Para instituição de um mercado aberto e competitivo no setor de gás natural é necessário a diversificação de agentes nas duas pontas das transações comerciais – compra e venda. No Brasil, a estrutura atual do mercado não atende a este requisito. De um lado, a oferta é caracterizada por um monopólio da Petrobras. Do outro, instituiu-se um oligopsônio na demanda, em que cinco grupos econômicos controlam a compra de gás pelas distribuidoras estaduais. A inexistência de um mercado livre no Brasil, desta forma, pode ser explicada por restrições impostas tanto pelo lado da oferta como pelo da demanda.
Apesar da importância da discussão a respeito da entrada de novos agentes ofertantes, focaremos nas limitações impostas à diversificação na demanda, ou seja, à migração dos consumidores para o mercado livre.
O marco legal do gás natural, Lei Federal 11.909/2009, criou a figura do consumidor livre, mas atribuiu aos estados sua regulação. Cada estado, por sua vez, estabeleceu regras específicas para o tema. O mapa abaixo ilustra as disparidades entre as legislações. O grau de liberalização exposto se baseia em dois requisitos para migração ao mercado livre – consumo mínimo e prazo mínimo do contrato com novo supridor. Como exemplo das disparidades enxergadas, Mato Grosso estabelece um consumo mínimo 100 vezes maior que Minas Gerais. Além disso, estados com demanda industrial importante sequer implementaram regulação sobre o consumidor livre.
Agentes que defendem a autonomia estadual e as diferenças da regulação entre as unidades da federação argumentam que a abertura deve acompanhar a “maturidade do mercado” de cada estado. É difícil assimilar esta argumentação visto que, em tese, as distribuidoras, na prestação de um serviço público, são remuneradas pela movimentação de gás canalizado. O custo da molécula de gás adquirido deveria ser pass through, ou seja, não deveria trazer ganhos ou perdas para a concessionária. Os consumidores livres, que negociarão o gás diretamente com o supridor, continuariam a remunerar a distribuidora pelo uso da rede. Sendo assim, excetuando-se possíveis prejuízos com take or pay dos contratos vigentes de fornecimento, não haveria motivação dos estados para coibir a abertura do mercado para os grandes consumidores. Pelo contrário, ao reduzir a quantidade contratada de gás, a distribuidora reduz seu risco de crédito e de take or pay e foca na sua atividade fim – construção e operação da rede de distribuição de gás.
A recente Nota Técnica nº 004/2018-SIM, da ANP, lança luz sobre este tema. A Agência defende a diversificação de agentes e delineia a diferença entre as atividades de movimentação e de comercialização de gás ao interpretar o parágrafo 2º, do Artigo 25, em conjunto com parágrafo 4º, do artigo 177 da Constituição Federal. A atividade de movimentação se enquadraria na exclusividade estadual de concessão, já a legislação da comercialização seria de competência da União.
A Lei do Gás, ao remeter aos estados os critérios para estabelecimento do consumidor livre, cria, de certa forma, uma situação paradoxal que torna a abertura do mercado mais complexa. O mercado livre do qual o consumidor livre participaria – âmbito da comercialização – seria regulado pela legislação federal, mas ao mesmo tempo, o consumidor deve seguir os requisitos da regulação estadual para se tornar livre.
A análise não deixa dúvidas que é preciso revisitar o marco legal do gás para garantir a harmonização entre as legislações estaduais e federal. Ao fazê-lo, deve-se considerar uma transição que almeje a uniformização das regras vigentes com vistas a incentivar a competição no mercado de gás. Desta forma, o poder público conduzirá a indústria do gás natural à multiplicação de agentes, incentivando a competição, investimentos e o máximo aproveitamento do valor deste energético.