Desafios do refino privado após o fim do monopólio estatal

Desafios do refino privado após o fim do monopólio estatal

Obs.: Este artigo contém recortes do livroRefino de petróleo no Brasil 80 anos – de 1937 a 2017, publicado no início deste ano, com a devida autorização do autor”

Com a reabertura do mercado de petróleo no Brasil em 1997, esperava-se que novos investimentos privados fossem feitos no setor. Esperava-se novos investimentos no parque de refino e que a competição trouxesse ganhos em qualidade e preços. Para que a Petrobras e as companhias privadas (Manguinhos e Ipiranga) se adaptassem ao livre mercado, a Lei 9.478/97, conhecida como “Lei do Petróleo”, garantiu reserva de mercado por alguns anos (A Lei 9.478/97, em seus artigos 69 a 74, permitia instituir subsídios às refinarias privadas e o controle de preços e importações pela Agência Reguladora por até 5 anos). Isso, de certa forma, permitiria às empresas a transição para o regime competitivo.

De fato, em pouco tempo, ocorreram alguns movimentos de mercado que reforçavam as expectativas inicialmente imaginadas. O grupo Repsol YPF, por exemplo, adquiriu parte do controle da refinaria de Manguinhos. Mais tarde, adquiriu também 30% de uma das refinarias da Petrobras, no Rio Grande do Sul. Além disso, as refinarias de Manguinhos e Ipiranga propuseram à ANP planos de ampliação das suas unidades. Duas novas refinarias privadas surgiram, a Univen e a Dax Oil. A reestruturação do setor e a livre concorrência pareciam estar de fato surtindo o efeito planejado com o fim do monopólio. Porém os anos seguintes mostraram que as dificuldades para as refinarias privadas foram imensas. Uma breve análise sobre cada uma delas, na última década, demonstra o tamanho do desafio.

Refinaria de Maguinhos

Inaugurada em 1954, no estado do Rio de Janeiro (RJ), a Refinaria de Manguinhos foi impedida de ampliar suas atividades em função do monopólio estatal advindo da criação da Petrobras, em 1953. Em função disso, sua planta de refino permaneceu de baixa complexidade e pequeno porte, quando comparada as demais plantas de refino existentes no Brasil. Dessa forma, sempre necessitou de petróleos leves para processamento adequado em sua instalação fabril. Até o ano de 1963, a própria refinaria adquiria o petróleo leve importado para atender as suas necessidades. A partir desse ano, a Petrobras passou a exercer também o monopólio sobre a importação de petróleo e derivados, passando a atender, inclusive, as necessidades da refinaria privada, situação que persistiu até o início dos anos 2000. Considerando que a refinaria sobreviveu ao período do monopólio, é de se imaginar que, ao longo do período, ela teve alguma reserva de mercado permitida pelos sucessivos Governos, pois, caso contrário, teria sido adquirida pela Petrobras, como ocorreu com as refinarias de Manaus (REMAN) e Capuava (RECAP), ou teria quebrado à época devido aos choques do petróleo e preços controlados no Brasil.

Passados 44 anos de sua operação, um ano após a quebra do monopólio das atividades de refino no país, em 1998, o grupo espanhol Repsol YPF adquiriu parte das ações da Refinaria de Manguinhos, passando a dividir o controle da unidade com o até então dono, o Grupo Peixoto de Castro. Com promessa de novos investimentos, a parceria se apresentava como uma oportunidade para alavancar os negócios na refinaria, embora não tenha ocorrido exatamente isso nos anos seguintes.

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Os investimentos, inicialmente estimados pelo novo consórcio, foram reduzidos. Vários foram os motivos. A Repsol YPF passou a ter dificuldades na Argentina, que já vinha em crise há quase uma década, e o resultado operacional da refinaria também nunca foi animador. O preço do petróleo no mercado internacional disparou, tornando negativa a margem de refino de Manguinhos, já que os preços dos combustíveis no mercado interno brasileiro eram ainda definidos por força da Petrobras, sob o controle indireto do Governo Federal, qual segurava os preços por longos períodos, não os repassando integralmente ao consumidor final. A partir de 2004, o preço médio do petróleo no mercado externo passou a subir numa escalada constante, fazendo com a produção da refinaria fosse totalmente interrompida nos anos de 2006 a 2009, conforme é observado na Figura 1.

