A Petrobras anunciou, em dezembro de 2020, a interrupção do desenvolvimento do projeto de adequação de infraestrutura da Unidade de Tratamento de Gás Monteiro Lobato (UTGCA), localizada em Caraguatatuba (SP).
“A decisão foi tomada devido à perda de atratividade econômica do projeto, avaliada à luz das premissas do Plano Estratégico 2021-2025”, explicou a companhia em nota, sem entrar em detalhes.
Com isso, a estatal cancelou todas as licitações associadas que atenderiam ao empreendimento, incluindo uma lançada em junho de 2020 para construção de uma unidade de processamento (UPGN) e duas de tratamento (UTGN) de gás natural.
Incluindo-se a UTGCA, cuja capacidade é de 20 milhões de m³/d, a Petrobras possui, hoje, dez unidades de tratamento/ processamento de gás natural:
- UTGCAB, em Macaé (RJ), com capacidade para processar 25,160 milhões de m³/d;
- UTGC, em Linhares (ES)/ 18,1 milhões de m³/d;
- UTG Urucu, em Coari (AM)/ 12,2 milhões de m³/d;
- UTG Guamaré, em Guamaré (RN)/ 5,7 milhões de m³/d;
- UTG Atalaia, em Aracaju (SE)/ 3 milhões de m³/d;
- UTG Candeias, em São Francisco do Conde (BA)/ 2,9 milhões de m³/d;
- UTGSul, em Anchieta (ES)/ 2,5 milhões de m³/d;
- UTG Catu, em Catu (BA)/ 2 milhões de m³/d; e
- UTG Pilar, em Pilar (AL)/ 1,8 milhão de m³/d.
O plano estratégico da companhia para o quinquênio (PN 2021-25) prevê a conclusão da UTG de Itaboraí, na região metropolitana do Rio de Janeiro, entre 2021 e 2022. A nova planta terá capacidade para processar 21 milhões de m³/d de gás.
A unidade é um resquício do antigo projeto do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), que, originalmente, consistiria em uma refinaria e uma planta petroquímica. Após quase 15 anos de obras intermitentes, o empreendimento passou a se chamar polo Gaslub Itaboraí, restringindo-se a uma fábrica de lubrificantes e uma possível usina termoelétrica.
“Nosso plano estratégico corrente prevê uma unidade de hidrocraqueamento catalítico e uma nova planta de lubrificantes avançados no Gaslub. Quanto à parte termelétrica, isso está em fase preliminar de estudos.
Então estamos avaliando sua viabilidade visando à participações em leilões de energia regulado”, disse o diretor de Refino e Gás Natural da Petrobras, Rodrigo Costa Lima e Silva, durante coletiva de imprensa no último dia 25 de fevereiro.
O PN 2021-25 contempla apenas uma outra expansão de capacidade na área de gás e energia: do terminal de regaseificação da Baía de Guanabara (RJ), de 20 milhões de m³/d para 30 milhões de m³/d.
Assim, ao final do período, a Petrobras planeja ter capacidade de regaseificação total de 50 milhões de m³/d, considerando-se ainda o terminal da Baía (TRBA, com 20 milhões de m³/d), que está em processo de arrendamento, mas limitado a 120 dias após assinatura do contrato.
A expectativa é que o terminal de regaseificação de Pecém (CE) seja desativado ou vendido, uma vez que sua capacidade, de 7 milhões de m³/d, não é considerada no ano de 2025 no PN 2021-25.
No mais, a Petrobras pretende, no quinquênio, sair dos segmentos de transporte e distribuição de gás natural, com a conclusão da venda da Nova Transportadora do Sudeste (NTS), da Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil (TBG), da Gas TransBoliviano (GTB), da Transportadora Sulbrasileira de Gás (TSB) e da Gaspetro, além dos ativos de infraestrutura de processamento, refino, logística, armazenamento, transporte e escoamento de gás de Guamaré (RN).
Os desinvestimentos da Transportadora Associada de Gás (TAG) e da Liquigás foram concluídos em 2019 e dezembro de 2020, respectivamente.
Também estão previstas alienações dos gasodutos de escoamento offshore Rotas 1, 2 e 3, da Araucária Nitrogenados (Ansa) e da Unidade de Fertilizantes (UFN) III.
Já o parque termelétrico da Petrobras será reduzido de 17 para dez usinas próprias, passando de 6,6 GWm (gigawatts-médios) para 4,3 GWm de capacidade de geração.
O capex da Petrobras para a área de gás e energia neste quinquênio será de US$1,1 bilhão ou 2% do investimento total no período, de US$ 55 bilhões. O plano anterior (2020-24) previa capex para o segmento da ordem de US$ 2,3 bilhões, o correspondente a 3% do total (US$ 75,7 bilhões).
A maior parte dos investimentos (60%) será destinada às obras da UTG de Itaboraí, que estão a cargo do consórcio sino-brasileiro Kerui-Método. Outros 22% irão para térmicas, principalmente para upgrades de turbinas a gás e modernização no sistema de controle e partida das plantas; 7% para escoamento e 11% para outras atividades.
Com a contínua redução do capex e os desinvestimentos em gás e energia, os quais estão em linha com os compromissos assumidos pela companhia no termo de compromisso de cessação (TCC) assinado com o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) em 2019, a Petrobras verá seu market share no mercado de gás brasileiro cair dos 86% atuais para 50-55% em 2025.
