Opinião

O impasse regulatório do setor elétrico: entre MPs esvaziadas e mercado retraído

Intervenções pontuais aumentam insegurança jurídica e afastam investimentos estratégicos, escrevem Victor Gelli Cavalcanti e Bárbara Mendes Carnevalli

O que está em jogo no “dia do perdão” da Aneel e os impactos no setor elétrico. Na imagem: Foto à contraluz de operador do setor elétrico ao telefone e, ao fundo, linhas de transmissão, com céu azul
Foto à contraluz de operador do setor elétrico ao telefone e, ao fundo, linhas de transmissão, com céu azul

A sucessão de Medidas Provisórias esse ano, com enfoque no setor elétrico — em especial, a MP 1300/2025 e a MP 1304/2025 —, evidencia uma tentativa talvez desarticulada e certamente insuficiente do Poder Executivo em redesenhar o setor.

A opção por intervenções pontuais, endereçadas a necessidades setoriais específicas, parece agravar — e não mitigar — o déficit regulatório que já compromete a eficiência econômica do mercado.

Essa fragilidade regulatória torna-se ainda mais evidente quando se observa que a “reforma” evitou abordar temas complexos como avanço da geração distribuída, viabilidade de conexão e, sobretudo, o maior e mais urgente de todos: o curtailment — limitação forçada da geração de energia elétrica, imposta por restrições técnicas ou regulatórias.

Sem tratamento normativo adequado, a ocorrência de curtailment tem resultado em cortes de geração superiores a 26% da capacidade de geração em agosto, alcançando quase 38% na fonte solar em determinados estados.

Nesse contexto, a trajetória da MP 1300 ilustra bem os limites do modelo adotado. Quando editada a medida visava endereçar quatro grandes temas (por exemplo, tarifa social, autoprodução, abertura do mercado, reequilíbrio de encargos) e terminou com uma proposta de lei de conversão esvaziada e enxuta, com a permanência de apenas um dos grandes temas, por falta de consenso. 

A consequência imediata desse “enxugamento” foi a sinalização do governo que as demais disposições originárias da MP 1300 não caducariam por completo, mas seriam migradas para a MP 1304, que permanece vigente até 7 de novembro.

Essa estratégia, por sua vez, também enfrenta limitações práticas. Como o prazo de apresentação de emendas da MP 1304 já se esgotou, qualquer tentativa de “migrar” dispositivos de uma MP na outra deverá ocorrer exclusivamente por meio do parecer da comissão mista ou de destaques em plenário, à custa de influência política do governo. 

Ao insistir neste arranjo, o Poder Executivo reforça uma abordagem limitada e casuística, aumentando a insegurança jurídica do mercado. A constante alteração de normas por medidas provisórias de vigência precária dificulta previsibilidade normativa, impossibilita uma discussão e “leitura” econômica do mercado e promove litigância perante a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Operador Nacional do Sistema (ONS) e o Poder Judiciário.

Como se o contorcionismo legislativo das medidas provisórias não bastasse, voltou a tramitar na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2987/2015, como intuito, ao que consta de, consolidar o pilar da abertura de mercado originalmente previsto na MP 1300.

Ou seja, há total falta de coesão política setorial e estratégia legislativa e, o setor segue refém de soluções fragmentadas, ora empurradas em MPs de vigência precária, ora ressuscitadas em projetos antigos para tentar preencher lacunas regulatórias.

Essas indefinições regulatórias já têm reflexos concretos no mercado. As estatísticas indicam retração relevante das operações convencionais de comercialização, contratos de compra e venda de energia de longo prazo e novos projetos merchant, ao mesmo tempo em que a autoprodução cresce de forma exponencial.

Esse avanço decorre, em parte, do regime transitório constante na MP 1300, mas tende a se consolidar como resposta defensiva de grandes consumidores à volatilidade regulatória. 

Esse ambiente instável também resultou na retração das operações de fusões e aquisições (M&As) no setor elétrico. Um segmento que, nos últimos anos, manteve o mercado aquecido, hoje perdeu protagonismo.

A incerteza a respeito de temas de extrema relevância — como o tratamento do curtailment — aumentou significativamente a insegurança sobre os investimentos no setor, acentuando a tensão negocial a respeito da alocação de riscos até então desconhecidos e não precificados e a dificuldade de convergência entre preços de reserva.

Uma pesquisa feita pela KPMG, por exemplo, indica uma queda de 44% no número de operações no setor no primeiro semestre de 2025 em comparação ao mesmo período do ano passado, enquanto a redução nas operações de M&A de uma forma geral registraram queda 9,25x menor — de apenas 5%. 

A retração coincide com movimentos das associações de renováveis, como a Associação Brasileira de Energia Eólica: (Abeeólica) e a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), que protocolaram junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ao Banco do Nordeste (BNB) pedido de suspensão temporária de pagamentos (standstill) para aliviar a pressão financeira gerada pela incerteza do curtailment.

Esses dois sinais do mercado confirmam o desconforto dos agentes diante de um ambiente que carece de previsibilidade econômica e corporativa para contratos de longo prazo.

Esse cenário reforça que não basta responder pontualmente a problemas emergenciais. O setor elétrico brasileiro, após vinte anos de aperfeiçoamentos incrementais, demanda agora uma revisão integrada de seus fundamentos.

Essa revisão deve contemplara harmonização de sinal locacional e temporal de preços, de forma a refletir custos de congestão e de confiabilidade; o regime único e não discricionário de encargos e subsídios, com transição previsível; o tratamento normativo completo do curtailment, incluindo critérios de medição, compensação econômica e incentivos a armazenamento; e o marco de abertura total do mercado, com separação clara de políticas sociais — financiadas pelo Orçamento — da tarifa de energia.

Enquanto a resposta legislativa permanecer fragmentada, o custo de capital dos projetos seguirá em alta e a judicialização continuará a ser utilizada como instrumento de gestão de risco.

Com isso, o Brasil corre o risco de desperdiçar a vantagem comparativa de sua matriz renovável. Nesse contexto, em vez de atrair investimentos locais e estrangeiros para expandir a oferta firme e flexível — fundamental inclusive para a viabilização da inteligência artificial em escala — o país tende a afastá-los.

Portanto, a adoção de uma agenda regulatória clara e estável não é apenas recomendável: é condição indispensável para restaurar a confiança dos investidores e assegurar o desenvolvimento sustentável do setor elétrico brasileiro na transição energética.


Victor Gelli Cavalcanti é sócio do escritório Mattos Filho. 

Bárbara Mendes Carnevalli é associada do escritório Mattos Filho. 

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