Carga média processada em Manguinhos, em MMBep (milhões de barris equivalentes de petróleo), e a relação com o preço do óleo cru (Fonte: elaboração própria baseado em ANP, 2017)

Não resistindo a uma grave crise financeira, a refinaria entrou em recuperação judicial em 2008, quando foi adquirida pelo Grupo Andrade Magro, ao qual já atuava no segmento de distribuição de produtos químicos e combustíveis. Quando voltou a operar em 2010, observou-se nos anos subsequentes uma tendência de redução na utilização de petróleo (Figura 2), até que, a partir de 2013, Manguinhos passou a processar outras cargas (naftas e condensados, por exemplo) como forma de se manter operando. Os resultados operacionais e financeiros continuaram bastante ruins e a refinaria permaneceu à beira da falência. Ao final de 2017, o controlador da refinaria anunciou uma mudança no nome da unidade, a qual passou a se chamar REFIT. Apesar da mudança de nome, os desafios para voltar a refinar petróleo foram gigantescos devido à idade, porte e tecnologia presentes na refinaria. Possivelmente, a refinaria seja, hoje, um ativo mais valioso como terminal de armazenamento de combustíveis do que como unidade de refino de petróleo propriamente dito.

Cargas utilizadas em Manguinhos, em MMBep, de 2000 a 2016 (Fonte: elaboração própria baseado em ANP, 2017)

Refinaria Ipiranga

A Refinaria Ipiranga iniciou suas operações em 1937, tendo ajustado seu controle acionário no ano seguinte, por força de resoluções do CNP, cuja questão estabelecia que somente brasileiros natos poderiam ser acionistas de refinarias no Brasil. Semelhante ao que ocorreu com a Refinaria de Manguinhos, após a instituição do monopólio da Petrobras, a concessão privada da Ipiranga foi mantida, mas ela também foi impedida de aumentar sua capacidade de refino durante todo o período, sendo mantida, contudo, através de sua reserva de mercado ao longo do período.

A quebra do monopólio em 1997, através da Lei 9.478, garantiu também à Ipiranga reserva de mercado durante cinco anos, para que ela pudesse se preparar para a livre concorrência. Em 1998, a ANP ratificou a titularidade e os direitos referentes às instalações de refino da Ipiranga, existentes à época, auferindo a refinaria uma capacidade de refino de 12.500 barris/dia, com base na capacidade operacional existente. Embora tenha sido impedida de ampliar suas atividades durante o monopólio, uma importante melhoria foi implantada na Refinaria Ipiranga na década de 1970, qual foi à instalação de uma Unidade de Destilação a Vácuo. Isso dava a Ipiranga uma flexibilidade um pouco maior do que a refinaria de Manguinhos (que somente contava com a destilação atmosférica), o que a permitia processar óleos um pouco mais pesados (e mais baratos).

Vislumbrando o crescimento e com o mercado aberto, a Ipiranga solicitou a ANP a ampliação de sua capacidade de refino para 17.000 barris/dia, o que foi autorizado e, efetivamente, realizado em 2002. Além do aumento da sua capacidade, o perfil de produção foi alterado devido à possibilidade de uso de matérias-primas mais adequadas, com a importação direta de mais da metade do petróleo consumido a partir do segundo semestre de 1999 (RPR, 2014). Logo, porém, vieram as dificuldades em função da escalada de preços do petróleo no mercado internacional, associadas à defasagem nos preços internos dos derivados, principalmente GLP, gasolina e diesel, que compunham o portfólio da Ipiranga. As Figuras 3 e 4 demonstram as cotações do GLP e da gasolina, respectivamente, para ilustrar a defasagem de preços registrados a partir do final de 2003.

Evolução das cotações do GLP de 2002 a 2008 (Fonte: MME, 2008)

Análise do gráfico: observa-se que de 2004 a 2008 o preço interno (PI) do GLP residencial e industrial se manteve abaixo da cotação internacional, demonstrando o subsídio estatal para esse combustível, no referido período.

Evolução das cotações da Gasolina de 2002 a 2008. (Fonte: MME, 2008)

Análise do gráfico: observa-se que em diversos e longos períodos o preço interno (PI) da gasolina esteve abaixo da cotação internacional. Embora em alguns momentos, o preço interno tenha sido maior do que o importado, deixando nítida a percepção de que ele esteve muito mais tempo sob o subsídio da estatal.

