Nos mercados elétricos mais avançados do mundo, como o Texas e a Europa, os períodos de sobra de energia — quando há muito vento ou sol e a demanda está baixa — resultam em preços de curto prazo próximos de zero ou até negativos.
Nesses momentos, geradores pagam para reduzir a produção e consumidores são remunerados para aumentar o consumo. É o sinal econômico de que a rede está saturada: a energia vale pouco, e o sistema precisa de flexibilidade.
Essa precificação dinâmica é o que permite remunerar serviços de modulação, incentivar o armazenamento e estimular investimentos em gestão da demanda.
No Brasil, porém, o mesmo fenômeno de sobreoferta produz um resultado paradoxal: os preços não refletem o excesso de energia. Isso ocorre porque o país ainda utiliza uma metodologia concebida para uma matriz ainda fortemente hidrelétrica.
Nossos modelos computacionais de operação assumem, por simplificação, que o custo variável das hidrelétricas é igual a zero.
Em seguida, aplicam ex post, um piso regulatório para o preço de curto prazo — o chamado PLD mínimo — destinado a remunerar de forma uniforme os custos variáveis das hidrelétricas. Mas decidir turbinar a água em vez de vertê-la tem, sim, um custo variável real.
As hidrelétricas incorrem em despesas como a CFURH (Compensação Financeira pelo Uso dos Recursos Hídricos) e custos de manutenção com o desgaste das máquinas, reconhecidos, inclusive, nas trocas financeiras internas do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE).
Ou seja, o sistema admite que a água turbinada tem custo, mas o modelo de formação de preço o ignora.
Com a crescente participação das fontes eólica e solar, que de fato possuem custo marginal nulo, essa simplificação passou a gerar uma distorção estrutural.
O PLD mínimo deixou de ser um instrumento de estabilidade e passou a suprimir o verdadeiro valor econômico da energia limpa.
O resultado é um sistema em que o preço não corresponde ao custo real da energia, desincentivando a flexibilidade, a inovação e o uso inteligente da infraestrutura elétrica.
Essa premissa equivocada, de que a energia hidrelétrica teria custo marginal zero, também contaminou a discussão sobre os cortes de geração.
Na Consulta Pública 45, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) partiu dessa mesma base para colocar em um mesmo grupo de usinas “com custo marginal nulo” eólicas, solares e hidrelétricas que vertem quando poderiam turbinar a água — no jargão do setor, Energia Vertida Turbinável (EVT).
À primeira vista, a abordagem parece tecnicamente neutra. Na prática, ela ignora diferenças fundamentais entre as causas e as naturezas dos cortes de geração dessas fontes.
As eólicas e solares são cortadas quando há sobras estruturais de energia, em momentos em que o sistema não consegue absorver toda a geração disponível e opta por reduzir a produção.
O EVT das hidrelétricas, por sua vez, surge, inclusive, e na maior parte das vezes, em momentos de maior carga líquida, quando restrições hidráulicas, ambientais ou operativas impedem o despacho pleno das turbinas.
Para deixar claro em números, desde janeiro de 2023, cerca de 74% das horas de cortes energéticos das eólicas estavam relacionadas com períodos de carga líquida reduzida no sistema, enquanto a ocorrência de EVT em carga líquida baixa foi de apenas 29%.
Ou seja, cerca de 70% do EVT ocorreu bem longe dos momentos de baixo
consumo líquido. São fenômenos distintos: um é resultado da sobreoferta, o outro, decorre de limitações físicas.
Ao colocá-los no mesmo grupo, a Aneel criou o pressuposto de que os custos e os impactos são equivalentes, e propôs o rateio dos cortes entre essas fontes.
Na prática, essa abordagem transfere parte do custo dos cortes hidrelétricos — representados pelo EVT — para as eólicas e solares, sob o argumento de um “rateio” que não é compartilhamento, mas redistribuição assimétrica de perdas.
Estudos elaborados pela Volt Robotics, mostram que essa metodologia aumentaria em até 25% o volume de cortes para as eólicas, enquanto reduziria em menos de 5% o impacto para as hidrelétricas do MRE.
Em vez de equilibrar riscos, o mecanismo consolida uma transferência líquida de custos do parque hidrelétrico para as fontes renováveis — justamente aquelas que o país deveria proteger e valorizar.
Essa assimetria se agrava com a existência do PLD mínimo. Num sistema que não reconhece o custo real da água turbinada e mantém um piso artificialmente baixo, o sinal econômico do corte é distorcido.
O resultado é uma ineficiência operacional de duas camadas: física, porque o sistema corta a energia mais limpa e barata disponível; e econômica, porque o modelo de preços e o rateio proposto desincentivam a flexibilidade e penalizam as fontes que deveriam ser priorizadas.
Ao tratar a água como gratuita e impor um PLD mínimo administrativo, o país substituiu um preço de equilíbrio por um preço regulado, desconectado das condições reais de operação.
Essa desconexão está na origem da ineficiência e da injustiça setorial que hoje penalizam as fontes renováveis.
Em paralelo, é necessário corrigir o erro conceitual da CP 45, separando claramente os fenômenos de EVT e corte de geração por sobreoferta.
Insistir em um piso de preço e em uma metodologia construída para o mundo das hidrelétricas é manter o país preso a uma lógica do passado.
A transição energética não se faz apenas com megawatts renováveis instalados, mas com sinais econômicos que reflitam o verdadeiro valor da energia.
Precisamos urgentemente de preços que expressem a abundância e a escassez reais do sistema, e de decisões de corte de geração guiadas por esses sinais, não por simplificações que ignoram o custo e o valor da água, do vento e do sol.
