O Renewable Energy 100 (RE100) é uma iniciativa promovida pelo The Climate Group e Carbon Disclosure Project (CDP) com o propósito de acelerar a transição global para fontes de energia renovável e mitigar as emissões de gases de efeito estufa (GEE) associadas à geração de energia elétrica.
Nesse âmbito, o RE100 tem crescente representatividade, com mais de 400 empresas comprometidas a alcançar 100% do seu suprimento de energia por fontes renováveis em prazos menores ou no limite do que intenciona o Acordo de Paris. Juntas, essas empresas já somam um consumo de energia maior que o do Reino Unido.
Segundo a orientação do RE100, adquirir certificados de energia renovável em jurisdições como o Brasil para reivindicá-lo em outro país fora da fronteira de mercado não é considerado uma boa prática. Convém lembrar que somos um dos cinco maiores emissores de certificados de energia renovável (I-RECs) do mundo.
As empresas-membro do RE100 operam sob diferentes jurisdições e promovem a transparência e a responsabilidade das suas agendas ESG (Environment, Social, Governance, em inglês), sabedoras que as práticas sustentáveis e a divulgação dos esforços em relação ao meio ambiente e à sociedade impactam positivamente.
Elas definem suas estratégias e ações em sustentabilidade, mensuram seus impactos e reportam seus resultados segundo orientações técnicas da entidade, que se baseiam em protocolos mais amplos e supranacionais, como o GHG Protocol (Greenhouse Gas Protocol).
Embora não haja multinacionais brasileiras signatárias do RE100, uma parcela significativa aqui opera e se beneficia da matriz energética predominantemente renovável. Essa parcela é composta por empresas como Google, Microsoft, Apple, AB InBev, Kirin, Kia, Hyundai Nomura, BMW, SAP, GM, TODA, Samsung, LG, Johnson & Johnson, entre outras.
De acordo com o Apêndice B Market Boundaries publicado na orientação técnica versão 4.1 [(CDP), 2022] [1], para reivindicar o uso de energias renováveis como parte do compromisso RE100, as empresas-membro devem obter eletricidade renovável e/ou os certificados de energia renovável dentro dos limites do mercado em que consomem a eletricidade.
Essa “fronteira do mercado” refere-se a jurisdições em que as estruturas normativas do setor elétrico são suficientemente consistentes entre as áreas de geração e consumo, e há uma interconexão física da rede, indicando um nível de coordenação sistêmica.
Pela regra acima, as empresas podem reduzir as emissões indiretas de Escopo 2 por meio da aquisição de energia renovável agregada de seus respectivos certificados de origem (bundled) ou pela aquisição dos certificados de energia renovável desagregados da energia física (unbundled).
No Brasil, um instrumento criado para originar, emitir e transacionar os certificados são os I-RECs (International Renewable Energy Certificates), medidos em W/h (ou Watts por hora) como MWh ou GWh.
Exceção para empresas que operam no Brasil
Contudo, há uma exceção na normativa do RE100 destinada aos autoprodutores de energia elétrica [2] que pode ser mais bem explorada pelas empresas globais que operam no Brasil.
No caso dos autoprodutores, a utilização de certificados de energia renovável de sua propriedade para a mitigação das respectivas emissões de Escopo 2 torna-se viável a nível global – fora dos limites de mercado estabelecidos pela entidade – desde que a certificação seja confiável, rastreável, livre de riscos de dupla contagem e que não se configure uma operação comercial de atributos ambientais.
Nesse modelo, uma empresa signatária do RE100 e detentora de ativos de geração de energia renovável em uma jurisdição, pode optar por utilizar um dos outputs dessa geração que não a energia física, ou seja, os certificados de energia renovável, para serem aposentados em outra jurisdição.
A abordagem tem o potencial de mitigar as emissões indiretas relacionadas ao consumo de eletricidade corporativa e, consequentemente, contribuir para o alcance das metas estabelecidas pelo RE100.
Para ilustrar, consideremos uma multinacional que consome energia convencional na Austrália e possui ativos de geração de energia renovável no Brasil. Essa empresa poderia reivindicar a redução de suas emissões do Escopo 2 na Oceania, utilizando-se dos atributos ambientais provenientes de sua própria geração no Brasil. Essa transação ocorreria por meio do mecanismo I-REC, o qual tem meios transparentes de rastreabilidade.
