Opinião

Como o gás natural turbina Roraima e economiza R$ 1 bi por ano

Roraima enfrenta luta histórica contra seu isolamento energético e a favor de seu crescimento extraordinário populacional e econômico – mas há boas novas, escreve Lucas Ribeiro

Vista aérea da UTE Jaguatirica II, com capacidade instalada de 140,834 MW, é movida a gás natural do campo de Azulão (operado pela Eneva), na Bacia do Amazonas (Foto Cortesia)
UTE Jaguatirica II (140,834 MW) é movida a gás do campo de Azulão (operado pela Eneva), na Bacia do Amazonas | Foto Cortesia

O único estado do Brasil ainda não integrado no Sistema Interligado Nacional (SIN) possui mais de 700 mil habitantes, um aumento superior a 40% nos últimos 10 anos. Apenas de 2023 a 2024, a população aumentou 12,58%.

Em termos de Produto Interno Bruto (PIB) acumulado do período de 2019 a 2021, Roraima (12,7%) cresceu cinco vezes mais que o Brasil (2,6%). Para o ano de 2025, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) projeta um aumento de 11% na demanda elétrica [1], em comparação com 2024.

Portanto, trata-se de um estado em franca expansão populacional e econômica, cujo crescimento foi viabilizado pela competitividade e confiabilidade do suprimento de energia e potência, a partir da entrada em operação da UTE Jaguatirica II

A UTE Jaguatirica II é um empreendimento com 140,834 MW de capacidade instalada a gás natural em Roraima, responsável por abastecer até 80% da demanda elétrica local. O combustível é extraído do Campo de Azulão, na Bacia do Amazonas.

A usina foi contratada no Leilão de Geração 01/2019, em substituição ao óleo diesel do sistema isolado, e entrou em operação comercial em 2022. Antes do gás natural, Roraima passou por uma série de dificuldades de integração eletroenergética, dada sua localização geográfica, conforme observado no Mapa 1.

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Mapa 1 – Localização de Roraima e do Projeto Azulão-Jaguatirica (Fonte: Cardoso, 2023)

Pelo Gráfico 1 abaixo, observa-se que, após o período de pandemia (2020-2021), houve forte crescimento da demanda máxima de energia elétrica a partir de 2022, com o início de operação dos novos projetos de geração no estado de Roraima – em especial, a UTE Jaguatirica II. De 2023 para 2024, a demanda máxima aumentou 22%; de 2024 para 2025, espera-se um aumento de 11%.

Gráfico 1 – Demanda Máxima do Sistema Roraima, em MW (2020-2025) (Fonte: elaboração própria, a partir de dados do ONS)

Breve histórico de isolamento eletroenergético de Roraima

A partir de 2001, Roraima passou a depender de importações de energia da Venezuela para suprir a demanda elétrica. A ideia era substituir o consumo de diesel em Roraima pela importação de energia hidrelétrica do Complexo Guri. Por diversos anos, a importação, de fato, ocorreu.

Em 2011, foi realizado o leilão de transmissão para o Linhão Tucuruí, que permitiria a interligação de Boa Vista a Manaus (e ao SIN), com previsão de operação a partir de 2015. No entanto, uma série de judicializações embargou a obra, que margeia a BR-174, por quase uma década, alegando sensibilidade com a Terra Indígena Waimiri Atroari. Atualmente, a previsão de operação é setembro de 2025, segundo dados da Aneel, com quase 10 anos de atraso da data original.

Em março de 2019, o Brasil interrompeu definitivamente a importação da Venezuela para Roraima, após um colapso energético no país vizinho. Em resposta, o parque termelétrico local a diesel foi acionado, consumindo mais de 1.000.000 (um milhão) de litros de diesel por dia. Foi neste cenário que a UTE Jaguatirica II foi contratada, em maio de 2019.

Dos benefícios trazidos pelo gás natural em Roraima: redução de subsídios, emissões de CO2 e blecautes

Recentemente, o Ministério de Minas e Energia (MME) publicou o Portal de Acompanhamento dos Sistemas Isolados (PASI), que consolida os dados técnicos e financeiros de cada localidade isolada do Brasil, incluindo o Sistema Boa Vista.

Com base nessas informações públicas, calcula-se que a economia proporcionada pela UTE Jaguatirica II na substituição do diesel pelo gás natural até o momento em Roraima foi de R$ 3,2 bilhões à Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), o que representa uma redução de 64% no custo de subsídios cruzados aos consumidores brasileiros. Trata-se de uma economia de R$ 1,3 bilhão por ano.

Da mesma forma, a redução de emissões de CO2 chegou a 762,7 mil toneladas, uma redução de 52% em relação ao diesel. Considerando a emissão média global de emissões por pessoa (7 tCO2eq), o montante evitado de emissões equivale ao demandado por mais de 100.000 pessoas.

A existência da UTE Jaguatirica II também repercutiu em redução no número de blecautes no Sistema Roraima, em benefício da população. Conforme dados do ONS [2](atualização até junho de 2023), o número de blecautes reduziu de 81, no ano que antecedeu o término das importações da Venezuela, para 1, no consolidado até junho de 2023, conforme Gráfico 2.

A usina entrou em operação comercial plena em 24 de maio de 2022, sendo 2023 o ano mais representativo sob a ótica de avaliação da operação do referido histórico.

Gráfico, Gráfico de barras

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Gráfico 2 – Histórico de Blecautes no Sistema Roraima (Fonte: ONS, 2023)

O empreendimento permitiu ainda o início da produção de gás natural na Bacia do Amazonas, por meio do Campo de Azulão (Mapa 1). Até então, a Bacia do Amazonas, com cerca de 500.000 km² de área, não era produtora de hidrocarbonetos.

