Congresso

As concessionárias de serviço público e a reforma tributária: o tratamento dos créditos “diferidos” de PIS/Cofins

Créditos fiscais não utilizados geram preocupações para concessionárias públicas diante da reforma tributária, escrevem Diogo Olm Ferreira e Diego Miguita

Audiência da Comissão de Finanças e Tributação discute a Reforma Tributária (PEC 45/2019), em 24/5/2023 (Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados)
Audiência da Comissão de Finanças e Tributação discute a PEC 45/2019 (Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados)

O objetivo deste breve artigo é tratar de um impacto da reforma da tributação do consumo que será enfrentado pelas concessionárias de serviço público a partir da extinção do PIS e da Cofins: o tratamento dos créditos da não cumulatividade cujo aproveitamento foi diferido pela legislação tributária atual. Esse impacto específico também será enfrentado por empresas atuantes em outros setores, mas particularidades das concessões acentuam os seus efeitos e demandam uma análise específica.

A legislação atual de PIS e de Cofins, diante do tratamento tributário previsto na ICPC 01, estabelece regras específicas para a tributação da receita relacionada à construção da infraestrutura de concessão, cujo registro se dá em contrapartida de ativo financeiro ou ativo intangível (desde o CPC 48, denominados “ativo de contrato”) [1]. De forma extremamente simplificada, a receita que tem como contrapartida ativo intangível não é tributada, enquanto a receita com contrapartida de ativo financeiro é tributada à medida do seu recebimento [2].

A legislação também estabelece regras específicas para a apropriação de créditos da não cumulatividade relacionados aos gastos incorridos para a construção dessa infraestrutura.

Por mais que a parte mais significativa do investimento em Capex geralmente se concentre no início da concessão, durante a chamada “fase de construção”, o aproveitamento dos créditos se dá ao longo de todo o prazo da concessão, na medida da amortização do ativo intangível ou da tributação das receitas relativas ao ativo financeiro [3]. Referidos créditos, no entanto, não são objetos de qualquer atualização monetária.

Exemplificativamente, um gasto de $ 10.000 gera direito à apropriação de créditos de $ 925,00. Referidos créditos, todavia, serão efetivamente apropriados e utilizados durante 30 anos (prazo hipotético da concessão). Em uma economia praticamente inflacionária, o valor presente desses créditos, portanto, é próximo de zero.

Daí a importância do Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura – Reidi, que tem como efeito suspender a incidência de PIS e de Cofins sobre as receitas de venda e importações de bens e serviços empregados na construção da infraestrutura, diminuindo os gastos de Capex e afastando a apropriação de créditos [4].

Apesar dos méritos desse regime, existem limites para sua aplicação em relação a setores específicos e uma significativa burocracia relacionada à habilitação do titular do projeto. Como consequência, existem (i) concessionárias que não obtêm habilitação ao Reidi ou (ii) não conseguem obter a habilitação antes que sejam incorridos gastos relacionados à construção da infraestrutura. Em ambos os casos, a aquisição de bens e serviços acaba onerada pelo PIS e pela Cofins, gerando para a concessionária o direito ao creditamento.

O aproveitamento efetivo, como detalhado, se dará ao longo de inúmeros anos, gerando uma distorção quanto ao propósito da não-cumulatividade e ônus financeiro adicional para a concessão.

Se essa situação já é, em si, problemática, a reforma da tributação do consumo traz desafios adicionais. Afinal, o PIS e a Cofins serão revogados a partir de 2027: o que acontecerá com os créditos que não tiverem sido utilizados até essa data?

Durante a tramitação do projeto que se tornaria a Emenda Constitucional nº 132/2023, diversas dúvidas surgiram a respeito dos créditos acumulados de PIS e de Cofins. Trata-se de uma situação distinta daquela analisada neste artigo: os créditos acumulados surgem quando o total de créditos apropriados em determinado período superam o total de débitos apurados.

Ou seja, a questão do acúmulo envolve créditos efetivamente apropriados, ou seja, que foram utilizados pelo contribuinte. Os créditos relacionados aos gastos com a implementação de infraestrutura não são, a rigor, apropriados. Como visto, o seu aproveitamento é “diferido” para ocorrer ao longo de toda a concessão.

