Combustíveis e Bioenergia

O canibalismo energético e a recessão

Pesquisa recente constatou que 15,5% da energia produzida a partir do petróleo em todo o mundo já é necessária para manter a produção de todo o petróleo

O canibalismo energético e a recessão
Imagem de Colin Behrens por Pixabay

Por trás da produção de energia há algo sorrateiro agindo despercebidamente: a necessidade de mais energia para se produzir energia.

À medida que o tempo passa, está cada vez mais difícil de se produzir energia, exigindo quotas crescentes da energia produzida para se produzir nova energia. Esse movimento está levando o mercado perigosamente para uma recessão energética, com reflexos desastrosos para a economia mundial.

Carvão, petróleo e gás cada vez mais fundo

Carvão, petróleo e gás estão acabando? Não, nem vão acabar, só está ficando mais difícil de retirá-los das jazidas. Nos primórdios da indústria de O&G, por exemplo, os poços eram rasos, perfurados majoritariamente em reservas terrestres. O aumento do consumo fomentou a busca incessante pelo ouro negro.

A pesquisa passou para poços mais profundos. Avançou-se para o mar, a distâncias cada vez maiores. As lâminas d’água também cresceram, para profundas e ultraprofundas. As camadas de rochas a perfurar aumentaram – pós-sal, sal, pré-sal. A energia dispensada para produzirmos petróleo e gás aumentou.

Nos EUA, a produção de hidrocarbonetos em rochas de baixa permeabilidade, até pouco tempo inviável economicamente, teve um boom com o advento do fraturamento hidráulico e das técnicas de perfuração horizontal. Apesar da viabilidade econômica conquistada, a empreitada exige grande energia adicional para se produzir estas reservas não-convencionais.

Em resumo, a indústria de petróleo e gás está consumindo cada vez mais energia apenas para continuar extraindo petróleo e gás. O mesmo vale para o carvão.

Pesquisa recente constatou que 15,5% da energia produzida a partir do petróleo em todo o mundo já é necessária para manter a produção de todo o petróleo (DELANNOY, 2021). A perspectiva é de que este percentual aumente, podendo chegar a 25% até 2024.

Um conceito importante para se entender a respeito do que está sendo exposto aqui versa sobre o “retorno do investimento em energia”, cuja sigla em inglês é EROI (Energy Return on Investment).

EROI é um indicador que estima a quantidade de energia que se obtém para cada unidade de energia que se investe para produzi-la. Portanto, obviamente, quanto maior a proporção, quanto maior o EROI, melhor, porque significa que se pode obter maior retorno em energia pelo investimento realizado.

Dados compilados desde 1950 demostram um rápido declínio do EROI, isto é, o retorno de energia é cada vez menor, por conta da necessidade crescente de energia para se produzir combustíveis fósseis.

Em 1950, o EROI da produção global de petróleo era alto, cerca de 44:1 (ou seja, para cada unidade de energia investida na produção, retornava 44 unidades).

O gráfico 1 demonstra o rápido declínio do indicador nas últimas décadas para diversas fronteiras de produção de petróleo. Em 2020, o indicador atingiu cerca de 8:1 na média mundial e prevê-se que diminua e estabilize para cerca de 6,7 a partir de 2040.

Figura 1 – EROI para diferentes fronteiras de produção de petróleo (Fonte: DELANNOY, 2021)

A persistir o atual cenário, em 2050, estima-se que metade da energia extraída das reservas globais de petróleo serão consumidas apenas para continuar produzindo petróleo. Esse fenômeno tem sido chamado de “canibalismo de energia”.

As consequências

Essa tendência já dá sinais de que vai afetar o crescimento econômico de longo prazo, algo pouco discutido ou entendido pelos economistas tradicionais. A questão principal é que quanto mais energia precisamos para extrair energia, menos energia estará disponível para outras áreas da economia e da sociedade.

