Energia

A insubsistência jurídica e a impertinência política e econômica do imposto de exportação sobre o petróleo bruto

Não se observando materialmente o pressuposto constitucional para a imposição do IE, sua cobrança é bastante questionável sob o ponto de vista jurídico, analisam Diogo Martins Teixeira e Luíza Oliveira Azevedo

A falta de consistência jurídica e a inadequação política e econômica do imposto de exportação sobre o petróleo. Na imagem: Trabalhador uniformizado em operação em plataforma da Petrobras para produção de petróleo offshore (Foto: Agência Petrobras)
Produção de petróleo em plataforma da Petrobras (Foto: Agência Petrobras)

“Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.

A frase não é nova, sendo de autoria de H. L. Mencken, em 1920, mas, passados pouco mais de cem anos de sua criação, ainda é bastante pertinente para situações (infelizmente) cada vez mais cotidianas no direito tributário brasileiro.

A mais recente hipótese de uso da célebre frase se deu pela instituição da cobrança de Imposto de Exportação (IE) sobre as exportações de óleos brutos de petróleo ou de minerais betuminosos pela Medida Provisória nº 1.163/2023. A cobrança se aplica às exportações realizadas por quatro meses (de 1° de março a 30 de junho de 2023), à expressiva alíquota de 9,2%.

A imposição de tal imposto merece críticas multidimensionais: tanto sob a perspectiva formal quanto material; seja pelo prisma jurídico-tributário ou pelo político e econômico.

Primeiramente salta aos olhos o manifesto desvio de finalidade do uso do IE para fins eminentemente arrecadatórios, dado que sua imposição (inclusive a calibração da alíquota em 9,2%) claramente visou cobrir o montante da renúncia tributária decorrente da manutenção parcial da desoneração tributária sobre determinados combustíveis.

A Exposição de Motivos da referida Medida Provisória, lastreada na Nota Cetad/Coest nº 25/2023, deixa evidente o caráter eminentemente arrecadatório da medida: em vista da renúncia fiscal estimada em R$ 6,61 bilhões pela desoneração dos combustíveis, estimou-se um aumento de receita de R$ 6,65 bilhões por meio da cobrança do IE.

Contudo, o IE é um tributo de natureza extrafiscal, ou seja, deve ser orientado por interesses políticos, econômicos, sociais ou ambientais. Sua finalidade, portanto, é regular situações específicas em linha com os objetivos da política cambial e do comércio exterior (art. 26 do Código Tributário Nacional), mas não predominantemente arrecadatórios.

Justamente por possuir essa finalidade regulatória — e não estritamente arrecadatória –, o legislador constitucional excetuou o IE do princípio da anterioridade tributária (anual e nonagesimal), permitindo a sua cobrança imediata. A prerrogativa de inaplicabilidade do princípio da anterioridade, entretanto, não pode ser utilizada de forma desvirtuada, como instrumento para impor genuína arrecadação do dia para a noite, apenas para fins de (re)composição de caixa em vista de outras desonerações concedidas.

Embora se tenha feito referência na mídia que a instituição do IE pode ensejar maior oferta de petróleo para o mercado doméstico, tal finalidade sequer constou — ainda que superficialmente — da Exposição de Motivos oficial, o que revela não ter sido de fato a razão que justificou a imposição do tributo.

Não se observando materialmente o pressuposto constitucional para a imposição do IE, sua cobrança é bastante questionável sob o ponto de vista jurídico.

Também vale mencionar que a legislação determina que os recursos provenientes da cobrança do IE devem ser destinados à formação de reservas monetárias, a crédito do Banco Central do Brasil, a ser aplicada na forma estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional – CMN (art. 28 do Código Tributário Nacional e art. 9° do Decreto-Lei nº 1.578/1977).

Deste modo, o produto da arrecadação do IE possui destinação legal específica (reserva monetária), não se prestando a meramente cobrir déficit resultante de renúncia fiscal, o que reforça o desvio de finalidade na utilização do tributo.

Considerando que a Medida Provisória n° 1.163/2023 não estabeleceu destinação específica para os recursos oriundos do IE, juridicamente tal tributo também não se qualifica propriamente como Contribuição para Intervenção no Domínio Econômico (Cide).

Não se qualificando como IE ou Cide, dado o não atendimento dos pressupostos constitucionais para tais tributos, cabe considerar ainda que tal tributo também não preenche os requisitos para caracterização como imposto residual (art. 154, inciso I da Constituição Federal), pois (i) não foi instituído mediante lei complementar, (ii) não é recuperável / não cumulativo, e (iii) possui fato gerador idêntico ao IE.

