Opinião

Flexibilidade elétrica: o Brasil vai destravar o sistema ou o lobby?

Para sair do imbróglio do leilão de potência, o correto seria realizar uma concorrência sem separação dos produtos por fontes, escreve Bernardo Bezerra

Bernardo Bezerra é diretor de Regulação e Inovação da Serena (Foto Divulgação)
Bernardo Bezerra é diretor de Regulação e Inovação da Serena (Foto Divulgação)

Uma grande revolução tecnológica está em andamento a pleno vapor ao redor do planeta, mas em especial no Texas e Califórnia: há poucos anos tratadas como solução ainda em nascimento, as baterias já se tornaram uma realidade tão relevante que já começa a mudar — para melhor — a dinâmica do sistema desses dois importantes mercados de energia.

A Califórnia, com um mercado de energia conhecido pela célere expansão e grande participação da geração solar, ao longo do tempo passou a enfrentar desafios de operação de um sistema cada vez mais renovável.

Com boa parte do consumo atendido ao longo do dia com a força do sol, como lidar com a rampa de carga líquida a ser atendida por outras fontes que começa no início da noite? Para tal, a solução tradicional apontaria a utilização de fontes despacháveis flexíveis, como as térmicas a gás natural.

No entanto, impulsionadas pela recente queda de custos, as baterias passaram a cada vez mais integrar o rol de soluções despacháveis no mercado californiano, aproximando-se de impressionantes 13 GW em maio de 2025.

O sistema começou a perceber essa participação na mudança de comportamento da “curva do pato”, com aumento da demanda de energia durante os picos de geração solar (aproveitando os excedentes de energia renovável barata para carregamento), e redução dos picos no horário de ponta, quando as baterias descarregam em massa.

O Texas vem experimentando revolução semelhante. Estado afortunado em recursos eólicos e solares, somado a um mercado de energia desenhado para incentivar ampla competição, recentemente alcançou igualmente impressionantes 12 GW de baterias operacionais.

Na disputa do mercado de energia em si, as eólicas e solares estão cada vez mais tomando o espaço das fósseis (já representam 40% da capacidade instalada).

No outro mercado relevante deste estado, de serviços ancilares, as baterias agora estão empurrando as térmicas para fora da competição mesmo em um dos lugares com gás natural mais barato do mundo.

Nos produtos de resposta rápida e despacho sustentado de até 1 hora já ocupam +80% de participação, e +50% no produto de capacidade sustentada de 2 horas, utilizado diariamente no horário de ponta.

Em recente relatório, o operador do sistema elétrico texano também apontou uma probabilidade menor que 1% de que seja necessário realizar cortes de carga durante os picos do verão de 2025, uma considerável queda em relação ao risco de 12% do verão de 2024.

O documento atribui a melhora aos vários gigawatts de baterias que entraram em operação comercial nos últimos meses, responsáveis pelo aumento da segurança do sistema.

Em ambos os casos, há criação de valor e benefícios a todos os usuários do sistema.

A dinâmica das baterias facilita a vida do operador ao longo de todas as horas do dia, com reduções tanto no risco de cortes de geração nos horários de excedentes renováveis — energia limpa e barata que passa a ser utilizada para atender os horários de pico de carga — quanto em custos aos consumidores, pelo menor acionamento de termelétricas.

Além disso, aumenta a confiabilidade do sistema como um todo.

Assim como esses dois mercados enfrentaram e resolveram, o Brasil agora se depara com um dilema parecido — talvez ainda mais complexo.

Como apontou o próprio Operador Nacional do Sistema (ONS), em relatório ao final de 2024, e reforçado ao longo do 1º semestre de 2025, o sistema elétrico possui um desafio semelhante, bem claro e objetivo.

Lidar com flexibilidade não só para o tradicional horário de ponta do início da noite, mas também em como tratar os excedentes de geração renovável ao longo do dia, em especial no nosso caso com a geração distribuída (GD), fonte que não é controlada pelo ONS.

Para endereçar estes desafios, nosso arcabouço legal e regulatório já conta com o conceito de leilões de capacidade, na forma de potência.

Infelizmente, o leilão de capacidade na forma de potência programado para 2025 acabou se tornando uma disputa de diferentes lobbies para ser não um vetor de solucionar desafios do sistema, mas para resolver os problemas de falta de demanda de cada uma das fontes.

Tal fato pode ser notado na guerra de judicialização que tomou o certame, onde discute-se, por exemplo, se determinado fator de flexibilidade poderia ser exigido ou não, como calcular o custo de combustível das térmicas, inclusive flertando com a retirada do custo dos gasodutos da precificação dos lances.