O declínio do EROI é um fator subjacente ao declínio do crescimento econômico (JACKSON e JACKSON, 2021). Isso sugere que as duas últimas décadas de turbulência econômica mundial estão intimamente relacionadas à contínua dependência estrutural da economia global dos combustíveis fósseis.

Simulações indicam que uma queda acentuada no EROI implica em aumentos nos preços de energia, na taxa geral de inflação e no desemprego, que levam a um período de recessão. Os resultados econômicos negativos dependem do tamanho das reduções no EROI. Em outras palavras, quanto maior for a redução do EROI, maiores serão os resultados econômicos negativos.

Energia limpa e transição energética mais rápida é a solução?

Sim e não, depende do EROI. Estima-se que um EROI global médio abaixo de 10 comprometa a vida moderna que conhecemos. Em um primeiro momento, é necessário que as fontes alternativas tenham EROI maior do que os fósseis as quais estão substituindo, senão o “canibalismo energético” prosseguirá, alimentando preços crescentes e ambiente inflacionário.

O início da transição energética é o ponto crítico dela, pois vai exigir um aumento da oferta de energia, justamente quando o “canibalismo energético” é crescente.

Painéis fotovoltaicos tem EROI que variam de 6 a 30, dependendo do modelo, tecnologia, método de fabricação, etc (PICKARD, 2017). Carvão tem EROI de 25 a 60 (HALL, 2014). Se um painel fotovoltaico substitui o carvão, tem-se imediatamente um decréscimo do EROI médio. A exigência de curto prazo é a necessidade de mais energia para reequilibrar o balanço e manter a transição.

Se o incremento não vem, o preço da energia é pressionado pra cima. Conciliar transição energética com aumento da disponibilidade líquida de energia é um desafio a enfrentar.

Perspectivas

Os avanços tecnológicos podem inverter a curva do EROI. As tecnologias de energia renovável, como solar e eólica, estão se tornando mais eficientes, implementadas com velocidade cada vez maior e gerando maiores retornos.

Há evidências de que as fontes renováveis têm um EROI mais alto e crescente em comparação com os combustíveis fósseis, cujo EROI está em declínio, e, se implantadas de forma ideal, podem evitar gargalos de energia e escassez de minerais e materiais. Reciclagem e economia circular são parte deste pacote.

Um segundo ponto em relação aos avanços tecnológicos está no incremento da eficiência energética, pois este é um caminho capaz de estabilizar a demanda global de energia, compensando o declínio da disponibilidade líquida observada na produção dos fósseis.

Neste sentido, motores de combustão mais eficientes, motores elétricos e células de combustível são fundamentais, especialmente no segmento de transporte, que é intensivo no consumo de combustíveis fósseis.

De forma complementar, as políticas públicas precisam se alinhar na construção de uma transição energética que não reduza a oferta líquida global de energia em si. A busca pela redução de carbono na atmosfera se mal conduzida levará a uma recessão histórica e de longo prazo devido a déficits de energia.

Ao mesmo passo, se atrasarmos a transição por muito tempo, pode não haver energia suficiente para sustentar o início da transição de forma econômica, levando a um cenário de colapso de preços e turbulências nunca vivenciadas. Ainda é possível evitar o caos, mas o tempo está passando.

Referências

DELANNOY, Louis et al. Peak oil and the low-carbon energy transition: A net-energy perspective. Applied Energy, v. 304, p. 117843, 2021.

HALL, C. A.S.; LAMBERT, J.G.; BALOGH, S. EROI of different fuels and the implications for society. Energy Policy, Volume 64, January 2014, Pages 141-152

JACKSON, Andrew; JACKSON, Tim. Modelling energy transition risk: The impact of declining energy return on investment (EROI). Ecological Economics, v. 185, p. 107023, 2021.

PICKARD, W. F. (2017). A simple lower bound on the EROI of photovoltaic electricity generation. Energy Policy, 107, 488–490.