De qualquer modo, e ainda que se insista na natureza jurídica de IE (na forma indicada na Medida Provisória), outro aspecto importante é a ausência de normas aplicáveis quanto à sua base de cálculo.

Isso porque a Medida Provisória estabeleceu apenas a alíquota incidente, o prazo de vigência, e os produtos que ficaram sujeitos, sem dispor (ou sequer fazer referência) à sua base imponível. Não havendo regra específica na Medida Provisória n° 1.163/2023, deve-se observar a regra geral positivada no Decreto-Lei nº 1.578/1977

De acordo com as regras gerais aplicáveis ao IE, “a base de cálculo do imposto é o preço normal que o produto, ou seu similar, alcançaria, ao tempo da exportação, em uma venda em condições de livre concorrência no mercado internacional, observadas as normas expedidas pelo Poder Executivo, mediante ato da CAMEX – Câmara de Comércio Exterior” (art. 2° caput do Decreto-Lei nº 1.578/1977), sendo previsto como indicativo do preço normal “o preço à vista do produto, FOB ou posto na fronteira” (§ 2° do mesmo artigo).

Apesar dessa regra geral, a legislação estabelece um critério específico para os casos em que “o preço do produto (…) for susceptível de oscilações bruscas no mercado internacional”, hipótese na qual “o Poder Executivo, mediante ato da CAMEX, fixará critérios específicos ou estabelecerá pauta de valor mínimo, para apuração de base de cálculo” (§ 3° do art. 2°).

Medida desalinhada com mercado internacional

O petróleo certamente é um produto susceptível de oscilações bruscas no mercado internacional, razão pela qual a definição da base de cálculo do IE depende da edição de norma específica pela CAMEX. Não havendo definição jurídica sobre a base de cálculo do tributo — que é determinada conforme critério específico, na forma da Lei — não há sustentação para a sua exigibilidade.

A instituição do IE também se revela desalinhada com a prática comercial internacional, a qual prestigia o princípio do destino, por meio do qual as operações de exportação são desoneradas no país de origem e tributada no país de importação. Embora tal princípio não seja uma norma estritamente mandatória, de modo a resultar ilegalidade da cobrança do IE per se, sua inobservância também demonstra a impertinência da imposição do tributo, nas operações com petróleo

Ainda sob o viés econômico, pelo fato de o petróleo ser uma commodity, o seu exportador não é formador de preço, mas sim tomador de preço internacional. Em outras palavras, diferentemente de outros produtos nos quais o fornecedor atribui seu preço de acordo com sua estratégia comercial (e mediante a inclusão dos tributos incidentes na formação do respectivo preço do produto), para as commodities quem dita o preço é o mercado, de modo que eventual novo tributo impacta diretamente o custo do vendedor.

Não há, portanto, a possibilidade econômica de repassar o impacto do tributo no preço do produto, de modo que o aumento de custo repercute imediatamente na margem de lucro do vendedor.

Em que pese o tributo se aplicar a todos os exportadores (sob a mesma alíquota), o impacto econômico decorrente do aumento do custo tributário é absorvido de forma diferente pelos agentes econômicos, sendo mais agudo e crítico sobretudo aos produtores independentes, notadamente aqueles que atuam na produção onshore de campos maduros.

Ressalta-se que a indústria do petróleo se caracteriza pela demanda de capital intensivo e pelo alto risco, demandando investimentos de longo prazo e previsibilidade para honrar com contratos complexos. O processo de tomada de decisão de investimento, em qualquer jurisdição, envolve uma complexa avaliação de uma série de fatores, dentre os quais a estabilidade contratual e a segurança jurídica.

Alterações normativas repentinas, inclusive no campo tributário, comprometem severamente a higidez do sistema jurídico-político-econômico e a credibilidade do país com os mercados interno e externo, e, com isso, a percepção de risco da oportunidade de investimento naquela respectiva jurisdição. Isso se torna ainda mais grave em razão da característica da indústria já mencionada de longa maturação e capital intensivo).

A imposição de IE nas operações internacionais com petróleo, sem qualquer diálogo com a sociedade e mediante edição de Medida Provisória com efeitos imediatos, do dia para a noite, transmite ainda uma mensagem de elevada insegurança jurídica e econômica no ambiente de negócios brasileiro, impactando uma série de fatores econômicos relevantes, como a estimativa do risco e de custo, a financiabilidade de projetos perante bancos, viabilidade econômica de campanhas, etc.

Como resultado de tais efeitos adversos aos interesses do próprio país produtor, tal política é abandonada em praticamente todo o mercado global, tendo sido implementada sem sucesso em alguns poucos países. O resultado foi que tais países viram sua indústria ruir diante de tal instabilidade jurídica e inviabilidade econômica de competirem com outros países que adotam modelos tradicionais de desoneração na exportação e adoção do princípio do destino.

