Em 2019, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o acesso à energia elétrica nos domicílios brasileiros atingiu cobertura praticamente universal, com 99,8% das residências dispondo desse serviço. Diante desse alto índice de universalização, a análise aqui apresentada direciona-se para a qualidade do serviço de energia, pois não basta garantir o acesso, é necessário que o fornecimento seja contínuo, uma vez que as interrupções de energia elétrica produzem impacto na qualidade de vida das pessoas e no desenvolvimento socioeconômico do país.
Um cenário ideal seria o fornecimento de energia elétrica diuturnamente. Contudo, este cenário pode ser técnica e economicamente inviável, uma vez que o fornecimento de energia elétrica está sujeito à interrupções decorrentes de causas de natureza diversa, as quais podem não ser gerenciáveis pela distribuidora, como intempéries climáticas e ambientais, contatos de objetos com os cabos de energia ou mesmo decorrentes de vandalismo. Além disso, a fim de se evitar interrupções inesperadas, a distribuidora precisa efetuar desligamentos programados para a manutenção de sua rede elétrica.
É possível criar-se uma rede robusta, com redundâncias e utilizando-se de tecnologias que podem reduzir as interrupções a níveis muito baixos. Isso poderia ocorrer, por exemplo, obrigando que todas as redes sejam subterrâneas. Porém, tal exigência comprometeria a modicidade tarifária, o que poderia levar, em última análise, à redução do acesso à energia elétrica em decorrência das condições econômicas díspares da população.
Assim, o desafio do regulador é construir um cenário de equilíbrio, a fim de garantir uma qualidade adequada do fornecimento de energia elétrica, mas dentro de um patamar de tarifas em valores acessíveis aos consumidores. Nesse sentido, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) regulamenta a qualidade da energia no segmento de distribuição por meio do Módulo 8 dos Procedimentos de Distribuição .
Embora a qualidade da distribuição de energia abranja outras vertentes, como qualidade do atendimento comercial e qualidade do produto, este artigo está focado na qualidade do serviço, a qual é medida por meio dos indicadores de continuidade do fornecimento, coletivos e individuais, usados para mensurar a duração e a frequência das interrupções do fornecimento de energia.
Os indicadores coletivos, denominados DEC e FEC, apuram, respectivamente, a média de duração e frequência das interrupções de fornecimento verificadas para um grupo de consumidores. Eles podem se referir à um grupo de unidades consumidoras, à distribuidora, ao município, ao estado ou ao Brasil. Já os indicadores individuais, denominados DIC, FIC, DMIC e DICRI, informam por quanto tempo e por quantas vezes, respectivamente, o consumidor ficou sem energia elétrica durante determinado período.
A percepção da falta de energia pode ser bastante diferenciada, dependendo do perfil do consumidor, a saber: residencial, comercial ou industrial. De forma geral, a frequência das interrupções é mais nociva aos processos industriais. Já as atividades dos consumidores residenciais são mais afetadas pela duração das interrupções de energia.
Por um lado, os indicadores coletivos mostram o desempenho global da distribuidora no que diz respeito à qualidade do fornecimento sem, contudo, realçar as heterogeneidades presentes nas diferentes regiões da concessão. Por outro, os indicadores individuais evidenciam as particularidades do atendimento a cada consumidor. Portanto, os indicadores coletivos e individuais mostram-se complementares.
A ultrapassagem dos limites estabelecidos para os indicadores individuais de continuidade gera compensação automática na fatura de energia. A compensação é um dos mecanismos regulatórios de estímulo para que as distribuidoras realizem uma adequada gestão de suas redes, de modo a evitar o pagamento de compensação pela transgressão dos indicadores individuais. É importante esclarecer que esse mecanismo não tem o caráter de indenização, haja vista que valorar o custo da energia não suprida é uma tarefa complexa, pois envolve aspectos subjetivos do consumidor
Em 2019, o valor total de compensações pagas pelas concessionárias de distribuição de energia aos seus consumidores foi de cerca de 628 milhões de reais. Embora em termos individuais as compensações representem um valor irrisório para o consumidor, sob a perspectiva da distribuidora, o dispêndio global é relevante e, por isso, é um estímulo para que esta melhore sua eficiência.
Do ponto de vista da qualidade do fornecimento de energia elétrica no país, os indicadores de continuidade melhoraram significativamente de 2011 a 2020, tendo a duração das interrupções reduzido cerca de 38% e a frequência, 46%, nesse período. Em 2019, em média, os brasileiros tiveram o fornecimento interrompido por 6,68 vezes. Já o limite de interrupções definido pela ANEEL naquele ano foi de 9,27 vezes. Sendo assim, em média, a quantidade de interrupções se mostrou inferior aos padrões considerados adequados, de acordo com as tarifas cobradas e as características do país. Em relação ao tempo total sem energia no período de um ano, foi verificado um valor de 12,85 horas. Essa duração significa que, em 2019, a energia ficou disponível 99,87% do tempo. Já o limite estabelecido pela ANEEL foi de 12,23 horas, mostrando que, na questão da duração das interrupções, as distribuidoras ainda precisam melhorar.
Apesar do progresso na redução dos indicadores ocorrida na última década, esta melhoria não se deu de maneira uniforme para todas as unidades consumidoras. Percebe-se que as áreas mais distantes dos centros urbanos e com menos densidade populacional, ainda estão com níveis de qualidade distantes do ideal.
E foi com vistas a corrigir estas distorções e a gerar incentivos para uma prestação de serviços mais uniforme que a ANEEL abriu o debate para revisão da regulamentação da continuidade dos serviços, por meio da Consulta Pública ANEEL nº 038/2019. A proposta consiste na simplificação de algumas regras e na alteração dos mecanismos de incentivos e penalidades, de forma a incentivar o direcionamento dos investimentos para as áreas mais carentes, ou seja, aquelas para as quais é prestado o pior serviço.
Esses aprimoramentos ainda não foram aprovados. Contudo, espera-se que, se aprovados, revertam-se na melhoria dos indicadores de continuidade do fornecimento e na homogeneização da qualidade dos serviços ao longo de toda a área de atendimento.
Garantir que as distribuidoras prestem um serviço adequado sob a perspectiva da continuidade é uma das atribuições do Regulador. Ao longo da última década, percebe-se uma redução significativa na duração e na frequência das interrupções de energia elétrica decorrente, provavelmente, de todo o arcabouço regulatório. Contudo, entende-se que ainda há espaços para melhorias e parece que é nessa direção que caminha a regulação do setor elétrico brasileiro.
Clélia Bueno é administradora com mestrado em Políticas Públicas e especialização em Análise de Impacto Regulatório. Atuou nas áreas de inovação tecnológica em programas de impulsão ao empreendedorismo. Na ANEEL, trabalhou na regulação do Programa de Pesquisa e Desenvolvimento e, posteriormente, na regulação de atendimento ao consumidor e da Tarifa Social de Energia de Energia Elétrica. Atualmente trabalha no núcleo de regulação da qualidade dos serviços de distribuição de energia elétrica.
Djane Melo é engenheira eletricista, com mestrado em Sistemas de Potência e especialização em Estatística Aplicada. Especialista em regulação da ANEEL, tendo atuado na área de regulação dos serviços de distribuição e, atualmente, atua na Assessoria da Diretoria da Agência.