Por Edmar de Almeida e Luciano Losekann, Yormy Eliana Melo (*) e Alexandre Mejdalani (*)
A literatura de economia da energia usualmente destaca dois aspectos da pobreza energética, o acesso a fontes energéticas modernas e a capacidade de pagamento. O problema de acesso à energia ainda é significativo em países de renda baixa, como na África Subsaariana. As metrópoles latino americanas, em particular o Rio de Janeiro, tem elevada universalização dos serviços e a pobreza energética não é apenas um problema de incapacidade de pagamento. Nessas zonas urbanas com desigualdade de renda, baixa presença do Estado e controle territorial de organizações criminosas, o abastecimento de energia pode ser insuficiente ou comprometer parcela excessiva da renda.
Segundo os indicadores da Agência Internacional de Energia, 95% dos domicílios latino americanos contam com acesso à eletricidade (IEA, 2017). No entanto, problemas socioeconômicos e institucionais implicam baixa qualidade do suprimento. Ligações clandestinas e domínio criminoso dificultam a manutenção das instalações pelas concessionárias de distribuição, causando interrupções frequentes e duradoras do serviço.
De 2007 a 2011, as perdas de eletricidade alcançaram 17% na América Latina e Caribe. Valor superior a qualquer outra região do globo, como África (15%), Ásia (12%) ou Europa (8%). As perdas na região são concentradas na distribuição e as perdas devido a fatores não técnicos, incluindo furto, representam 80% do total.
Os implicam em custos para as concessionárias de eletricidade da região.
Existem duas implicações dos elevados níveis de perdas na região. Instalações clandestinas comprometem a qualidade do serviço e os reparos e manutenção se tornam mais frequentes. Estudo do Banco Inter Americano de Desenvolvimento aponta custos associados às perdas de US$11 a US$17 bilhões para as concessionárias. Do lado do consumidor, serviços de baixa qualidade reduzem a legitimidade das concessionárias de cobrar pelo serviço. Associada à impossibilidade de punição em áreas dominadas pelo crime organizado (tráfico ou milícia), as ligações clandestinas se multiplicam. Assim se monta um círculo vicioso ilustrado na figura 1.
Figura 1. Círculo vicioso da deterioração do serviço e perdas elétricas
A baixa qualidade de suprimento tem efeitos diretos no conforto de consumidores de baixa renda. Esses consumidores estão concentrados em localidades com maior temperatura e precisam de equipamentos de resfriamento. Os blecautes frequentes e longos comprometem o conforto térmico, além de estragar alimentos e impossibilitar atividades domésticas, estudo e trabalho. Nesse contexto, podemos considerar que domicílios de comunidades carentes em cidades da América Latina estão sujeitos à pobreza energética mesmo que disponham de acesso ao serviço elétrico.
O caso do Rio de Janeiro é ilustrativo da correlação geográfica entre a adequação do suprimento elétrico com aspectos sócio econômicos e de segurança pública. A cidade se caracteriza pela desigualdade na distribuição urbana, existindo áreas com baixo de nível de renda, ocupações irregulares e baixa presença de instituições formais do Estado. As favelas sofrem com problemas de segurança pública, com dominância territorial de grupos criminosos, tráfico ou milícia.
A desigualdade também se manifesta na provisão de serviços públicos, como gás e eletricidade. A baixa qualidade do serviço cria a percepção que a cobrança pelo serviço não é legitima. Os grupos de milícia e tráfico exploram a provisão de serviços, ofertando “gatos” de eletricidade e intermediando a venda de GLP.
As conexões irregulares de eletricidade afetam os indicadores de perdas não técnicas da distribuidora local, Light. A figura 2 apresenta a evolução do indicador de perdas não técnicas na classe de baixa tensão nas 10 distribuidoras com maior nível de perdas e a média nacional. A Light apresenta os maiores valores da amostra, superando 40% de perdas entre 2008 e 2016. Níveis muito maiores que a media nacional.
Figure 2. Índice de Perdas não técnicas na baixa tensão em distribuidoras, 2008-2016
Fonte: Elaboração própria com dados da ANEEL
Nota: Excluímos a companhia Amazonas Energia, que detém índices superiores a 100%, indicando que as perdas não se resumem à baixa tensão.
