Causa certa surpresa a reação sobre uma das propostas, recentemente aventadas, para que a recuperação dos custos com a garantia da segurança de abastecimento para as térmicas vencedoras dos leilões de reserva de capacidade de potência não fosse considerada como critério de competitividade no certame.
As usinas térmicas quando desconectadas da malha de transporte de gás trazem forte variação de preços ao consumidor devido à volatilidade do preço internacional do gás natural liquefeito (GNL) a que estão submetidas.
Elas também trazem insegurança física de abastecimento, pois necessitam de navios para o suprimento deste combustível.
Essas variações de preço e incerteza no suprimento de GNL atuam ao contrário do que se espera da contratação em um leilão de reserva de potência: aumento da robustez do sistema elétrico, com o máximo de potência disponível, da forma mais rápida e confiável possível com previsão e estabilidade de preços.
Logo, essa reação nos leva a refletir sobre quem são os agentes interessados na defesa do modelo de térmicas não conectadas ao transporte.
Vamos começar pelo propósito da contratação e pelos custos atualmente suportados pelos usuários da rede de eletricidade para avaliarmos a eficiência da contratação das térmicas desconectadas nos estados em que há disponibilidade de infraestrutura de transporte.
Você sabia que o custo operacional de um navio é de cerca de US$ 50 milhões ao ano?
E que este custo é incluído na Receita Fixa (RF) destes agentes, que assim conseguem viabilizar toda sua operação por meio de contratos de longo prazo dedicados exclusivamente ao atendimento de usinas térmicas quando não conectadas ao sistema de transporte?
Apenas nos últimos cinco anos, os contratos de aluguel desses navios, incluídos na RF paga pelos consumidores do setor elétrico, consumiram mais de US$ 1,2 bilhão da conta paga pelos brasileiros.
Além disso, o gás natural fornecido por esses navios não é produzido no Brasil. Enquanto temos reservas abundantes de gás e oportunidade de gerar renda, emprego e royalties no país, ao privilegiar o uso de terminais desconectados da malha, consome-se o gás produzido em outros países, deixando o valor agregado no processo industrial lá fora.
Isto contribui para o déficit em nossa balança comercial e cria incerteza acerca dos preços que os consumidores pagarão pelo uso da eletricidade.
É de conhecimento de todos as turbulências internacionais que trouxeram forte variação ao preço do GNL nos últimos anos, como as guerras, por exemplo, fazendo com que o despacho das usinas térmicas com gás importado traga grande volatilidade de preços na conta de luz associada com a incerteza de disponibilidade de cargas de GNL.
Afinal, os preços de GNL resultantes do leilão de capacidade são em geral indexados aos preços internacionais, os quais são inteiramente repassados aos usuários do sistema conforme sua cotação spot.
Além de pagarmos pelos custos fixos dos aluguéis dos navios de antemão, estamos ainda expostos à variação do preço do combustível em si própria, atrelada a fatores externos difíceis de prever.
Cabe salientar que sempre que o gás natural do navio não estiver disponível, a contrapartida é o despacho por fontes mais caras ou poluentes, reduzindo assim a eficácia do mecanismo de leilão. E o consumidor acaba pagando por uma Receita Fixa para os investidores de algo que não sabe se pode contar.
Este é o caso não apenas da indisponibilidade de chegada de cargas até o porto, como da ocorrência de falhas técnicas na conexão para saída da carga de GNL do navio, como a ocorrida recentemente em Sergipe.
Neste caso, se não houvesse a conexão da térmica ao sistema de transporte de gás natural, o sistema elétrico nacional teria despachado outra fonte geradora, de custo mais elevado e fora da ordem de mérito.
A conexão da usina térmica à malha de transporte de gás fez com que o combustível brasileiro, necessário para a estabilização do sistema elétrico, fosse fornecido de maneira imediata e mais eficiente, superando a falha de suprimento do navio.
Mas voltemos à nossa pergunta inicial. A quem interessaria então o modelo de térmicas desconectadas?
O modelo de térmicas desconectadas garante, por meio de contratos de longo prazo, a recuperação de investimentos privados independentemente de sua serventia ou relação ao interesse público específico do leilão: o de garantir segurança de abastecimento com a alternativa mais flexível e econômica de despacho.
Térmicas desconectadas são um excelente negócio para amortizar novos terminais de GNL para início de operação após 2028 ou rentabilizar infraestruturas de by-pass ao sistema de transporte com baixo risco de investimento.
Tal modelo de negócio não faz sentido para otimizar o uso dos recursos nacionais e gerar competitividade à indústria no país, especialmente quando se fala em reserva de capacidade elétrica para aumento da confiabilidade e segurança do Sistema Interligado Nacional — um interesse de todos.
A defesa de interesses específicos de grupos econômicos é legítima em um ambiente democrático, mas não deve se sobrepor à criação de narrativas que notadamente podem disseminar fatos espúrios acerca de dados econômicos e dos regramentos legais e infralegais vigentes.
Senão, vejamos algumas das afirmações recentemente realizadas que podem facilmente ser esclarecidas com dados públicos:
Quando mencionado o regime de receita máxima permitida dos transportadores, esta é amparada pela Lei 14.134 de 2021, resultado de amplo debate entre os agentes de mercado.
Este regime permite o estabelecimento dos direitos de receita do transportador que cubram os custos, despesas e tributos, bem como a remuneração justa e adequada dos investimentos e depreciação dos ativos empregados na prestação do serviço.
Tanto a Receita como a remuneração são submetidas à Consulta Pública e posteriormente aprovados pela ANP.
Por outro lado, o custo fixo trazido pelos terminais é muitas vezes elevado, sem garantir a disponibilidade necessária, e não oferece ao setor elétrico opção de escolha que não o custo variável spot do GNL importado, que é caro e imprevisível.
Do ponto de vista do custo fixo, é possível afirmar que, hoje, há uma sobrecapacidade instalada nos terminais equivalente a 150 milhões de m3/dia, ou mais do que o dobro da demanda nacional de gás natural. Tal sobrecapacidade é rateada por todos os usuários do sistema elétrico.
Sob a ótica dos custos variáveis, apresentamos a seguir a variação hipotética dos Custos Variáveis Unitários (CVU) das termelétricas a gás natural vencedoras dos leilões de energia nova desde 2015 até 2019 no horizonte temporal de janeiro de 2010 a fevereiro de 2021.
Nota: Térmicas I e II com indexação ao Brent; Térmica IV com indexação ao dólar; Térmicas IV e V com indexação ao JKM; Térmica VI com indexação ao IPCA
Os números falam por si… Considerando os custos fixos dos terminais e a volatilidade de preços do gás importado, a quem interessa um modelo de terminais desconectados?
Seriam os interessados as empresas que se beneficiam com as lacunas de coordenação e planejamento integrado dos setores de gás e eletricidade que geram perda na eficiência sistêmica do setor de energia? Fica a pergunta e a reflexão.
O tempo é curto e precioso e a decisão é clara. Vamos multiplicar os terminais ou valorizar a integração das fontes de suprimento rumo a ofertas competitivas e seguras para o despacho termelétrico, capaz de reduzir a conta de energia?
Este artigo expressa exclusivamente a posição da autora e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculada.
Cristina Sayão é economista e mestre em administração pela Coppead/UFRJ e responsável pela área da Assuntos Regulatórios da Transportadora Associada de Gás (TAG).