Energia

UHEs querem ampliar geração com leilão de potência, mas enfrentam desafios

Objetivo da concorrência é contratar geração “firme” para o sistema, ou seja, a disponibilidade necessária para atender à carga

UHE Governador Bento Munhoz da Rocha Netto/Foz do Areia (Foto: Divulgação)
UHE Governador Bento Munhoz da Rocha Netto/Foz do Areia (Foto: Divulgação)

Sem previsão de novos grandes projetos no país devido aos impactos ambientais, operadores de usinas hidrelétricas estão otimistas com as oportunidades para ampliação da capacidade de geração desses projetos a partir do leilão de reserva de capacidade previsto para agosto.

Será a primeira vez que a fonte vai poder concorrer em um leilão de potência no país, tipo de certame que ocorreu apenas uma vez até o momento, em 2021.

Restam dúvidas, entretanto, sobre a participação de projetos que têm contratos a vencer, além de incertezas sobre a possibilidade de participação das usinas descotizadas da Eletrobras, um dos maiores players desse mercado.

O objetivo do leilão é contratar geração “firme” para o sistema, ou seja, a disponibilidade necessária para atender à carga.

Segundo dados da International Hydro Association apresentados em 2023, o Brasil tem oportunidade para acrescentar 11 gigawatts (GW) em potência adicional ao sistema apenas nas 51 hidrelétricas em operação há mais de 30 anos.

“Do ponto de vista energético, diferente da imensa maioria dos países do mundo, as nossas baterias estão nos reservatórios”, afirmou o CEO da AES Brasil, Rogério Jorge, durante o Fórum Brasileiro de Líderes em Energia em abril.

No mesmo evento, a CEO da Spic Brasil, Adriana Waltrick, ressaltou que foi a energia firme gerada pelas hidrelétricas que permitiu ao país ampliar a geração renovável por fontes intermitentes – eólica e solar – nos últimos anos.

“Estamos vendo o leilão de reserva de capacidade como uma grande oportunidade para o país reconhecer o papel das hidrelétricas tanto na flexibilidade quanto na confiabilidade do sistema. Quem segura o tranco do sistema como um todo quando falta vento ou sol são as hidrelétricas e elas não têm isso reconhecido como fonte”, afirmou.

Para ela, o potencial das hidrelétricas estava adormecido no Brasil e ressurge com esse leilão. “Eis aqui a oportunidade: esperamos que a regulação permita o máximo de repotenciação e de ampliação das hidrelétricas”, disse.

As regras da concorrência abertas a consulta pública em março preveem a contratação de usinas termelétricas novas e existentes para início da disponibilidade de potência a partir de 2027 e 2028; além de novas unidades geradoras em hidrelétricas existentes para 2028.

Como os prazos curtos para a entrada em operação são um dos desafios do leilão, a possibilidade de ampliação de projetos favorece as hidrelétricas existentes.

Limites

Nas recomendações feitas na consulta até o momento, há quem questione a participação das hidrelétricas no leilão.

A EDP, por exemplo, afirma que essas usinas não teriam capacidade de dar respostas rápidas às necessidades do sistema, sobretudo em momentos de seca. E relembra a crise hídrica de 2021, quando foi necessário ampliar o uso das térmicas para compensar a dificuldade na geração hidrelétrica em meio ao baixo volume dos reservatórios.

A empresa sugere que o MME substitua a possibilidade de participação de hidrelétricas nesse leilão por novas tecnologias, como baterias.

Diversos fatores limitam o número de hidrelétricas que vão poder concorrer. Um deles é a exclusão das usinas em regime de cotas, que não vão poder participar do leilão.

O regime das usinas cotistas foi instituído em 2013 para unidades que estavam com contratos vencendo, com o objetivo de baratear o custo da energia, a partir da MP 579. A renovação das concessões foi antecipada e essas usinas passaram a receber um valor fixo, as cotas, pela energia gerada, que é negociada apenas com as distribuidoras, no mercado regulado.

Participação da Eletrobras

Outra grande incerteza diz respeito às hidrelétricas da Eletrobras, que estão saindo do regime de cotas num modelo negociado na época da privatização da companhia, em 2022. A descotização está ocorrendo de forma escalonada até 2027, de modo a permitir que a empresa passe a negociar esses projetos em contratos mais vantajosos também no mercado livre.

Na prática, a minuta da portaria sobre o leilão publicado em março não traz regras específicas para o caso da Eletrobras, mas deixa claro que usinas que tiveram contratos prorrogados ou foram relicitadas sob o regime de cotas não vão poder concorrer.

Apesar de as usinas da Eletrobras terem tido concessões estendidas por meio da cotização, esses ativos deixam de seguir a lei que criou o regime de cotas depois que a antiga estatal foi privatizada, explica o gerente de assuntos regulatórios da PSR, Jairo Terra.

O especialista destaca que a expectativa é que a Eletrobras possa participar da concorrência, do contrário, a competição ficará restrita a poucos agentes.

