento de instalações flutuantes, inclusive para a regaseificação de GNL.
Entretanto, apesar de tal alteração ter sido positiva, ainda remanescem outros aspectos a serem melhor regulados, como por exemplo o procedimento aduaneiro e tributário aplicáveis nas atividades de regaseificação de GNL para terceiros, a necessidade de quantificação da carga quando da importação com a descarga direta do navio metaneiro, entre outros.
Dentre os aspectos que poderiam ser melhor regulados encontra-se a realização de operações de mútuo de cargas de GNL entre os agentes importadores, uma vez que a demanda destes pode variar no decorrer das suas operações, resultando em escassez do produto para uns, e excesso de estoque para outros. Atualmente não há previsão legal clara sobre os procedimentos aplicáveis no caso de mútuos, de modo que resta às empresas adotarem procedimentos de compra e venda domésticas, o que pode ensejar distorções tributárias (como a não aplicação de incentivos fiscais específicos).
Do ponto de vista do ICMS, um outro aspecto relevante diz respeito à incidência do imposto – e à carga tributária aplicável – na operação de importação. Isso porque a alíquota aplicável às operações internas (importações ou realizadas dentro do Estado) é superior àquela devida nas operações interestaduais, que é definida pelo Senado Federal.
Essa diferença entre as alíquotas na importação e na saída interestadual resulta muitas vezes em acúmulos de créditos pelo estabelecimento importador que importa o gás natural por um Estado e o revende para consumidores livres localizados em outros, o que, do ponto de vista financeiro, pode resultar em efetivo custo da operação, dada a impossibilidade de se utilizar tais créditos na prática.
Assim, adequações na legislação estadual podem ser necessárias para evitar ineficiências na cadeia do GNL (importação, logística e utilização) e, com isso, atrair investimentos no setor. Uma alternativa comumente utilizada pelos Estados é a concessão de diferimento na cadeia de GNL, tributando somente a saída efetiva para consumo, conforme o caso.
Outros aspectos relevantes
Além de todo o acima exposto, estão sendo concebidos outros projetos inovadores de utilização do GNL diretamente em caminhões, os quais são transportados até os postos de combustível por meio de isotanks, aumentando a capilaridade da oferta do energético para locais que ainda não possuem acesso às infraestruturas de transporte e distribuição do gás natural. O primeiro Estado a conceber esse tipo de projeto é o Estado de Sergipe, o que pode propiciar uma alteração relevante na matriz de consumo dos combustíveis por caminhões.
Com relação a esses projetos, destaca-se a oportunidade de regulamentação da operação a fim de conferir segurança jurídica aos investidores, notadamente no que se refere à definição da incidência tributária nessa atividade (por exemplo, regular a possibilidade de aplicação da sistemática da substituição tributária, procedimentos fiscais para as remessas e retornos dos isotanks, entre outros).
Da mesma forma que o GNL, a interiorização do gás natural comprimido (GNC) também contribui positivamente para o aumento do consumo do energético no mercado, o que, num segundo momento, sustentará a realização de novos investimentos para o transporte e distribuição de gás natural para essas localidades, ainda não atendidas pela infraestrutura usual do gás natural.
Com vistas a estimular o consumo do gás natural para fins de transporte, o Estado de Sergipe reduziu a carga tributária do ICMS nas operações com gás natural veicular (GNV) para 12%, tornando esse tipo de combustível mais competitivo quando se comparado com a gasolina e o etanol.
No mais, outras políticas contribuem para a formação de um mercado firme de consumo de gás natural, como a modicidade da tarifa de distribuição do gás natural em razão da implementação de gasodutos de distribuição dedicados, especialmente quando realizado em pólos industriais.
Tal medida foi adotada, por exemplo, pelo Estado de Sergipe para a região do Complexo Industrial Portuário, que ficará próxima a uma nova UPGN para receber o gás natural produzido nos campos do Estado (que naturalmente tendem a possuir um custo de escoamento menor em comparação com o gás natural produzido no sudeste, tendo em vista a sua proximidade com a costa, o que contribuirá para a redução do preço do energético produzido no Estado).
Verifica-se, dessa forma, que o mercado do gás natural no Brasil é bastante promissor, entretanto, para que possa se desenvolver plenamente, é necessário desatar alguns gargalos tributários que geram ineficiências para os investidores e para os próprios entes públicos, dada a não implementação de projetos que venham a gerar valor com essa riqueza.
Enquanto os elementos de complexidade tributária e de insegurança jurídica não forem resolvidos – aliados aos demais aspectos relacionados à implementação das infraestruturas essenciais para a cadeia do gás natural – as empresas produtoras de petróleo e gás natural não terão incentivos concretos para introduzir o gás natural na economia brasileira, preferindo reinjetá-lo nos reservatórios, o que acaba por inibir a criação de riqueza, de valor, a arrecadação de tributos e a geração de empregos.
Laércio Oliveira é deputado federal (PP/SE). Marcelo Menezes é superintendente Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Sergipe (SEDETEC/SE)
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