A aposta do governo brasileiro é que, na medida em que a estatal reduzir sua pegada nos segmentos de transporte e distribuição de gás, novos players serão atraídos, ampliando a competição e baixando o preço do energético ao consumidor final.
Tal premissa é, contudo, questionável. Em artigo publicado em dezembro de 2020[1], o pesquisador do Ineep, William Nozaki, apontou que a venda da Liquigás para o grupo formado pela Copagaz e Itaúsa poderá, na prática, romper um oligopólio encabeçado pelo capital estatal para dar lugar a um oligopólio dirigido pelo capital privado.
“A consolidação de um oligopólio exclusivamente privado no setor não interfere sobre o aumento crescente da participação da revenda no preço do gás ao longo dos últimos anos, de modo que a medida não diminuirá o preço ao consumidor final”, afirmou Nozaki.
Será preciso que o Cade atente para que essa oligopolização privada tampouco ocorra no caso da Gaspetro, subsidiária por meio da qual a Petrobras é sócia em 20 das 27 distribuidoras de gás do país e cuja participação remanescente, de 51%, pretende vender – e a Cosan, dona da Comgás, pretende comprar.
A japonesa Mitsui, que comprou 49% da empresa, está avaliando vender sua fatia.
O fato é que, enquanto a Petrobras desinveste em gás e energia, petroleiras privadas estão apostando nessa área que é absolutamente estratégica no âmbito da transição energética.
A brasileira Eneva comprou o campo de Azulão e lidera a disputa pelo polo Urucu, no Amazonas. Em Azulão, vai replicar o modelo gas-to-wire muito bem sucedido na Bacia do Parnaíba; em Urucu, poderá controlar o maior polo produtor onshore do país, responsável pelo suprimento de gás em Manaus.
Majors como a BP, ExxonMobil e Shell também vêm se posicionando por aqui.
A primeira é parte da joint venture Gás Natural Açu (GNA), com a Prumo Logística e a Siemens, que está construindo um complexo de usinas termelétricas (UTEs) no Porto do Açu (RJ), e está no projeto da UTE Nossa Senhora de Fátima, que será construída em Macaé (RJ), em parceria com a Eneva.
A norte-americana ExxonMobil é, por meio da Ocean (joint venture com a Qatar Petroleum), fornecedora do GNL que abastece a UTE Porto de Sergipe, em Barra dos Coqueiros (SE) — empreendimento da Centrais Elétricas de Sergipe (Celse) que começou a operar em 2020.
Já a anglo-holandesa Shell é parte do consórcio que constrói, em Macaé (RJ), a termelétrica Marlim Azul, que será abastecida por gás natural extraído no pré-sal pela anglo-holandesa.
Na prática, será um empreendimento verticalizado, com uma mesma empresa produzindo, escoando, gerando e vendendo energia, tendo em vista que a Shell assinou, recentemente, acordo com a Petrobras para compartilhar os gasodutos Rotas e está desenvolvendo um modelo integrado em energia elétrica no país, com foco em geração e comercialização[2].
Em A dinâmica do capitalismo (1987), o historiador francês Fernand Braudel observa que o capitalismo se caracteriza por forte intervenção estatal e por uma lógica essencialmente antimercado.
Trata-se, segundo o autor, de uma zona de “alto lucro” marcada por práticas nada liberais, como a trapaça, manipulação, fraude e violência com o intuito de eliminar a concorrência.
“Será necessário dizer que esses capitalistas (…) têm mil formas de trapacear no jogo a favor deles, pela manipulação do crédito, pelo jogo frutuoso das boas contra as más moedas (…), têm a superioridade da informação, da inteligência, da cultura (…). Enfim, e pela massa de seus capitais (…) estão em condições de preservar seus privilégios e de se reservar os grandes negócios internacionais”[3].
Cabe às autoridades brasileiras avaliar o que é mais interessante ao país: controlar atividades estratégicas via estatais ou deixá-las sob domínio de multinacionais sem compromisso com o desenvolvimento nacional.
Quanto à Petrobras, é recomendável que a companhia avalie estrategicamente o papel que o gás natural terá em seu portfólio nos médio e longo prazos, viabilizando o escoamento offshore e encontrando soluções de comercialização.
O plano de instalar uma termelétrica em Itaboraí (RJ) é um bom sinal, mas parece pouco ambicioso para uma companhia que, em 2020, detinha 215 bilhões de m³ em reservas provadas de gás.
João Montenegro é jornalista especializado em petróleo e energia, pesquisador do Ineep e mestre em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
[1]NOZAKI, W. Privatização da Liquigás: defesa da concorrência ou promoção do oligopólio privado?. Ineep, 1 dez. 2020. Disponível em<:https://ineep.org.br/privatizacao-da-liquigas-defesa-da-concorrencia-ou-promocao-do-oligopolio-privado/>. Acesso em 20 de fev. 2021.
[2] SHELL. Shell Brasil anuncia nova estrutura em comercialização e novas energias no país. 5 out. 2020. Disponível em<https://www.shell.com.br/imprensa/comunicados-para-a-imprensa-2020/shell-brasil-anuncia-nova-estrutura-em-comercializacao-e-novas-energias-no-pais.html>. Acesso em: 8 dez. 2020.
[3] BRAUDEL, F. A Dinâmica do Capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987, p. 39.
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