Diante desse cenário, entre 2003 e 2006, a refinaria reduziu suas operações praticamente à metade, registrando prejuízo financeiro em sua atividade de refino (RPR, 2014). A queda de produção registrada nos referidos anos, pode ser evidenciada na Figura 5.

Carga média processada na Refinaria Ipiranga e a relação com o preço do óleo cru (Fonte: elaboração própria baseado em ANP, 2017)

Em 2007, o controle do Grupo Ipiranga, cujos ativos envolviam postos de distribuição de combustíveis, centrais petroquímicas e a Refinaria Ipiranga, foi adquirido por um consórcio envolvendo a Petrobras, Ultrapar e Braskem. Em 2009, a refinaria passou a se chamar Refinaria de Petróleo Riograndense (RPR), em que cada um dos três sócios controladores passou a deter 33,3% das ações do quadro societário. A partir desse momento, a refinaria operou com algum lucro nas suas operações, pois a Petrobras passou a industrializar seu próprio petróleo nos momentos em que a cotação do cru e derivados traz prejuízo à unidade. O futuro dessa refinaria é incerto, devido à idade das suas instalações, limitações de carga e pequeno porte.

Duas novas pequenas refinarias surgem: Univen e Dax Oil

A paulista Univen e a baiana Dax Oil foram duas refinarias criadas alguns anos após a abertura do mercado de petróleo no Brasil. Com o intuito de ocupar nichos de mercado ou lacunas deixadas pela Petrobras, investiram em pequenas unidades de refino, se comparadas com as grandes refinarias da estatal, para atender a mercados bastante específicos com a produção de solventes especiais. Um modelo, aliás, muito comum no mercado americano, que possui mais de 100 pequenas refinarias espalhadas pelo país (TAVARES, 2005). Apesar do início promissor, não tardaram a aparecer os mesmos problemas que as demais refinarias privadas tiveram, expostas ao alto valor do petróleo no mercado internacional e ao controle de preços dos combustíveis pelo Governo brasileiro.

A Univen, uma refinaria de pequeno porte, localizada na cidade de Itupeva, São Paulo, foi fundada em 1992 e adquirida pelo grupo Vibrapar, em 1997. Inicialmente, produzia apenas hexano e, em 2001, teve seu parque industrial ampliado, passando a produzir também outros solventes especiais. Em 2003, teve autorização da ANP para processar e refinar petróleos leves, condensado de petróleo, nafta e outras frações de petróleo para a produção de combustíveis e solventes (UNIVEN, 2014). Em 2010, foi autorizada a ampliar sua planta de processamento de 6.919 barris/dia para 9.158 barris/dia (ANP, 2013).

A baiana Dax Oil é também uma refinaria privada de pequeno porte localizada no Polo Petroquímico de Camaçari com licença para produzir solventes desde 2005, a partir do processamento de nafta e outras correntes petroquímicas, sendo ampliada em 2010 para uma capacidade de refino de 2.095 barris/dia (ANP, 2013). A unidade foi desenvolvida em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e contou com o apoio do Governo desse Estado e da Associação dos Produtores de Petróleo e Gás Natural Extraídos de Campos Marginais do Brasil (APPOM). Foi uma refinaria idealizada para atender a produção local, permitindo que os produtores independentes de petróleo localizados na Bahia comercializassem sua produção de óleo, que, por ser pequena, não era de interesse das grandes companhias.

As duas pequenas refinarias buscaram se adaptar às condições de mercado. A Univen que, inicialmente, produzia mais solventes na sua unidade, passou a investir fortemente na produção de gasolina a partir de 2005 (Figura 6), com um porém: utilizava-se do mesmo expediente adotado por Manguinhos, de pagar o ICMS devido ao fisco de São Paulo com precatórios do próprio governo. Enfrentando defasagem no preço interno da gasolina em relação ao mercado internacional, alta do dólar e aperto do fisco paulistano em relação ao ICMS passou a produzir cada vez menos do combustível, até parar a unidade em 2012 (o controlador, grupo Vibrapar, entrou com pedido de falência e recuperação judicial nesse mesmo ano). Já a Dax Oil que, inicialmente, produzia solventes, passou a investir mais na produção de óleo combustível (Figura 7), como forma de sobreviver no mercado. A pequena refinaria baiana segue operando, diferente da sua similar paulistana que não opera desde 2012.

