Por Edmar de Almeida e Gustavo Soares (*)
Em 2012, em plena euforia da descoberta do Pré-sal, escrevemos um artigo no Infopetro intitulado “A encruzilhada da política de precificação dos combustíveis no Brasil”, onde chamávamos atenção para o fato de que a autossuficiência na produção de petróleo e a perspectiva do Brasil se tornar um grande exportador tenderiam a criar um grande desafio para política energética nacional: a tentação política de praticar preços de combustíveis no país abaixo dos praticados no mercado internacional (Almeida, 2012).
Este tema esteve latente na política energética nacional. Após a liberalização total dos preços em janeiro de 2003, o governo passou a estabelecer uma influência indireta no estabelecimento dos preços, através da Petrobras. A política de preços era oficialmente de alinhamento dos preços domésticos aos preços internacionais. Entretanto, os reajustes para a busca de tal alinhamento era coordenado e autorizado pelo governo. Esta política se esgotou durante o governo da presidente Dilma, que decidiu incluir os preços dos derivados de petróleo (oficialmente livres) na sua política de controle de preços administrados para combater a inflação (Oliveira e Almeida, 2015).
A política de controle de preços administrados foi desastrosa para a Petrobras. No período de 2010 a 2014 os preços do petróleo no mercado internacional se sustentaram num patamar elevado (em torno de 100 dólares o barril) no mercado internacional. Entretanto, os preços dos derivados ficaram num patamar bem abaixo deste nível no Brasil. Com consequência, a Petrobras deixou de receber um total de 55 bilhões de dólares em receitas por vender produtos no Brasil mais abaixo do patamar internacional neste período (Almeida, Oliveira e Losekann, 2015). Esta receita frustrada representou o principal fator de levou a empresa à lona com a queda dos preços do petróleo no mercado internacional a partir de 2015.
Além de contribuir decisivamente para a crise financeira da Petrobras, a política de intervenção nos preços pelo governo federal inviabilizou a entrada de agentes privados no segmento do refino. Desta forma, todos os investimentos para a necessária expansão do parque de refino nacional estavam sendo levados a cabo pela Petrobras. A crise financeira da empresa a partir de 2015 interrompeu o esforço da Petrobras para expandir o parque de refino nacional.
A administração de Pedro Parente lançou um planejamento estratégico de reestruturação do segmento de downstream nacional, com vistas a atrair parceiros privados visando a conclusão das obras paradas e a diversificação do número de players no setor. Para isto, era necessário eliminar os riscos para a participação privada no setor, associada à intervenção discricionária do governo federal nos preços dos principais derivados. A solução encontrada para eliminar tal risco foi dar transparência ao processo de precificação dos combustíveis através da prática de alinhamento diário dos preços ao mercado internacional.
A greve dos caminhoneiros colocou em cheque esta política. Uma enorme pressão política se formou para que o país passasse a subsidiar os combustíveis, através da redução de impostos e mesmo através da venda pela Petrobras por preços menores que o mercado internacional. Importantes forças políticas de espectros políticos opostos sucumbiram à mesma tentação da solução fácil dos subsídios aos preços dos combustíveis. Uma estranha convergência com base na ideia de que preços de mercado dos combustíveis já não representam o interesse nacional, já que o país agora é exportador de petróleo.
O debate que se desenvolveu durante e após a greve dos caminhoneiros foi confuso, apressado e superficial. Medidas adotadas às pressas para acalmar os ânimos ignoraram totalmente a atual forma de organização do mercado de combustíveis, bem como o arcabouço tributário e regulatório do setor. Prometeu-se redução de preços por decreto, num setor de enorme complexidade, aberto à competição e com grande diversidade de atores (com única exceção do segmento do refino).
A política nacional de petróleo encontra-se numa encruzilhada entre avançar na promoção da competição no setor de combustíveis ou voltar a caminhar em direção ao contexto de monopólio que vigorou até 1995. A escolha de subsidiar os combustíveis, em particular através da imposição de preços à Petrobras abaixo do mercado internacional, é totalmente incompatível com a concorrência no setor. Ambos os caminhos vão exigir um grande esforço do governo na implementação de uma agenda regulatória.
Quais lições podemos tirar a experiência internacional?
Os subsídios aos combustíveis fósseis estão fora da moda nas políticas energéticas nacionais. Em recente estudo o Banco Mundial ressaltou que a queda dos preços petróleo a partir de 2014 gerou uma onda de revisão das políticas de subsídios aos subsídios aos derivados de petróleo nos países em desenvolvimento Kajima (2016). Por sua vez, a disseminação de políticas de promoção de combustíveis alternativos no transporte com vistas à transição energética vem contribuindo para reforçar a taxação aos derivados nos países desenvolvidos.