Felizmente, o artigo 135 do ADCT, introduzido pela Emenda Constitucional nº 132/2023, apresenta redação significativamente ampla, apta a abranger tanto os créditos acumulados quando os créditos “diferidos”. Esse dispositivo prevê, em resumo, que a lei complementar disciplinará a utilização de créditos de PIS e de Cofins “não apropriados ou não utilizados”.

Há autorização constitucional para que seja alcançada uma solução para o problema sob análise. Ainda assim, o presente artigo se justifica para destacar a diferença entre os créditos acumulados e os créditos “diferidos”. A solução a ser desenvolvida para cada caso deve se atentar para as respectivas particularidades.

Por exemplo, determinar que todos os créditos continuem a ser aproveitados no prazo fixado na legislação atual (até o término da concessão, por exemplo) pode perpetuar as distorções atualmente existentes e destacadas acima. Isso porque os créditos de PIS e de Cofins, ainda que possam abater débitos futuros da CBS, terão valor irrisório com o passar dos anos, na medida em que não sujeitos a qualquer correção.

Vale notar que a existência de créditos “diferidos” não é uma exclusividade das concessionárias de serviços públicos. No entanto, para as demais hipóteses previstas na legislação – como é o caso de edificações, máquinas, equipamentos e outros ativos intangíveis – foram estabelecidas hipóteses de creditamento “acelerado”, independentemente da vida útil econômica do bem.

No caso de créditos relacionados à formação de ativos intangíveis e financeiros, pelo contrário, há manifestação da Receita Federal contrária ao creditamento acelerado [5]. Trata-se de mais uma razão para que os créditos “diferidos” de concessionárias recebam cuidado específico.

Além da questão temporal, a transição poderá gerar um descompasso entre as alíquotas nominais da origem do crédito (alíquota conjugada de 9,25%) e as alíquotas dos tributos que futuramente incidirão na atividade desenvolvida pela concessionária (estimativa de alíquota conjugada de CBS/IBS de 27,5%).

Ou seja, embora o crédito ainda não apropriado possa ser utilizado no futuro, o débito a ser “compensado” será significativamente maior. Uma solução é a previsão de créditos presumidos, como forma de evitar um aumento da carga tributária da atividade objeto da concessão. De outra forma, o descompasso apontado acima demandará avaliação quanto ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

A propósito, não há dúvidas de que os problemas apontados acima também deverão ser analisados sob a ótica de soluções regulatórias, que busquem reajustar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, de modo a refletir as alterações na tributação do consumo e não prejudicar as concessionárias.

Essa possibilidade, no entanto, não deve ignorar a necessidade de uma solução propriamente tributária, inclusive de modo a evitar que os créditos não aproveitados sejam tratados como “perdidos” e simplesmente repassados, gerando riscos para a modicidade tarifária.

Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.

Diogo Olm Ferreira é mestrando em Direito Tributário na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Tributário Internacional no Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Coordenador do Portal Tributação e Contabilidade. Coautor do livro “Tributação Federal do Setor Elétrico”. Advogado tributarista do VBSO Advogados.

Diego Miguita é mestre em Direito Tributário na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. MBA em gestão tributária pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras – FIPECAFI. Certificado em International Financial Reporting (CertIFRS) pela Association of Chartered Certified Accountants (ACCA). Coordenador do Portal Tributação e Contabilidade. Coautor do livro “Tributação Federal do Setor Elétrico”. Advogado tributarista do VBSO Advogados.

Referências

[1] Já tivemos a oportunidade de detalhar os aspectos tributários e contábeis dos contratos de concessão de serviços públicos no livro “Tributação Federal do Setor Elétrico”, e também no artigo: <https://www.conjur.com.br/2024-fev-16/reforma-tributaria-e-a-contabilidade-de-concessionarias-de-servicos-publicos>. Acessado em 21/3/2024.

[2] Artigo 56 da Lei nº 12.973/2014.

[3] Artigo 3º, parágrafo 21, da Lei nº 10.637/2002 e artigo 3º, parágrafo 29, da Lei nº 10.833/2003.

[4] Questão que tivemos a oportunidade de detalhar no seguinte artigo: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/tributacao-da-infraestrutura-01012024>. Acessado em 21/3/2024.

[5] Solução de Consulta COSIT nº 98/2019.