Perfil histórico de derivados produzidos pela Univen (Fonte: elaboração própria baseado em ANP, 2017)
Perfil histórico de derivados produzidos pela Dax Oil (Fonte: elaboração própria baseado em ANP, 2017)

O curioso caso REFAP

Um caso curioso que ilustra bem a dificuldade das refinarias privadas no Brasil é a joint-venture formada entre Repsol YPF e Petrobras, em 2001, na Refinaria Alberto Pasqualini (REFAP), no RS. Como já fora comentado anteriormente, a espanhola Repsol, como estratégia de expandir seus negócios na América do Sul, adquiriu a estatal argentina YPF e parte do controle acionário da Refinaria de Manguinhos (RJ), no Brasil. Em 2001, em uma troca de ativos com a Petrobras, a Repsol adquiriu 30% da Refinaria Alberto Pasqualini (REFAP), em uma operação que envolveu alguns ativos de refino, petroquímica e postos de combustíveis em solo argentino a favor da estatal brasileira.

Um dos objetivos da Petrobras, na época, era se internacionalizar e dominar o mercado no Cone Sul. A REFAP passou então a ser uma sociedade anônima (S/A) independente, uma subsidiária da Petrobras. Com a nova parceria, vieram investimentos para ampliação da sua capacidade de processamento de óleo nos anos seguintes. Aparentemente, o Governo brasileiro estava interessado, na época, em utilizar o mesmo modelo de negócios em outras refinarias da Petrobras, seguindo a tendência econômica liberal iniciada na década de 1990. Contudo a REFAP foi a única refinaria em que o modelo vingou, pois logo em seguida, em 2002, o Governo do então presidente Lula interrompeu essa tendência.

A REFAP S/A, que à época de sua constituição já utilizava 70% de petróleo leve importado na sua unidade de refino, passou a importar ainda mais nos três anos seguintes (Figura 8), atingindo 84% da carga processada no ano de 2004. A prioridade naquele momento seria obter a maior produção possível de derivados leves, que, sabidamente, possuem maior valor agregado. Só que, como já foi discutido, o preço do barril de petróleo no mercado internacional passou a subir de maneira constante a partir de 2003, onerando sobremaneira os custos com matéria-prima, como ocorreu com as demais refinarias privadas.

Com pesados investimentos para recuperar o chamado “fundo de barril”, para diminuir a dependência por petróleo leve importado, a REFAP inaugurou, em 2006, a sua unidade de Coqueamento Retardado (UCR) e uma unidade de Craqueamento Catalítico de Resíduos (RFCC), o que permitiu adequar a sua unidade de refino ao petróleo brasileiro. Observa-se que, em 2011, a utilização de petróleo nacional ultrapassou o importado no blend de óleos utilizados pela refinaria, sendo que, em 2016, a utilização de petróleo nacional chegou curiosamente aos 84% da carga (mesmo número registrado em 2004 com petróleo importado).

Perfil do petróleo utilizado na REFAP (Fonte: elaboração própria baseado em ANP, 2017)

 

Como as demais refinarias privadas, com o aumento do preço do petróleo, a REFAP passou a ter margens negativas de refino. Isso tudo associado à necessidade de sucessivos investimentos para a modernização da sua planta e exigências para produção de derivados de melhor qualidade, com menores teores de enxofre. Diante disso, no final de 2010, após intensa discussão a respeito da necessidade de novos investimentos, cujo sócio não concordava, a Petrobras anunciou a recompra dos 30% das ações pertencentes à Repsol, voltando a refinaria a ser novamente 100% Petrobras. Esse curioso caso da REFAP demonstra a dificuldade enfrentada pelas refinarias privadas, no país, desde a reabertura do mercado de petróleo no Brasil há 20 anos.

Marcelo Gauto é químico industrial e especialista em petróleo e gás

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO (ANP). Anuário Estatístico Brasileiro do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Rio de Janeiro: ANP, 2013.

AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO (ANP). Dados Estatísticos Mensais. Rio de Janeiro: ANP, 2017.

GAUTO, M. A. Refino de petróleo no Brasil 80 anos – de 1937 a 2017. Porto Alegre: Gautobooks, 2018.

MINSTÉRIO DE MINAS E ENERGIA (MME). Relatório do Mercado de Derivados de Petróleo. Brasília: MME, 2008.