O Campo de Azulão foi o primeiro caso bem-sucedido de desinvestimento da Petrobras – após 1 ano da cessão do campo, em 2018, o gás natural foi monetizado para o abastecimento de Roraima.

Atualmente, o gás é produzido em Silves/AM, a 300 km de Manaus, liquefeito, transportado por carretas criogênicas por cerca de 1.100 km até Boa Vista (RR), onde é regaseificado e utilizado para a geração de energia elétrica. 

A obra Azulão-Jaguatirica, como ficou conhecida, envolveu um investimento de R$ 1,8 bilhão, montante equivalente a quase 10% do PIB de Roraima. A obra foi a primeira a entrar em operação comercial do Leilão de Geração 01/2019.

O êxito do projeto foi possível com a cooperação desenvolvimentista dos governos do Amazonas e de Roraima, dado o prazo expedito para a construção (2 anos) e a pandemia do covid-19, bem como os aprimoramentos regulatórios da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e do Ministério de Minas e Energia (MME). 

Das perspectivas para o gás natural após a interligação de Roraima

Mesmo com a previsão do Linhão de Tucuruí para setembro de 2025, o ONS já indica a necessidade de manutenção de 50% de geração local para critérios de confiabilidade de suprimento, uma vez que Roraima seria “ponta de rede”.

Em outros termos, qualquer instabilidade no linhão deverá permitir a continuidade do abastecimento, o que requer geração in loco. O mesmo ocorre com Manaus, que era sistema isolado até 2015, quando foi reconhecida sua plena interligação [3], mas permanece com geração térmica local. Portanto, a geração de Jaguatirica II deve continuar, mesmo após a interligação.

“Com o fortalecimento do suprimento eletroenergético de Roraima, espera-se a pavimentação de um caminho virtuoso para que o estado continue o bom crescimento população e econômico que vem desempenhando nos últimos anos, garantindo bem-estar à população com modicidade tarifária”

Mesmo com as boas notícias de construção em curso do Linhão de Tucuruí até 2025 e a operação da UTE Jaguatirica II, Roraima ainda possui um desafio até a interligação: o critério de confiabilidade “N”.

No Brasil e em diversos outros países do mundo, os sistemas elétricos são planejados pelo critério geral de confiabilidade “N-1” (contingência simples), em que são capazes de suportar a perda de qualquer elemento na rede sem interrupção do fornecimento.

Segundo o ONS, no N-1, “o sistema deve ser capaz de permanecer operando sem interrupção do fornecimento de energia, perda de estabilidade, violação de padrões de grandezas elétricas (frequência, tensão) e sem atingir limites de sobrecarga de equipamentos e instalações”.

Para alguns pontos do SIN, como os principais troncos de transmissão, o critério é ainda mais restritivo, envolvendo a perda de dois (N-2) ou mais componentes (ex: N-3).

No entanto, o critério de confiabilidade “N” em Roraima implica que a perda de qualquer elemento da rede pode levar à interrupção do fornecimento. Com a interligação, espera-se que o critério de confiabilidade se altere, mas, até lá, Roraima continuará com menor nível de confiabilidade de suprimento elétrico na comparação a todos os demais estados.

Ainda que se tratando do único estado suprido integralmente com sistemas isolados, Boa Vista e localidades conectadas atendem mais de 700 mil habitantes, o que demonstra sua inequívoca relevância e importância para a qualidade de vida da população local. 

Ainda que os blecautes tenham diminuído sensivelmente nos últimos anos com a entrada da UTE Jaguatirica II, qualquer falha eletromecânica em um equipamento poderá repercutir em blecautes. Tanto é assim, que o ONS realiza anualmente sensibilidades sobre perdas de equipamentos para verificar a vulnerabilidade do sistema Roraima. 

Segundo o Operador [4], por exemplo, em setembro e outubro de 2025 haveria déficit no atendimento da demanda (cortes de carga) em Roraima de 6 MW e de 16 MW, respectivamente, caso não haja a efetiva entrada em operação da UTE Híbrido Forte de São Joaquim (obra em atraso, com previsão atual em agosto de 2025) e em situações de saída de operação da UTE Jaguatirica II. Esse risco seria evitável com a adoção do N-1.

Como demonstrado no Gráfico 1, o crescimento econômico e populacional em Roraima já se demonstrou efetivo com a entrada da UTE Jaguatirica II. Ocorre que, dadas as previsões futuras para a demanda elétrico no próximo ano de 2025, é recomendável uma evolução da confiabilidade de suprimento para sustentar o contínuo crescimento e necessidade da população.

Na prática, há um trade-off (dilema de escolha) entre custo e segurança. A adoção do critério “N-1” até a interligação poderia ser uma medida para reduzir os riscos de cortes de carga ou blecautes, embora o incremento expressivo da carga (superior a 10%, para 2025), torne o cenário desafiador para o operador e os formuladores de políticas públicas.

Com o fortalecimento do suprimento eletroenergético de Roraima, espera-se a pavimentação de um caminho virtuoso para que o estado continue o bom crescimento população e econômico que vem desempenhando nos últimos anos, garantindo bem-estar à população com modicidade tarifária. 

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.


Lucas de Almeida Ribeiro é gerente Regulatório da Eneva.


Referências

[1] CTA-ONS DPL 1502/2024 – Plano Anual da Operação Elétrica dos Sistemas Isolados – PEL SISOL 2025.

[2] CTA-ONS DPL 1145/2023.

[3] Despacho Aneel nº 1.365/2015.

[4] CTA-ONS DPL 1502/2024 – Plano Anual da Operação Elétrica dos Sistemas Isolados – PEL SISOL 2025.

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