Quando os consumidores começaram a respirar aliviados com o possível fim dos “jabutis” da lei das eólicas offshore — depois que a MP 1304/25 encerrou a renovação compulsória de térmicas a carvão e a contratação de usinas a gás natural na base — parecia que a conta de luz se livraria de pressões artificiais. Mas o fantasma do custo elevado retorna com o Leilão de Reserva de Capacidade de 2026 (LRCAP).
O certame, que deveria contratar fontes flexíveis para atender a demanda de ponta, abre espaço justamente para usinas que caminham na direção contrária.
A minuta em consulta pública prevê dois leilões: um deles reunindo térmicas a gás natural (conectadas ou não à malha de transporte), ampliações de hidrelétricas e — o ponto mais polêmico — usinas a carvão existentes; o outro voltado a térmicas a óleo combustível e diesel já em operação.
A contradição é evidente: permitir carvão, com partida lenta e longos tempos mínimos de operação, não condiz com a necessidade de flexibilidade que o sistema elétrico brasileiro exige para os próximos anos.
A expansão da geração solar e eólica mudou a lógica da operação. Hoje há excedentes durante o dia e rampas acentuadas no início da noite. A capacidade de modulação das hidrelétricas, que por décadas funcionou como colchão de segurança, vem se reduzindo.
Estudos recentes da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e do Operador Nacional do Sistema (ONS) mostram que a necessidade de flexibilidade cresce a cada ano.
O que é flexibilidade no SIN?
Flexibilidade é a capacidade de uma usina de ajustar sua geração de forma rápida às variações de carga.
Mede-se por indicadores como tempo de partida (quanto demora para sair do desligado até a operação), tempos mínimos de permanência ligado ou desligado (T_on e T_off), rampas de subida e descida (a taxa de aumento ou redução da geração) e a proporção entre a carga mínima e a máxima (Gmin/Gmax).
Quanto mais curtos esses tempos e mais altas as rampas, mais útil a fonte é para o equilíbrio do sistema.
A carga líquida do Sistema Interligado Nacional (SIN) apresenta rampas cada vez mais íngremes no fim da tarde, o avanço da geração distribuída reduz a previsibilidade da operação e as simulações de médio prazo já indicam risco de violação dos critérios de suprimento se não houver recursos de resposta rápida.
De acordo com o Plano da Operação Energética 2025 (PEN), enquanto em 2020 a amplitude das UHEs para atender as rampas de carga era de 28 gigawatts (GW), este valor chegou a 44 GW em 2025. Com o aumento da inserção solar, principalmente a geração distribuída (GD), esta rampa deve chegar a 51 GW em 2029.
Em outras palavras, o sistema precisa de usinas com partida veloz, tempos mínimos de permanência reduzidos e rampas elevadas. O carvão não entrega esses atributos; ao contrário, amplia o desperdício de renováveis e pressiona os custos operativos.
Por exemplo, para atender a demanda de ponta que dura cerca de 4 horas, na proposta em consulta, as UTEs a carvão poderão ficar ligadas por até 18 horas (quase o dobro da média de horas permitida para as movidas a gás).
O Ministério de Minas e Energia (MME) reconheceu esse desafio e incluiu no desenho do leilão o chamado “fator A”, uma tentativa de precificar economicamente a flexibilidade.
O preço do lance termelétrico é composto por uma parcela fixa e por esse fator multiplicado pelo Custo Variável Unitário (CVU).
Quanto mais lenta e inflexível a usina, maior o valor de “A” e pior sua competitividade. Trata-se de uma medida positiva, que introduz no leilão um critério alinhado à operação real do sistema.
Como funciona o fator A
No LRCAP, o preço do lance termelétrico é formado por uma parcela fixa (Receita Fixa dividida pela disponibilidade) e uma parcela variável composta pelo fator A multiplicado pelo CVU.
O fator A é calculado com base nos parâmetros técnicos declarados pelas usinas — rampas, tempos mínimos e flexibilidade de carga. Usinas lentas e inflexíveis têm valores de a maiores, encarecendo seu preço no certame.
A lógica é simples: sinalizar economicamente os atributos que realmente importam para o sistema, punindo a inflexibilidade.
O problema é que, para entrega já em 2026, a concorrência será mínima. Apenas usinas existentes podem participar, e há poucas térmicas a gás natural descontratadas e conectadas à malha de transporte prontas para competir.
Na prática, o carvão disputará espaço com gás natural de malha, que tem custo elevado. Há aproximadamente 4,5 GW de térmicas conectadas à malha de gás que já estão ou ficarão sem contratos na janela dos produtos de usinas existentes.
Considerando que o cenário indica demanda do leilão bem superior a esse valor (especula-se maior que 10 GW), mesmo penalizado pelo fator A, o carvão pode sair vitorioso.
O risco é que essas usinas, ao serem acionadas em um contexto de redução da capacidade hídrica e maior penetração renovável, passem a ficar ligadas por mais tempo.
O efeito prático é transformar um produto pensado para flexibilidade em uma contratação de base cara e ineficiente, com mais encargo de reserva e cortes de geração limpa.
A saída está em calibrar o leilão para contratar o que de fato o sistema precisa: flexibilidade real. Isso significa excluir fontes estruturalmente lentas, como o carvão, e abrir espaço para novas tecnologias.
Há as tradicionais turbinas a gás de partida rápida, projetadas para atender rampas diárias sem degradar a operação.
Porém, as baterias são o exemplo mais claro, inovador e versátil de atributos para os desafios do presente, capazes não só de responder instantaneamente às variações de carga, com rampas praticamente infinitas e sem custo variável de operação, como prover controle sobre os momentos de sobras de energia.
Aliás, lideranças do próprio ONS externaram recentemente que armazenamento é discussão ‘para ontem’, ressaltando a urgência de incorporar tanto as baterias para o curto prazo quanto as hídricas reversíveis para o médio/longo para que o Operador tenha ferramentas de maior controle também sobre as horas de excedentes de geração, já antecipando a visão que — mesmo de forma conservadora — a geração distribuída (não despachável e não controlável) atenderá praticamente todo o vale da carga em meados de 2029.
Assim, o Brasil precisa de um leilão de capacidade que seja instrumento de modernização, e não de perpetuação de ativos caros e ultrapassados.
Um leilão de armazenamento, por resolver o tema dos excessos de geração e ainda entregar flexibilidade para sistema, deveria ser realizado antes da contratação de térmicas com partida lenta — estas, por sua natureza, deveriam ser consideradas apenas como último recurso.
O consumidor não precisa pagar por capacidade que para estar disponível na hora da ponta gera excesso de energia cara e poluente nos demais horários. Precisa de confiabilidade útil, capaz de acompanhar o perfil das renováveis.
Se o desenho não mudar, o leilão corre o risco de contratar potência que só existirá no papel, por não atender aos requisitos de flexibilidade do sistema — ou, na prática, resultará em desperdício de energia limpa e em aumento da conta de luz.
Bernardo Bezerra é diretor de Regulação e Inovação da Serena.