Opinião

Soteriologia no setor elétrico

Debates sobre tarifas dos consumidores de energia elétrica foi usurpado pelo Congresso Nacional, escreve Marco Delgado

Soteriologia no setor elétrico

Soteriologia é a área da teologia que se dedica aos estudos da salvação da alma. O que era uma especialização da ciência das religiões, notadamente da cristã, paulatinamente, foi possuída pela narrativa de expansão de um novo modelo de negócios no setor elétrico

Seus pregadores se arvoram há anos a impor nas escrituras laicas – nas resoluções normativas e, mais recentemente, nas letras da lei – a doutrina de inúmeras isenções e subsídios como se fossem indulgências pela boa nova de uma “placa prometida” a benefício de todos. 

O debate com dados e suas análises que ocorria na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) até 2019 foi amordaçado por palavras de ordem, ou melhor, hashtag daqueles que queriam lucros avarentos ao custo de aumentar as tarifas dos demais consumidores de energia elétrica

Desde então, o debate fundamentado foi usurpado pelo Congresso Nacional, porém completamente alienado de fatos, tais como: (i) a redução em mais de 80% dos custos dos equipamentos dos painéis fotovoltaicos, segundo a Agência Internacional de Energia Renovável (Irena), (ii) as invejáveis rentabilidades que já superavam 25% ao ano dos investimentos deste modelo de negócio, conforme estudos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), que digno de registro, atualmente estão na ordem de 50%, e (iii) os acontecimentos e debates estadunidenses. 

Lá, estados como Texas, Massachusetts, Geórgia e, até mesmo, a Califórnia eliminaram e reduziram substancialmente os subsídios e, assim, reconheceram a “missão cumprida” das políticas de incentivos ao NetMetering que se aplica a Micro e Minigeração Distribuída (MMGD). 

Por sua vez, a Lei 14.300/2022, nosso marco legal, cravou ao Brasil mais de duas décadas de atraso na eficiência econômica e, consequentemente, postergando a injustiça social. 

Os anjos anunciadores deste modelo de negócio não titubeiam em ameaçar com a danação todos aqueles que buscam a verdade ao revelarem a usura de lucros exorbitantes promovidos por subsídios iníquos e, pior, declaram como heresia qualquer proposta de modernização regulatória e legal, inclusive de flexibilização de modalidades tarifárias que seria para todos os consumidores.  

Porém, aquilo que era em dezenas, centenas e até milhares antes da pandemia, agora, dinamizadas por opulentas dádivas da Lei 14.300/2022, são milhões. 

Em 2025, é possível com base nestes significativos dados e, consequentemente, na viabilidade de se aplicar métodos e análises estatísticas verificar se os apregoados benefícios da micro e minigeração distribuída (MMGD) se sustentam. 

Entretanto, a soteriologia quedou e o milagre dissipou! Se houve algum benefício para a redução de perdas técnicas nas redes do sistema de distribuição, por exemplo, foi estatisticamente insignificante. Por sua vez, não houve, com elevada segurança estatística, postergação de investimentos no sistema de transmissão com a expansão da MMGD. 

Ou seja, a conclusão geral que se depreende é a de que eventual benefício, caso tenha ocorrido, foi meramente circunstancial e não duradouro com a massificação desse modelo de negócio. 

Destarte, essa generalização disfuncional, dinamizada por injustificados subsídios, colocaram a MMGD como protagonista motivadora do curtailment que, por sua vez, causa perda de valor para demais geradores centralizados, notadamente fotovoltaicos e eólicos, além de riscos para a própria operação do sistema elétrico nacional.

Nesta epifania, há dois grupos em mundos distintos. Há associações que defendem um modelo de MMGD mais sustentável para todos, enquanto há aquelas a lutar para manter o status quo e atear fogo a qualquer iniciativa diferente de seus interesses, mesmo que seja a benefício da maioria de consumidores e respeitando direitos de prossumidores. 

É chegado o firmamento para joeirar os justos dos ímpios! Cabe a você fiel leitor que chegou ao fim dessa satírica saga bíblica exercer o juízo final, especialmente o consumidor patrocinador dos subsídios e o prossumidor agora consciente de excessivas benesses a custos de outrem: quem entre aqueles dois grupos associativos está ao lado progressista que defende um mundo mais justo e solidário, e quem se espelha no arcaico para bradar um mundo reacionário e arrivista? 

Sol a pino, luz sobre as trevas e energia limpa e justa para todos!


Marco Delgado é doutor em planejamento energético e conselheiro egresso da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE)

Inscreva-se em nossas newsletters

Fique bem-informado sobre energia todos os dias