Entretanto, os combustíveis fósseis ainda são muito subsidiados. Estes subsídios acontecem principalmente nos países em desenvolvimento que são grandes exportadores de petróleo (ver gráfico 1). Segundo a IEA (2018), cerca de 470 bilhões de dólares foram gastos com subsídios aos derivados do petróleo entre os anos de 2014 e 2016(1). Vale ressaltar que o montante de subsídios anuais caiu após 2014 em função da redução do preço do petróleo e da implementação de políticas de corte de subsídios.
Além de ir na contramão das iniciativas voltadas para o desenvolvimento das energias renováveis, há forte evidência de que subsídios e controles de preços dos combustíveis fósseis geram mais problemas que soluções. Em primeiro lugar, em geral os subsídios aos combustíveis em países em desenvolvimento apresentam impactos nefastos sobre já ruim distribuição de renda. Del Granado et. al. (2012) chamam a atenção para o efeito vazamento dos subsídios para as faixas de maior renda que consomem mais intensivamente os derivados de petróleo.
Em segundo lugar, as políticas de subsídios frequentemente geram, ou reforçam, concentração de mercado. Geralmente, quando há a presença de uma grande empresa estatal, responsável por aplicar a política de subsídios, prática comum de estados com problemas fiscais, cria-se uma competição desleal, onde os agentes privados não possuem capacidade de concorrer no mercado. Assim, os custos da garantia do suprimento dos derivados recaem exclusivamente sobre o Estado, com impactos fiscais importantes.
Vale ressaltar ainda que os controles de preços acabam gerando grandes diferenciais de preços entre os produtos ou para um mesmo produto comercializado entre setores e/ou regiões, criando forte incentivo a práticas comerciais desleais como adulterações de combustíveis com preços mais elevados e arbitragens com a venda dos combustíveis.
Por fim, quando há longos períodos de controle de preço, uma tentativa de liberalização dos preços pode ser dificultada pois o ajuste necessário pode ser significativo, o que torna a liberalização extremamente impopular.
As razões acima levaram a cúpula do G20 a se comprometer com a promoção de políticas para eliminar os subsídios aos combustíveis fósseis. Assim, muitos dos países que hoje subsidiam os combustíveis lutam para rever esta política e reestruturar o segmento do downstream. Porém, uma vez adotado os subsídios é politicamente muito difícil reverter esta política. Em muitos países produtores de petróleo, o consumo de combustíveis a preços subsidiados passa a ser visto como um direito social(2).
O subsídio aos combustíveis pode se tornar uma verdadeira armadilha. Ao invés de aumentar o bem-estar da população, gera maiores distorções e prejuízos sociais. A situação é dificultada pela inflexibilidade de se rever políticas de controle de preços dado o seu caráter impopular.
O esforço para desmontar a política de subsídios, levou o desenvolvimento de algumas políticas alternativas. Este foi o caso da criação de fundos de estabilização de preços, que se tornaram populares nos anos 1990 e 2000. A ideia central é gerar um fundo com impostos arrecadados, quando os preços internacionais dos combustíveis estão baixos, e subsidiar o preço do combustível, com o fundo acumulado, quando os preços internacionais estão elevados. Na nossa região, Chile e Peru são exemplos de países que estabeleceram fundos de estabilização.
Estes fundos perderam relevância nos últimos anos, uma vez que várias experiências demonstraram que os mesmos acabam não atingindo seus objetivos. A premissa básica para sua implementação, a de que os preços convergem com certa regularidade para alguma média, frequentemente não se observa no mercado de petróleo. Existe uma grande dificuldade para se estimar um preço médio em determinado período, e a busca de um “preço justo” leva à um viés de fixação de preços abaixo da média real. Consequentemente, os fundos de estabilização tendem a requerer frequentes aportes do tesouro, com subsídios diretos do governo aos preços dos combustíveis.
O Chile, em 1991, estabeleceu seu primeiro fundo de estabilização em virtude da primeira Guerra do Golfo e a consequente subida dos preços internacionais. Em 2004, o fundo já estava esgotado já que a escalada dos preços se manteve constante. Em 2005, com uma nova tentativa foi criado o Fundo de Estabilização de Preços de Combustíveis Derivados do Petróleo (FEPCO). O Fundo manteve-se operante até 2010 graças ao suporte financeiro do governo chileno que em 2006 injetou US$ 0,7 bilhões no FEPCO. O país encerrou seus fundos de estabilização e buscou a estabilização dos preços dos combustíveis por meio da cobrança de uma tarifa fixa e uma tarifa variável. A tarifa fixa é ajustada mensalmente, considerando apenas a inflação, enquanto a tarifa variável é controlada pelo governo como forma de suavizar as variações dos preços internacionais.