O vice-presidente de estratégia e desenvolvimento de negócios da Eletrobras, Elio Wolff, afirma que a companhia está estudando projetos e se prepara para participar “ativamente” do leilão. Segundo ele, algumas usinas têm maior predisposição em receber novas máquinas, com poucas obras civis.

“O desafio do órgão licitador é assegurar que ele consiga capturar o melhor valor de todos esses diferentes projetos”, disse em conversa com a agência epbr no começo de abril.

Wolff reforça que a visão da companhia é que vai poder concorrer com as usinas que estão saindo do sistema de cotas: “A descotização, na verdade, permite que a gente passe a comercializar aquela energia cotizada de forma livre. Mas de forma alguma é um impeditivo para que a gente participe do primeiro [leilão] de capacidade”, afirmou.

Capacidade de competir

Os critérios que serão usados para calcular a potência que pode ser oferecida pelas UHEs também podem afetar o tamanho da contratação da fonte.

Isso porque as hidrelétricas dependem do volume de água disponível para ofertar a potência a ser negociada, o que varia de acordo com as chuvas. Restrições socioambientais de vazões dos rios e do volume máximo e mínimo de água disponível nos reservatórios também podem influenciar esse cálculo.

“Isso tem sido um dos principais limitadores da geração de potência, da disponibilização de potência dessas usinas”, explica o especialista da PSR.

Restam dúvidas, ainda, sobre as usinas que têm o fim dos contratos previstos para os próximos anos. A PSR aponta que as hidrelétricas que têm concessões vencendo até 2030 somam 6,5 GW em potência. Com isso, o número de usinas que devem competir no leilão de agosto acaba diminuindo, já que existe um volume relevante de projetos que têm grandes incertezas e uma percepção de risco elevada para investimentos em eventuais ampliações, mesmo sem vedações explícitas para concorrer no leilão.

“Reduz um pouco a competitividade, reduz a oferta para competir no leilão quando não se mitiga esses riscos”, diz Terra.

O tratamento a ser dado a esses contratos ainda não está definido. Existe a possibilidade de renovação das concessões ou de uma relicitação. Uma possível solução havia sido incluída no projeto de lei de modernização do setor elétrico (PL 414/2021), que está parado na Câmara.

“O problema é o risco que o agente está vendo de não ter tempo de remunerar esse investimento. Então um agente com o fim da concessão em 2032 pode fazer todo o investimento, entrar em operação com esse novo gerador em 2028, mas aí teria só quatro anos de receita”, afirma.

Terra lembra que em situações similares no passado, muitas vezes, as soluções não foram benéficas para os operadores dos projetos.

“E aí a dúvida é, quando chegar lá em 2032: vai ter a renovação? Se tiver a renovação, ele já fica mais tranquilo. Ou ele vai ter uma relicitação e aí vai receber a indenização dos ativos não amortizados? Ou até se tiver uma renovação onerosa que cobraria um bônus de outorga, isso seria levado em consideração para abater no valor do bônus? E ainda, qual a metodologia que vai calcular o valor desse ativo?”, questiona.

Garantia física

Uma das sugestões apresentadas na consulta pública prevê ainda a liberação para negociar no leilão de potência a parcela de garantia física de usinas em implantação que ainda não tenha sido comercializada.

As regras do leilão tendem a barrar projetos que já saíram vencedores em leilões regulados e ainda não entraram em operação.

A proposta foi apresentada pela UHE Juruena, que tem 39,8 MW médios de garantia física, mas negociou apenas 12 MW médios em um leilão da Aneel em 2021, com previsão de entrada em operação este ano. Com isso, a empresa espera conseguir ofertar o restante da garantia física disponível no leilão de capacidade.

Usinas reversíveis

Há expectativas também para que o leilão de reserva de capacidade inicie os debates sobre hidrelétricas reversíveis ou flexíveis no Brasil. Apesar de não haver previsão de contratação desse tipo de usina no edital, o tema tem surgido entre os especialistas do setor.

Esses projetos têm reservatórios em alturas diferentes, o que permite o bombeamento da água entre eles para gerar energia. Na prática, é um sistema que funciona como uma bateria. A tendência é que as hidrelétricas reversíveis tenham menos contestação social e jurídica do que as grandes hidrelétricas, pelo tamanho menor dos reservatórios.

Hoje, o Brasil não tem usinas relevantes nesse modelo. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) está trabalhando em um roadmap sobre os requisitos técnicos e regulatórios para o desenvolvimento de novos projetos desse tipo no Brasil.

Segundo o diretor de estudos econômicos, energéticos e ambientais da EPE, Giovanni Machado, há discussões sobre simplificar as regras para as usinas reversíveis, já que esses projetos têm menos riscos socioambientais do que as hidrelétricas maiores.

“Nem faz muito sentido ser exatamente a mesma regulação, porque a natureza do impacto é diferente”, disse à epbr.

Terra, da PSR, lembra que grandes multinacionais do setor de energia com presença no Brasil operam usinas reversíveis na China e na Europa, como a chinesa CTG, a francesa EDF e a portuguesa EDP.