No sucesso Comida, a banda Titãs apresenta a distância entre desejo, necessidade e vontade. A sede é de quê? A fome é de quê? Esse conflito entre o que se espera e o que se recebe deve servir de alerta para o novo mercado de gás, que tem tudo para dar certo (ou errado).
Os modelos de incentivo para as redes de distribuição, a liberdade conferida às soluções de mercado e a integração energética com o setor elétrico podem resultar em custos maiores que benefícios se os desejos de alguns prevalecerem frente às necessidades de outros e à vontade de liberalizar a economia e ganhar competitividade.
Aqui faço três perguntas, cujas respostas são determinantes para quem “quer inteiro e não pela metade”:
Faz sentido econômico pagar duas redes de distribuição (energia elétrica e gás natural), aumentando a ociosidade dos ativos – suspensos ou enterrados – e prejudicando soluções concorrenciais e não tarifadas que podem ser mais baratas?
Essa pergunta se relaciona com as alternativas de universalização do gás. Considerando que o gás natural é substituto da energia elétrica para alguns usos (não todos), é preciso uma avaliação objetiva das vantagens de se universalizar o serviço expandindo mais uma rede de distribuição. Não custa lembrar que a rede é meio, não um fim.
Em países com temperaturas médias baixas, utilidades como calefação residencial são essenciais para a população durante o inverno, o que torna o gás natural canalizado uma alternativa economicamente viável. Muitos desses países possuem uma matriz de geração de energia elétrica historicamente desenvolvida em torno do uso de combustíveis fósseis e apenas recentemente integrada a fontes renováveis.
Nesse cenário, a concomitante expansão das duas redes de distribuição apresentou sentido econômico, na medida em que suprimiu uma etapa de transformação do insumo energético (gás-eletricidade-climatização por gás-climatização), reduzindo perdas e aumentando a eficiência.
No Brasil, a realidade é diferente. Os usos domésticos mais imediatos para o gás natural são o preparo de alimentos e o aquecimento de água. Todavia, nesses usos há a concorrência competitiva de gás de botijão, gás a granel, energia elétrica e aquecimento solar, que dispensam o investimento em uma nova rede de distribuição paralela à de eletricidade.
Universalizar, por mais bem intencionado que seja, pode significar o pagamento pela sociedade, via tarifa ou orçamento público, de duas redes concorrentes e subutilizadas de monopólios naturais de distribuição. Isso pode resultar em duas contas que, somadas, são mais caras do que, por exemplo, o binômio eletricidade e botijão de GLP.
A universalização a qualquer custo pode ser um desejo de quem é remunerado ao expandir a rede, mas pode não ser a forma mais barata de atender a necessidade de quem usa a energia. E esse conflito entre desejo e necessidade nos leva à segunda pergunta.
Faz sentido econômico expandir a matriz de geração com termoelétricas inflexíveis para resolver as variações de geração de fontes intermitentes ou a busca deve ser por soluções despacháveis?
Outro ponto frequentemente colocado é a exploração do gás por meio de termoelétricas inflexíveis. Sob esse aspecto, é verdade que o custo médio da geração termoelétrica cai com a inflexibilidade, pois nesse cenário a ociosidade do custo de transporte é evitada e a demanda pelo gás produzido é assegurada, baixando o preço.
Todavia, o fato de o custo médio de geração de uma térmica inflexível ser menor do que custo de uma térmica flexível não significa que o custo de geração na matriz de energia elétrica caia com essa escolha.
A inflexibilidade é justificável quando seus benefícios superam os custos de expansão da transmissão, de perdas técnicas e de potencial desperdício da geração de fontes renováveis. Térmicas à gás próximas ao centro de carga, que tenham essas caraterísticas e que atendam ao crescimento efetivo do consumo podem ser mais baratas até mesmo do que a expansão via fonte renovável contratada em sítio distante por preço que não reflete o custo de transmissão associado.
Todavia, justamente por não serem projetadas para cobrir os buracos da intermitência, pois geram o tempo todo e, nesse sentido, não são controláveis, térmicas inflexíveis tendem a aumentar o risco de vertimento de água, “de vento e de sol”, não sendo solução adequada para firmar um parque gerador já instalado.
O atributo mais importante para um sistema com várias fontes intermitentes é a despachabilidade, a capacidade de ligar e de desligar quando necessário, coisa que térmicas inflexíveis não fazem. Em alguns mercados por oferta de preço, por exemplo, a inflexibilidade conduz a intervalos de preços negativos, no qual a térmica paga o sistema para continuar ligada mesmo quando não é necessária, justamente por ser impossível o seu desligamento.
Cargas interruptíveis em resposta da demanda e um mercado secundário funcional de gás podem ser um caminho mais promissor para que se consigam soluções energéticas despacháveis de baixo custo.
É preciso evitar que o desejo de construir térmicas e gasodutos sem correr nenhum risco se torne um fim e vire mais subsídio suportado pelo setor elétrico, causando sobrecontratação e desperdício de geração despachável (olha o GSF aí). Novamente, corremos o risco de a necessidade dos consumidores e da sociedade ficar em segundo plano.
Projetos termoelétricos inflexíveis, portanto, devem ser avaliados para quando a expansão da carga assim demandar. Nesse cenário, a vitória pode ser dar por mérito econômico e não por subsídio, o que nos leva à terceira pergunta.
Faz sentido econômico entender que a expansão do mercado de gás só é viável com geração termoelétrica subsidiada ou é possível dinamizar e aumentar a demanda firme se barreiras regulatórias e custos de transação forem reduzidos, criando-se um mercado secundário funcional para o gás natural?
A saída de expansão do mercado de gás via setor elétrico é uma tentação, pois o setor elétrico ainda é visto como um bolsão de afundamento de custos com lógica de planejamento centralizado, independente da necessidade.
Estruturas rígidas resistem em compreender que, independentemente de suas vontades, as necessidades dos consumidores impõem a busca por soluções alternativas, cada vez mais fora do que foi planejado, algumas inclusive com efeitos colaterais danosos a outros consumidores.
O governo precisa dar voto de confiança na capacidade de organização do mercado.
Expandir o sistema sem necessidade, sem os atributos desejáveis, sem dinamismo, onerando quem é capaz de gerar riqueza e engessando os setores elétrico e de gás com legados mal resolvidos não é o novo mercado, é a velha prática.
Só por meio dessa maior confiança na inteligência, na criatividade, na capacidade e na liberdade de mercado que custos evitáveis são evitados, ineficiências são suprimidas e transferências indevidas de custo são interrompidas.
Entre desejos de uns, necessidades de outros e a vontade de desenvolver o país, é fundamental que os responsáveis pelas políticas públicas decidam com visão clara e entendam que o setor privado competitivo é um grande aliado, que sempre trabalhará para reduzir barreiras, evitar custos e privilegiar o mérito econômico em todas as áreas, inclusive no aproveitamento do gás natural.
Paulo Gabardo foi Especialista em Regulação da ANEEL, Chefe da Assessoria de Assuntos Regulatórios do MME e Assessor do Ministro da Fazenda. É economista, Sócio Fundador e Diretor-Presidente da i4 economic regulation, que presta serviços de consultoria econômica para setores regulados como geração, transmissão e distribuição de energia, consumidores de energia, além de saneamento e telecomunicações.
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