Peru é um exemplo de país que reviu sua política de estabilização dos preços. Seu fundo de Estabilização dos Preços dos Combustíveis (FEPC), criado em 2004, necessitou de transferências da ordem de US$ 2,5 bilhões até 2011 para a sua manutenção. Em 2014, o fundo foi revisto como parte do acordo de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico. Estudos realizados no âmbito do acordo concluíram que os custos do fundo superavam em demasia os seus benefícios e que seu encerramento não teria impactos inflacionários.
Giacomo et al. (2015) chama atenção para os mecanismos fiscais de estabilização de preços. De acordo com os autores, alguns países europeus (Itália, França, Portugal e Reino Unido), além de alguns estados americanos criaram impostos flutuantes visando estabilizar os preços dos combustíveis aos consumidores. Entretanto, esta experiência durou pouco e foi gradativamente abandonada pelos países nos períodos de preços baixos do petróleo. O forte impacto fiscal da redução dos impostos nos períodos de preços elevados foi a principal razão para a queda da popularidade desta opção de política de estabilização.
As dificuldades apontadas acima levaram à disseminação de esforços de liberalização do mercado de combustíveis, como aponta Kajima (2016). Neste sentido, a questão da tributação (taxação do carbono) e das políticas e instrumentos para promoção da transparência e competição no setor representam hoje os principais temas de política setorial no mercado de combustíveis fósseis.
Alternativas para o Brasil?
O caminho da promoção da competição, num ambiente de mercado transparente e sustentável é o único que é coerente com o esforço da política energética e ambiental do país das últimas décadas, bem como com um esforço para dar um papel relevante ao Brasil no cenário de transição energética que se desenha.
Primeiramente, é necessário dar à Petrobras a oportunidade de terminar seu ajuste econômico sem comprometer a segurança energética nacional. Para isto, é necessário atrair investimentos privados para o refino (tal como se fez para o segmento do E&P). O Brasil precisa expandir seu parque de refino para evitar que as importações de combustíveis atinjam um patamar que comprometa a segurança energética do país.
O volume investimentos necessários para dar autossuficiência ao país no refino de petróleo é muito elevado. A Petrobras não tem condições de realizar sozinha estes investimentos, sob pena de ter que abrir mão do seu protagonismo no Pré-sal. Para atrair investimentos privados é necessário eliminar o risco de manipulação dos preços pelo governo. O caminho para este cenário é a reestruturação do mercado de refino, com a promoção da competição no setor.
De forma transitória, enquanto as condições para competição no suprimento de combustíveis não forem criadas, é possível se buscar uma política de preços para disciplinar o monopólio da Petrobras. Entretanto, esta regra de preços precisa ter atributos que permita reduzir os impactos sociais da volatilidade dos preços sem comprometer o desenvolvimento de um mercado competitivo no setor de combustíveis: i) precisa ser transparente; ii) que evite a volatilidade diária dos preços; iii) que não crie distorções competitivas entre a Petrobras e concorrentes; iv) e que evite ao mesmo tempo subsídios dos contribuintes aos consumidores.
Trata-se de equação complexa cuja solução não é evidente. O estabelecimento de preço fixo mensal (ou com outra periodicidade) e um reajuste de acordo com preços médios do período irá resultar em perdas ou ganhos para a Petrobras durante o período em que os preços estiverem fixos na refinaria. Os dois cenários (perdas ou ganhos) afetam a concorrência. A única forma de neutralizar o efeito competitivo dos preços fixos seria uma através de uma taxação variável (diária ou semanal) dos combustíveis importados. Portanto, uma política de preços que atenda aos critérios acima listados irá requerer uma concomitante revisão da política tributária do setor.
Vale ressaltar ainda, que a política de preços acima mencionada afetaria apenas os preços dos produtos importados ou na refinaria. Os preços das distribuidoras e dos postos revendedores são livres no Brasil. Desta forma, o único caminho para melhorar o funcionamento destes segmentos num contexto de concorrência é promover a transparência no mercado. Neste sentido, existem caminhos e experiências interessantes a serem seguidas. Uma delas é a criação de instrumentos para melhorar a informação aos consumidores sobre os preços e margens praticadas.