Soma-se a isso o fato de que, pelo aumento de demanda em vários outros países, as turbinas a gás natural tiveram um aumento de custo de aproximadamente 40% e a entrega está com fila de até cinco anos.

Adicionalmente, o combustível é uma commodity de alta correlação ao instável cenário geopolítico do Oriente Médio. Tecnologias de armazenamento (que são competidoras em prover flexibilidade), por outro lado, continuam em relevante trajetória de queda de custos.

Toda essa bagunça acabou levando ao cancelamento do certame, para apreensão do ONS que, por sua vez, ainda terá pela frente o hercúleo desafio de operar um sistema ainda mais inflexível caso as térmicas a gás natural e PCHs (jabutis destravados pela derrubada dos vetos da Lei da Offshore pelo Congresso) sejam construídas.

Para sair desse imbróglio, o correto seria realizar um leilão de capacidade com neutralidade tecnológica, sem separação de produtos por fontes, deixando que apenas os parâmetros técnicos que o ONS pedir sejam os guias da ampla competição.

Atualmente há necessidade do sistema tratar não só a flexibilidade na ponta, mas também os excedentes horários de geração — este último uma função que as térmicas flexíveis não conseguem prover — junto ao desafio de superarmos a fratricida disputa entre os velhos lobbies, preocupados com seus cercadinhos e não com a realidade do sistema ou o bolso do consumidor

Visto o ressonante sucesso da California e Texas, este artigo provoca o setor a trazer para discussão a priorização do leilão de capacidade visando contratação de capacidade com resposta rápida para enfrentar a crescente rampa para o suprimento de ponta e, tão importante quanto, dar ao ONS a capacidade de operar o sistema absorvendo o excedente renovável horário.

Como um primeiro leilão tecnologicamente neutro e focado em armazenamento, ou seja, soluções de absorção de excedente de energia limpa e barata somada à alta flexibilidade de resposta rápida, várias das complexidades da atual discussão do leilão de capacidade de térmicas/hídricas tradicionais poderiam ser superadas.

Isso permitiria a concorrência de tecnologias como baterias e usinas reversíveis como ativos do sistema com operação de carregamento e descarregamento coordenada pelo ONS, com o objetivo de obter transferência de potência para suprimento de ponta, e tendo como benefício secundário a redução dos cortes de geração ao longo do dia.

Neste desenho, diferentemente das térmicas e hídricas tradicionais, a dinâmica vai gerar recursos financeiros em benefício dos consumidores, uma vez que o ONS tenderia a carregar os sistemas de armazenamento nos horários de energia mais barata (excesso de geração renovável) e descarregar quando a energia é mais cara, exatamente nas horas de ponta.

A captura dessa arbitragem direcionada aos consumidores resultará em uma redução do custo total do encargo de capacidade.

Com a realização de um certame focado em armazenamento, com flexibilidade de absorção e descarregamento de resposta rápida, proveríamos o ONS com uma poderosa ferramenta capaz de incorporar vários GWs numa janela de 12 a 18 meses para tratar a flexibilidade, verdadeiro e objetivo desafio do nosso atual e futuro sistema

De modo que, então, em seguida, demais leilões tragam um volume bem menor de térmicas flexíveis e repotencialização de hídricas tradicionais (que demoram vários anos para serem construídas), ou mesmo outras tecnologias.

Isso complementaria demais atributos que possam ser necessários para garantir a segurança do sistema (saindo assim do conceito genérico de “confiabilidade” atualmente aventado para um bem específico, confiabilidade de média/longa duração de despacho, ou seja, a capacidade de sustentar geração contínua por várias horas ou dias, algo que as baterias, por ora, ainda não suprem de forma econômica).

Como visto na prática com o verão texano, a incorporação em massa de armazenamento aumenta consideravelmente a confiabilidade do sistema complementada com uma habilidade única, que é a absorção de energia.

Portanto, está nas mãos do setor e do governo decidir se o leilão de capacidade será mais uma oportunidade desperdiçada — como tantas outras em nossa história recente — ou se finalmente será utilizado como uma ferramenta para resolver, de forma estruturada, o real desafio do sistema elétrico brasileiro: a necessidade urgente de flexibilidade, segurança e racionalidade econômica.

O mundo já mostrou o caminho. Enquanto texanos e californianos transformam baterias em aliadas da transição energética e da competitividade, seguiremos presos a disputas setoriais e soluções do passado, ou daremos o passo que o Brasil precisa para modernizar sua matriz e reduzir o custo da energia para todos?

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.


Bernardo Bezerra é diretor de Regulação e Inovação da Serena.

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