Em referência à máxima (atribuída a Benjamin Franklin) de que nada é certo na vida, exceto a morte e os impostos, pode-se dizer que na “vida corporativa” os tributos também são uma certeza inafastável.
Este artigo tem por objetivo tratar de um grupo de contribuintes que, embora igualmente sujeitos à certeza dos tributos, lidam há anos com a incerteza sobre como apurá-los: as transmissoras de energia elétrica sujeitas ao Lucro Presumido para apuração do IRPJ e da CSLL.
Por decorrência da normatização contábil, a Receita Anual Permitida (RAP) auferida pelas transmissoras é segregada entre as receitas de construção e as de operação e manutenção (O&M) da infraestrutura de transmissão.
Desde 2015, em sequência à publicação da Lei nº 12.973/2014, que revogou o Regime Tributário de Transição e instituiu um novo regime tributário – através do qual a contabilidade no “padrão IFRS” [1] (que prevê a segregação da RAP indicada acima) passou a ser o ponto de partida para a apuração dos tributos federais –, a Receita Federal do Brasil (RFB) vinha adotando, de forma quase que absoluta, o entendimento de que a parcela da RAP atrelada contabilmente à construção deve sujeitar-se ao percentual de presunção de 32% (para IRPJ e CSLL), enquadrando-se como contraprestação por construção civil.
Ao passo que a parcela remanescente atrelada ao O&M estaria sujeita aos percentuais de 8% (para IRPJ) e 12% (para CSLL), o que poderia ser justificado pelo entendimento (já adotado de forma expressa pela própria RFB) de que a atividade de transmissão teria natureza de transporte de cargas. [2]
Controvérsias sobre a tributação da RAP
Em 2018 verificou-se um descolamento momentâneo desse entendimento, quando a RFB proferiu a Solução de Consulta (SC) Cosit nº 259, reafirmando a aplicação do percentual de 32% para a parcela da RAP atrelada à construção da infraestrutura de transmissão, porém entendendo que as receitas de O&M constituem receitas de transmissão de energia elétrica sujeitas aos percentuais de 16% para IRPJ (e não 8%), e 12% para CSLL – mudança que se poderia justificar pela potencial caracterização da atividade de transmissão como transporte em geral, e não de cargas.
Essa SC logo veio a ser anulada [3], preservando-se o entendimento anterior (sumarizado nos parágrafos acima), e assim tem sido desde 2015.
Como é de conhecimento na indústria, há diversos argumentos para afastar a aplicação do percentual de 32% sobre a RAP atrelada à construção e para afirmar a aplicação dos percentuais de 8% (para IRPJ) e 12% (para CSLL) para a integralidade da RAP recebida pelas transmissoras.
Vale citar, a título de exemplo, o fato de a própria legislação regulatória dispor que a atividade de transmissão consiste no transporte de energia [4], bem como o fato de as transmissoras serem contratadas para prestar serviço público de transmissão de energia (e não para realizarem atividade de construção), com a RAP ofertada em licitação e posteriormente recebida pelas transmissoras, conforme previsto no contrato de concessão, sendo “una” (sem qualquer segregação entre parcela de construção e de O&M, com a correspondente distinção existindo essencialmente para fins de demonstração contábil).
Esses argumentos são amplamente utilizados no Judiciário, havendo diversas decisões proferidas por Tribunais Regionais Federais favoravelmente aos contribuintes (reconhecendo a aplicação dos percentuais de 8% e 12%).
Não bastasse toda a insegurança jurídica e judicialização que decorre desse tema, a RFB voltou novamente a sua atenção para a RAP vinculada às atividades de O&M, e publicou em 04 de setembro a SC Cosit nº 250 para – novamente – mudar o seu entendimento, afirmando que os percentuais de presunção aplicáveis são de 16% para IRPJ (ao invés de 8%) e 12% para CSLL.
Para justificar essa mudança de entendimento, a RFB afirma na SC Cosit nº 250/2024, em síntese, que as manifestações anteriores não articularam os fundamentos favoráveis à aplicação dos percentuais de 8% (para IRPJ) e 12% (para CSLL) sobre a RAP de O&M – o foco dessas manifestações foi sobre a RAP de construção.
E traz como argumento principal o entendimento de que a atividade de transmissão tem natureza de transporte em geral/sui generis, em detrimento do transporte de carga, dado que esse tipo de transporte pressupõe um bem corpóreo a ser transportado (o que não seria o caso da energia).
Essa posição é questionável sob diferentes perspectivas (a começar pela própria classificação da atividade de transmissão como um transporte “sui generis”), e tem o potencial de resultar em uma nova onda de judicialização pelas transmissoras de energia, que devem continuar convivendo com a certeza dos tributos, e com a incerteza sobre como apurá-los.
Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.
Breno Sarpi e Luiz Loureiro são, respectivamente, sócio e advogado de Tributário do Lefosse.
Referências
[1] International Financial Reporting Standards.
[2] Conforme art. 15, caput, e §1º, inciso III, alínea “e”, e art. 20, incisos I e III da Lei 9.249/1995. Sobre o entendimento da RFB, vale citar, a título de exemplo, as seguintes soluções de consulta: SC Cosit nº 174/2015; SC Cosit nº 112/2016; SC Disit/SRRF03 nº 3015/2022; SC Disit/SRRF07 nº 7.035/2018; SC Disit/SRRF08 nº 8.021/2016; SC Disit/SRRF08 nº 8.020/2016; SC Disit/SRRF09, nº 149/2002; e SC Disit/SRRF07 nº 343/2006.
[3] Conforme informação disponibilizada pela RFB no item 28 da SC Cosit nº 250/2024, no sentido de que a SC Cosit nº 259/2018 foi “anulada, a pedido do Consulente, extinguindo, por conseguintes, seus efeitos, haja vista a constatação de processamento em duplicidade da mesma consulta, a qual houvera sido previamente analisada e respondida em processo distinto. Neste caso, prevaleceu a primeira Solução de Consulta, exarada em 1º de setembro de 2016, sob o nº 8.017, a qual, a exemplo da Solução de Consulta nº 112, de 2016, foi omissa quanto ao percentual de presunção aplicável às atividades de operação e manutenção [o foco dessas SCs foi o percentual aplicável para as receitas de construção].”
[4] Resolução Normativa Aneel n° 674, de 11.08.2015.