É importante reconhecer que os fatores de emissão de grid variam entre os países. Uma maneira de dar consistência a essa estratégia é o de formular a equivalência nos montantes de I-RECs destinados a mitigar as emissões de gases de efeito estufa (GEE) entre os dois sistemas elétricos em questão (o de origem e o de destino). Lembrando que, no contexto das emissões de GEE, a atmosfera não conhece limites geográficos.
O modelo abre caminhos para que empresas globais invistam em geração de energia renovável nos países onde atuam e, em conformidade com os aspectos jurídicos, usufruam dos atributos ambientais que legalmente lhes pertencem.
Um detalhe que não se deve desprezar é a caracterização de um autoprodutor em nível global para efeitos da regulação internacional do RE100. Ela difere do que se conhece como autoprodutor de energia (ou APE) no Brasil, ainda que os conceitos não sejam excludentes.
O CDP indica superficialmente o que é um autoprodutor [3]. A indicação necessita de legislações nacionais e, portanto, permite diferentes configurações quanto à propriedade dos ativos de geração. Assim, é fundamental que as empresas estipulem e divulguem marcadores claros para sua validade.
A autoprodução expande o leque de opções para as empresas operarem a partir de energia 100% renovável; ao mesmo tempo, acelera a transição das fontes poluentes para as renováveis em âmbito local e global
Essa aceleração tem sido objeto de pesquisas científicas que demonstram que iniciativas como o RE100 ou o Science Based Targets (SBT) podem ser mais eficazes que somente as políticas das nações-estado no campo da descarbonização (Hsu et al., 2020) [4].
Tendo em conta a dinâmica do nosso mercado de energia elétrica, o significativo grau de sustentabilidade das nossas fontes, aliada a uma regulamentação estável para operadores públicos e privados, dispomos dos principais elementos para viabilizar estratégias consistentes para os atores da descarbonização no setor elétrico, que nesse caso, são as empresas globais.
Como efeito direto, o Brasil tem o potencial de ampliar a atratividade para investimentos em energia renovável por parte das multinacionais eletrointensivas que operam no país ou que planejam fazê-lo. Indiretamente, fortalecemos a presença como economia de baixo carbono.
Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.
Otávio Marshall é consultor independente sobre aspectos jurídicos de empreendimentos de energia. Desde 2022 está em período sabático na Nova Zelândia pesquisando a tokenização de ativos de infraestrutura.
Ex-sócio da Renobrax Energias Renováveis. Recentemente, desenvolveu estudo sobre a emissão e uso de certificados de atributos ambientais para a TODA Corporation (1860:JP) e desde 2021 assessora o Grupo Randon (RAPT:BZ) em seu projeto de autoprodução de energia renovável.
Elisa Canal é consultora de projetos de Soluções Baseadas na Natureza da Kosher Climate India para o Brasil.
Com experiência em engenharia ambiental, participou do desenvolvimento de projetos de energia renovável (eólica e solar), geração centralizada e distribuída, gestão e ação climática e desenvolvimento de projetos de créditos de carbono no Brasil entre 2017 e 2023. Recentemente, participou do estudo sobre a emissão e uso de certificados de atributos ambientais para a TODA Corporation (1860:JP). Painelista da Ecoenergy 2023.
Referências:
[1] (CDP), R.-C. D. P. (2022). RE100 Technical criteria. In Technical note on renewable electricity options (pp. 6): Carbon Disclosure Project (CDP). Disponível em: <https://www.there100.org/sites/re100/files/2022-12/Dec%2012%20-%20RE100%20technical%20criteria%20%2B%20appendices.pdf>. Acessado em setembro de 2023.
[2] Seção 4, item 1. Self-generation from facilities owned by the company.
[3] Technical Note: Accounting of Scope 2 emissions, de março de 2023 (versão 10.0).
[4] Hsu, A., Höhne, N., Kuramochi, T., Vilariño, V., & Sovacool, B. K. (2020). Beyond states: Harnessing sub-national actors for the deep decarbonisation of cities, regions, and businesses. Energy Research & Social Science, 70, 101738. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/j.erss.2020.101738>. Acessado em setembro de 2023.