A transição energética não é só sobre energia, por Gabriela Nascimento da Silva, Marianne Zotin e Lavinia Hollanda

A transição energética não é só sobre energia, por Gabriela Nascimento da Silva, Marianne Zotin e Lavinia Hollanda

A transição para um mundo de baixo carbono está demandando uma escala gigantesca de inovação tecnológica em diversos setores da economia. As novas demandas por energias renováveis, veículos elétricos, tecnologias de sistemas de informação trazem consigo cadeias produtivas que dependem do suprimento seguro de materiais. Diante da necessidade de rápida redução de gases de efeito estufa (GEE) e de grandes penetrações de tecnologias de baixo carbono, a demanda por materiais aumentará de maneira significativa em um curto espaço de tempo. Ou seja, a transição energética irá demandar também uma transição material.

O forte aumento da demanda por materiais é uma discussão que tem crescido muito na literatura, principalmente no que diz respeito à criticidade. O conceito de criticidade está relacionado à importância econômica que determinados materiais têm e ao seu risco de suprimento. É um conceito dinâmico, que varia com a perspectiva da análise (de um determinado país ou empresa, por exemplo), com o tempo, e com a inovação tecnológica. Ou seja, um material considerado crítico no passado pode deixar de sê-lo no futuro; um material considerado crítico para um país, pode não o ser para outro. Assim, materiais ditos críticos costumam combinar características como a de possuir poucos substitutos, de ter fornecimento limitado, de ser co- ou sub-produto de uma produção principal, de apresentar produção/processamento concentrados em locais com alto risco geopolítico, entre outras. 

Para a transição energética, alguns exemplos de materiais considerados críticos são o cobalto, o lítio e as terras raras, que são elementos químicos da tabela periódica da família do lantânio, mais o ítrio (Y) e o escândio (Sc). Dentre as terras raras, disprósio, neodímio, praseodímio e térbio são amplamente utilizados na fabricação dos ímãs que movem os motores de turbinas eólicas e em veículos elétricos e híbridos. Outros usos desses elementos incluem exames médicos de imagem, dispositivos eletrônicos, como celulares, TVs, computadores, além de equipamentos militares de visão-noturna e lasers. Esses materiais não necessariamente têm poucas reservas mundialmente, muitos deles são até abundantes na crosta terrestre. No entanto, alguns dos aspectos mencionados acima os tornam críticos para a transição energética.

No caso das terras raras, é difícil definir o número de reservas, pois o conceito de reserva para esses materiais é complexo. Assim como no caso do petróleo, sua reserva é aquela porção do recurso que é técnica e economicamente viável de ser extraída, considerando o estado da arte das tecnologias de extração e preços de mercado que justifiquem sua produção1. No entanto, enquanto a definição de reserva petrolífera varia com os preços do petróleo, para as terras raras e outros materiais é diferente. Geralmente, esses metais estão em baixas concentrações nos minérios e muitos desses elementos são co- ou sub-produtos de uma produção primária, como minério de ferro ou cobre, por exemplo. Nesse caso, se os custos de produzir apenas o co- ou sub-produto forem proibitivamente altos, é possível que somente sua produção conjunta com outro produto principal justifique sua extração. 

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O fator mais citado para justificar a criticidade das terras raras é a concentração da produção. Apesar de as reservas desses metais estarem relativamente espalhadas no mundo, atualmente cerca 68% da mineração, 80% do processamento e 90% do refino2 de terras raras vêm da China. Para evitar riscos no fornecimento desses materiais tão importantes para a transição energética e também para a segurança nacional e para aplicações diversas, há um movimento no sentido de implementar a cadeia de produção das terras raras em outros países. O desafio está em viabilizar a extração, separação e refino a custos aceitáveis, e gerando baixos volumes de poluição. Os EUA já têm isso mapeado e as agências americanas vêm buscando mecanismos de subsídios ou mudanças na regulação para que esses metais possam ser produzidos localmente, reduzindo a dependência do fornecimento da China. Já a União Europeia está desenvolvendo a Aliança Europeia de Matérias-Primas (ERMA, sigla em inglês), para o desenvolvimento de capacidade local de processamento de terras raras, dentre outros objetivos. Além de reduzir a dependência da China, a ideia é garantir a sustentabilidade de toda a cadeia da produção de tecnologias da transição energética, mesmo que isso eleve o custo dos equipamentos. 