Dentre os exemplos próximos de fracasso na implementação de tal política vale destacar a Argentina, que a implementou nos anos 90 e cuja indústria petrolífera não se recuperou até os dias atuais.

Redução da atratividade para investimentos

Importante destacar que o fato de o IE ser cobrado por ‘apenas’ quatro meses não mitiga os efeitos intangíveis negativos da sinalização externa acerca da instabilidade jurídica-tributária do país, abalando a credibilidade do Brasil e aumentando o risco político e econômico, o que, em última análise, reduz a atratividade a investimentos.

Não é por outra razão que as principais entidades do setor (como o Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás – IBP e a Associação Brasileira de Produtores Independentes de Petróleo e Gás – ABPIP) e a comunidade acadêmica (como a Fundação Getúlio Vargas – FGV) reagiram prontamente à publicação da Medida Provisória, alertando para os riscos no longo prazo pela adoção de medidas açodadas que visam — pelo caminho errado — endereçar problemas de curto prazo.

O Poder Legislativo também apresenta sinais de contrariedade à instituição do IE nas operações com o petróleo cru, tendo sido apresentadas 23 emendas ao projeto de lei de conversão da Medida Provisória propondo a supressão integral do seu art. 7°. Outras emendas ainda propõem a implementação de medidas alternativas para atenuar os efeitos do IE, como a devolução dos montantes pagos na forma de créditos fiscais de PIS e COFINS – Emenda 41.

Destaca-se que a instituição do IE sobre o petróleo bruto já havia sido objeto de discussão recente no Poder Legislativo, por ocasião da apreciação do Projeto de Lei n° 1.472/2021, de iniciativa Senador Rogério Carvalho (PT-SE). Entretanto, considerando a avaliação dos graves impactos negativos da instituição de tal IE, o dispositivo que tratava da imposição do tributo foi suprimido por meio do substitutivo aprovado no dia 10 de março de 2022, o qual já foi remetido à Câmara do Deputados sem a referida previsão.

Assim, há sinalização política recente que aponta pela supressão do art. 7° da Medida Provisória n° 1.163/2023 quando da apreciação do seu respectivo projeto de lei de conversão pelo Poder Legislativo.

Independentemente disso, e tal como mencionado acima, a efetiva imposição do imposto levada a efeito pela Medida Provisória por si só já traz consigo relevantes externalidades negativas para o ambiente de negócios e investimentos para o Brasil. Cite-se, como talvez um dos mais críticos, o risco de tal mecanismo ser igual e repentinamente utilizado em outros setores econômicos relevantes (como o agronegócio) como forma de recompor o caixa do governo no curto prazo

Sob uma perspectiva formal, a instituição do IE por meio de Medida Provisória também pode ser objeto de questionamento, dado que os pressupostos constitucionais para a sua utilização, a saber, relevância e urgência. Isso porque a mera geração de receita, em contrapartida à extensão de renúncia fiscal, não atende os pressupostos constitucionais para a veiculação de tal instrumento normativo, o qual deveria ser excepcional – embora se verifique, em termos práticos, certa banalização do seu uso, enfraquecendo (se não usurpando parcialmente) as atribuições do Poder Legislativo.

A utilização excessiva de Medidas Provisórias em matéria tributária pode inclusive encontrar fundamento na relativa conivência da comunidade jurídica pelo seu uso indiscriminado mesmo em situações formalmente incabíveis.

O uso de Medida Provisória para tributos não sujeitos ao princípio da anterioridade acaba por ter efeito satisfativo, dado que a cobrança do imposto se dá imediatamente, havendo complexidade para a eventual devolução dos montantes indevidamente cobrados e recolhidos pelos contribuintes ao Erário.

Diante de todo o exposto acima, e retornando ao início deste artigo, não se nega que a situação fiscal do Brasil é um problema complexo, com elevada sensibilidade sobre o preço dos combustíveis (e a tributação sobre estes). Enquanto, por um lado, a oneração tributária impacta diretamente a inflação e o bolso da população em geral, por outro, a desoneração completa enseja uma importante renúncia de receitas tributárias.

Contudo, soluções simplistas e imediatistas, como a instituição do IE, além de potencialmente inconstitucionais e ilegais — ensejando judicialização –, podem trazer consequências desastrosas para o futuro, devendo ser evitadas a todo custo. Há alguns limites de segurança jurídica e da credibilidade internacional que não devem ser ultrapassados, e o país vez ou outra insiste em tangenciá-los, como é o presente caso.

Diogo Martins Teixeira e Luíza Oliveira Azevedo são sócio e advogados do departamento tributário do Machado Meyer Advogados.

Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.