A região amazônica nos remete à visão da floresta, dos povos indígenas, do meio ambiente mais pujante, da força da natureza, da essencialidade desse mar verde para o globo terrestre. A relevância dessa visão se intensifica principalmente com a ampliação da emergência climática e a busca da descarbonização da economia.
Com tantos aspectos relevantes a abordar, neste artigo apresento algumas reflexões sobre a região amazônica e o setor elétrico brasileiro, especialmente a partir dos anos 2000, com os grandes empreendimentos hidrelétricos na região, considerada a última fronteira de expansão da geração de grande porte a partir de fonte hídrica no Brasil.
Para o escoamento da energia dessas usinas houve a construção de grandes linhas de transmissão, alcançando milhares de quilômetros ao longo de vários Estados, até chegar aos centros de consumo.
Sobre a questão, preliminarmente, dois elementos se destacam: (a) o alcance das questões sociais em decorrência do desenvolvimento de atividades econômicas; e (b) a visão de que a construção de usinas hidrelétricas pode ser um vetor de desenvolvimento local e regional, até em razão das compensações sociais envolvidas.
Consulta aos povos originários
Como se aborda o direito dos povos que podem ser afetados com a construção de usinas hidrelétricas na região amazônica?
No debate sobre os aspectos sociais são consideradas, em particular, a questão indígena, a situação das comunidades ao redor das usinas, preocupações com o patrimônio histórico-cultural e aspectos trabalhistas inerentes ao quadro de trabalhadores que atua na implantação dos empreendimentos.
A questão indígena e tribal suscita muitas reflexões, e a discussão parte essencialmente do disposto na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, adotada em Genebra em 1989 e promulgada pelo Brasil em 2004.
Os governos têm a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade, como previsto na Convenção nº 169-OIT.
A característica obrigacional é um dos marcos da Convenção da OIT. Há obrigatoriedade de garantia e preservação de todos os direitos a esses povos e da promoção da plena efetividade de seus direitos sociais, econômicos e culturais.
Devem ser adotadas medidas especiais para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados.
Há previsão de que os povos sejam consultados previamente à construção de empreendimentos hidráulicos, mediante procedimentos específicos, com meios que permitam a livre participação, com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias.
O Judiciário brasileiro já foi chamado a se manifestar sobre a consulta prévia aos povos indígenas, quando do aproveitamento dos recursos hídricos em suas terras, conforme previsto no art. 231 da Constituição Federal. Registre-se a necessidade de autorização prévia do Congresso Nacional para essa implantação.
Desenvolvimento local e regional
Por outro lado, também se discute a construção de usinas hidrelétricas como vetor de desenvolvimento local e regional. O empreendimento proporciona inúmeras “compensações sociais”, como a implantação de aparelhos públicos de saúde, educação, saneamento básico, infraestrutura, patrimônio histórico, segurança, entre outros.
Porém, a antropização de localidades tem o potencial de ampliar conflitos e disparidades regionais, o que pode representar impactos sociais notadamente negativos.
A verdade é que cada vez mais se comprova a importância da avaliação do conjunto dos impactos no ecossistema, a avaliação dos impactos sinérgicos e cumulativos de um determinado empreendimento, mediante a Avaliação Ambiental Integrada (AAI) e a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), para além das licenças prévia, de instalação e de operação dos empreendimentos.
Vocação para economia verde
No atual cenário de busca de desenvolvimento sustentável, certamente haverá a continuidade da visão sobre a integração do meio ambiente, da economia e da sociedade de forma mais equilibrada e eficiente, principalmente no que se refere à preservação da vida, da cultura e de valores inerentes à região e seus povos originários.
Neste sentido, de forma geral, pode-se afirmar que a região possui vocação natural para atividades econômicas “verdes”.
No setor elétrico, em particular, temos uma miríade de lições aprendidas — prós, contras, barreiras, melhores práticas etc. — a partir da implantação dos empreendimentos hidrelétricos e de suas respectivas linhas de transmissão.
Essa experiência nos permite vislumbrar a oportunidade de introdução de novas formas de produzir e de se relacionar com a energia, colocando a região amazônica no mapa da transição energética.
Por exemplo, busca-se a ampliação do uso de fontes renováveis típicas da região (biomassa, aproveitamento de resíduos, solar etc.), em associação com armazenamento hídrico, químico ou em hidrogênio para ampliar, de forma sustentável, o fornecimento de energia elétrica para a região e para o Brasil.
O acesso à energia elétrica é aspecto essencial. A utilização da energia elétrica para desenvolver atividades, produtos e serviços sustentáveis na Amazônia, especialmente para comunidades isoladas, deve ser um dos grandes objetivos do país.
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Sempre é importante relembrar que, como uma das fontes de direitos sociais, a Constituição Federal de 1988 estabelece entre os cinco fundamentos da República a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
E também prevê como seus objetivos fundamentais: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.
Aproveitar de forma inteligente, integrada e moderna o potencial energético do país é uma oportunidade para o Brasil pôr definitivamente em prática um dos pilares mais fundamentais da COP27 e do debate Net Zero Global, a Transição Energética Justa.
Solange David é doutora e mestre em Ciências – Engenharia Elétrica pela Escola Politécnica da USP, advogada e bacharel em história. Atualmente, é conselheira do Cigre-Brasil, vice-presidente do Conselho de Administração de Santo Antônio Energia e chair do Women in Energy do Cigre International. Atuou na CCEE de 2002 a 2020, onde foi vice-presidente do Conselho de Administração de 2015 a 2020.
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