Na Alemanha, por exemplo, desde 2013 os órgãos de defesa da concorrência passaram a exigir que as alterações dos preços nas bombas sejam informadas ao regulador, através de aplicativos desenvolvidos para este fim. Esta informação é então disponibilizada online para provedores privados de informação aos consumidores(3). Com a maior transparência do mercado observou-se uma redução da assimetria no processo de transmissão das variações dos preços no mercado internacional. Estes aplicativos permitiram ainda novas estratégias de marketing para concorrência no mercado dos combustíveis, como descontos nos horários de menor demanda, por exemplo. Certamente, inovações tecnológicas aplicadas ao mercado de combustíveis baseadas na digitalização e tecnologias da informação podem ser poderosas ferramentas para um mercado mais competitivo e eficiente, em benefício dos consumidores.
Assim, existem uma longa e complexa agenda política e regulatória pela frente. Entretanto, o primeiro passo é a decisão política quanto ao caminho a ser tomado na encruzilhada atual. O debate político que se inicia para as eleições gerais representa uma grande oportunidade para definir se o Brasil quer o caminho dos preços realistas e da concorrência ou prefere a armadilha do subsídio e do monopólio.
Artigo originalmente publicado pelo blog Infopetro
Bibliografia
AGÊNCIA INTERNACIONAL DA ENERGIA- IEA (2018). Energy Subsidies. Disponível em https://www.iea.org/statistics/resources/energysubsidies.
ALMEIDA, E. L. F. ; COLOMER, Marcelo . “Gas Stations”. In: Global Law and Businesss. (Org.). Brazilian Midstream and Downstream Oil and Gas. 1ed.London: Global Law and Business, 2014, v. 1, p. 135-156.
ALMEIDA, E. L. F. ; COLOMER, Marcelo ; de Oliveira, P.V.S.C . “Oil Products Production and Distribution in Brazil”. In: Eduardo Pereira; Kim Talus. (Org.). The Encyclopaedia of Oil and Gas Law. 1ed.London: global law and business, 2015, v. 2, p. 129-148.
ALMEIDA, E. L. F., de OLIVEIRA, P.V.S.C, LOSEKANN, L. D. Impactos da Contenção dos Preços dos Combustíveis. Revista de Economia Política. São Paulo, v. 35, pg. 150, 2015.
ALMEIDA, Edmar (2012). A Encruzilhada da Política de Precificação de Combustíveis no Brasil. Boletim Infopetro, disponível em: https://infopetro.wordpress.com/2012/03/05/a-encruzilhada-da-politica-de-precificacao-dos-combustiveis-no-brasil/
DEL GRANADO, F. J. A., COADY, D., e GILLINGHAM, R. (2012). “The Unequal Benefits of Fuel Subsidies: A Review of Evidence for Developing Countries”. World DevelopmentVol. 40, No. 11, pp. 2234–2248.
GIACOMO, M., PIACENZA, M., SCERVINI, F. e TURATI, G. (2015). “Should we resurrect ‘TIPP flottante’ if oil price booms again? Specific taxes as fuel consumer price stabilizers”. Energy Economics 51, 544–552.
KOJIMA, Mosami (2016). “Fossil Fuel Subsidy and Pricing Policies Recent Developing Country Experience”. Policy Research Working Paper 7531, Banco Mundial. Disponível em http://documents.worldbank.org/curated/pt/424341467992781075/pdf/WPS7531.pdf
OLIVEIRA, Patricia e ALMEIDA, Edmar (2015). Determinants of fuel price control in Brazil and price policy options. Latin American Meeting on Energy Economics, Medellin, Colômbia.
Notas:
(*) Mestre em Economia pela UFRJ
(1) Vale mencionar que tal valor é subestimado pois a IEA utiliza a metodologia price‐gap que calcula o total de subsídios considerando apenas o diferencial de preços, entre o preço de referência do mercado e o preço ao consumidor final, multiplicado pelo total consumido em cada país. Isto é, a metodologia desconsidera qualquer forma de apoio que não afeta o preço final dos produtos, tais como crédito subsidiados aos produtores ou distribuição de vales de compra de combustíveis para as camadas mais pobres da população. (IEA, 2018)
(2) Ressalte-se que muitos países grandes exportadores resistiram à tentação dos subsídios. Este foi o caso da Noruega, Reino Unido e Estados Unidos.
(3) O regulador da concorrência (Bundeskartellamt) criou um departamento especializado no monitoramento do mercado de revenda de derivados (Market Transparency Unit for Fuels). Para mais detalhes confira https://www.bundeskartellamt.de/EN/Economicsectors/MineralOil/MTU-Fuels/mtufuels_node.html