A preocupação com a sustentabilidade das terras raras se justifica pelo impacto ambiental de toda a cadeia de produção. São usados grandes volumes de água, ácidos e solventes durante a produção, gerando rejeitos e, dependendo do tipo de minério, podendo gerar também lixo radioativo. Outras possíveis consequências da mineração de terras raras são os desmoronamentos de minas e deslizamentos de terra. Além disso, a separação e o refino são etapas intensivas em energia. Até existe a possibilidade de expandir a reciclagem para as terras raras, hoje muito limitada.  Porém, com a demanda crescente, a necessidade de extração primária permanece. Ainda, a extração constante faz com que a concentração das terras raras no minério remanescente diminua gradativamente, o que aumenta a energia necessária para sua extração e processamento. 

Há ainda a parcela da mineração ilegal, que corresponde a mais de 20%, segundo estimativas. Se a mineração tradicional já envolve diversos impactos ambientais e emissões, a mineração ilegal, que possui baixa eficiência na utilização do recurso e não segue as boas práticas de gestão ambiental, é uma séria preocupação relacionada à cadeia produtiva das tecnologias renováveis. Além disso, um rápido crescimento de demanda geralmente vem acompanhado de altas de preços, que estimula ainda mais a extração por mineradores ilegais, implicando em impactos ambientais ainda maiores.

Para que uma tecnologia seja considerada sustentável ambientalmente, é preciso olhar de forma integrada para todos os impactos que envolvem sua adoção. Isso deve ser feito com planejamento e análise cuidadosa. Do contrário, o que pode ocorrer é a redução de emissões diretas do uso, mas aumento das emissões, do consumo de água, da produção de resíduos tóxicos e outros resíduos resultantes da cadeia de produção. Há ferramentas de gestão ambiental disponíveis para esse fim, como a avaliação de ciclo de vida (ACV), por exemplo, que possibilita a identificação de gargalos nos aspectos ambientais de toda a vida útil de um produto. É fundamental que tecnologias de baixo carbono – que visam mitigar efeitos de mudanças climáticas globais – também sejam tecnologias que minimizem impactos ambientais e sociais locais. 

Muitos recursos estão sendo destinados para o aprimoramento de tecnologias de baixo carbono, porém o investimento em pesquisa e inovação deve contemplar também toda a cadeia de produção dessas tecnologias, para, de fato, minimizar os impactos socioambientais desse novo mundo de baixo carbono que estamos buscando. 

Notas:

1 – Existem subcategorias para o conceito de reserva: reservas provadas – aquelas com 90% de certeza de serem recuperadas; reservas provadas+ prováveis – aquelas com 50% de certeza de serem recuperadas; reservas provadas+ prováveis + possíveis – aquelas com 10% de certeza de serem recuperadas.

A obtenção de terras raras pode ser dividida em 3 etapas básicas: 1) mineração e produção do concentrado, que inclui óxidos de vários elementos de terras raras; 2) separação dos óxidos de terras raras; e 3) refino, que compreende a conversão dos óxidos em metais de terras raras. Ou seja, não basta expandir a mineração para fora da China, já que a capacidade de processamento e refino também está concentrada no país.

Gabriela Nascimento da Silva é consultora na Escopo Energia, doutoranda no Programa de Planejamento Energético (PPE) da COPPE/UFRJ e mestre pela mesma instituição. Formada em Engenharia Química pela UFF e atuou por mais de dois anos em empresas da Indústria Química.

 

Marianne Zotin é engenheira química, doutoranda e pesquisadora do Programa de Planejamento Energético da COPPE/UFRJ. Desenvolveu sua pesquisa de mestrado na mesma instituição, sobre o papel da China na transição energética. Atualmente, sua tese foca no papel de materiais em cenários de mitigação climática de longo prazo.

 

Lavinia Hollanda, CFA, é diretora e sócia fundadora da Escopo Energia, doutora em Economia pela EPGE-FGV e graduada em Engenharia Elétrica pela UNICAMP. Assessora da delegação brasileira no Comitê de Proteção ao Meio Ambiente Marinho (MEPC) da Organização Marítima Internacional (IMO), que trata de questões ambientais sob a responsabilidade da IMO.

Foi membro externo do Comitê de Minoritários da Petrobras, responsável por aconselhar o Conselho de Administração da empresa em transações com partes relacionadas, inclusive no processo de revisão do Contrato de Cessão Onerosa (nov/2016-set/2017). Foi ainda membro do External Review Committee da Royal Dutch Shell entre 2015 e 2017, e representante da sociedade na Comissão Especial de Licitação (CEL) da 13a Rodada de Licitações de blocos para exploração e produção de petróleo da ANP (2015 e 2016).

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