Em termos de desenvolvimento social, a figura 3 apresenta os níveis de desenvolvimento, conforme o Índice de Desenvolvimento Social (IDS) calculado pelo Instituto Pereira Passos. O IDS é inspirado no IDH publicado pelas Nações Unidas e inclui quatro aspectos: (1) sanitário, (2) qualidade do domicílio, (3) nível educacional e (4) renda. A média é de 0,608 e o desvio padrão é 0,072. Nota-se que o litoral sul tem os maiores valores de SDI. As zonas Oeste e Norte apresentam os valores menores.
Figura 3. Mapa do Índice de Desenvolvimento Social, 2010
Um problema grave de segurança pública na cidade do Rio de Janeiro é o controle territorial por grupos criminosos, tráfico ou milícia. O estudo de Zaluhar (2012) identifica essas áreas da cidade. Nessas localidades, além de elevados níveis de violência, a provisão de serviços públicos é comprometida. Serviços como transporte alternativo, provisão ilegal de TV por assinatura e vendas ilegais de energia (eletricidade e GLP) são explorados por grupos criminosos, com elevada rentabilidade.
Figura 4. Controle de Grupos Criminosos na cidade do Rio de Janeiro
Nota: Áreas azuis são controladas por milícias, áreas em amarelo são UPPs; Áreas em vermelho e verde são controladas pelo tráfico.
Para analisar a distribuição especial das perdas não técnicas de eletricidade, utilizamos os dados relativos às 59 subestações da Light. Esses dados foram agrupados para coincidir com os bairros da cidade (figura 5). As áreas com maiores perdas são a Zona Oeste (1) e o complexo do alemão (2), enquanto a Zona Sul (3) e a Ilha do Governador (4).
Figura 5. Mapa Perdas não técnicas, por bairros, 2014
Fonte: Elaboração própria baseada em Light S.A (2014).
Desenvolvendo uma análise de clusters, podemos identificar quatro classificações de clusters. Identificamos duas regiões de elevadas perdas não técnicas (PNT) e baixo desenvolvimento social (IDS) (Alto-baixo), uma regição de baixos PNT e SDI (baixo-baixo), uma região de baixo PNT e alto IDS (baixo-alto) e duas regiões de altos PNT e IDS (alto-alto)[1]. Não foi encontrada correlação significativa em regiões em cinza.
Figura 6. Perdas Não Técnicas x Índice de Desenvolvimento Social, por bairros
Fonte: Elaboração própria com dados da Light S.A (2014) e Instituto Pereira Passos (2010).
Na figura 7, destacamos o mapa de Zaluar (2012) na figura 6 para vizualizar a influência do controle criminoso de territórios na formação dos clusters. Nas regiões em que o tráfico tem o controle, não identificamos clusters IDS-PNT, exceto pequena porção na Zona Norte (1). Nas áreas dominadas por milícia, as perdas não técnicas são mais elevadas, como na Zona Oeste (2). Nas zonas em que o Estado está mais presente, as perdas são menores. Esses resultados indicam que aspectos sociais e de segurança pública têm papel na qualidade do suprimento e na pobreza energética na cidade do Rio de Janeiro. Aparentemente, em localidades dominadas por milícias, o ciclo vicioso de deterioração do serviço e furto de eletricidade pode ser melhor identificado. Essa observação tem uma certa defasagem decorrente da disponibilidade de dados. Nesse período, início da década de 2010, a oferta de serviços de conexões ilegais de eletricidade poderia ser uma prática mais explorada por milícias que pelo tráfico.
Figure 7. Sobreposição da Figura 4 (Zaluar, 2012) e Figura 6
Fonte: Elaboração própria baseado em dados estimados e Zaluar (2012).
Referências:
DAPP. (2017). Portrait of the spread of the criminal map. Diretoria de Análise de Políticas Públicas/Fundação Getulio Vargas.
Jiménez, R., Serebrisky, T., & Mercado, J. (2014). Sizing Electricity Losses in Transmission and Distribution Systems in Latin America and the Caribbean.Washington, D.C: Inter-American Development Bank.
Zaluar, A. (2012). Juventude Violenta: Processos, Retrocessos e Novos Percursos. DADOS, 55(2), 327-365.
Notas:
[1] Ainda que a regiões alto-alto possam parecer contraditório, podemos encontrar uma explicação. Na Zona Sul, comunidades carentes com elevadas perdas estão localizadas em regiões de renda média elevada.
(*) Doutorandos do PPGE da UFF
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