Como apresentamos em artigos anteriores aqui nesta coluna, a descrição da atual transição energética usando os chamados 3Ds (descarbonização, descentralização e digitalização), embora represente de forma didática o que vem ocorrendo no mundo de forma geral, é insuficiente para representar seu completo significado para o Brasil.
Por esse motivo, a visão do Instituto E+ para a transição energética brasileira é caracterizada por 5Ds, incluindo outros dois importantes temas que também se iniciam com a letra D: Desenho de mercado e Democratização (com redução da desigualdade). Neste artigo, exploramos o primeiro deles, deixando o segundo para o próximo mês.
De modo geral, o desenho de mercado pode ser definido como a estruturação de um conjunto de regras e procedimentos que fazem o mercado funcionar de forma apropriada, gerando soluções eficientes e endereçando possíveis falhas de mercado, tais como as externalidades, o poder de mercado e a informação assimétrica.
- Em particular, um desenho de mercado adequado para os mercados de energia assegura que suas negociações possam ocorrer de maneira eficiente, com apropriada alocação de riscos e de custos entre agentes.
- Também deve facilitar o acoplamento dos mercados atacadistas aos mercados varejistas de modo que o preço ao consumidor final sinalize adequadamente a escassez relativa, além de impedir o exercício de poder de mercado de grandes agentes.
- Deve ainda prover os serviços energéticos de acordo com as necessidades dos consumidores em termos de transporte, iluminação, resfriamento ou aquecimento no curto prazo, mas também gerar os incentivos corretos para o nível adequado de investimento na expansão da oferta de energia.
- Por fim, ele permite que inovações que tragam maior competitividade ou novos serviços sejam incorporados sem maiores fricções, trazendo aumento de bem-estar para a população.
No caso do Brasil, as discussões recentes de modernização dos setores elétricos e de gás natural apontam na direção correta de buscar soluções mais orientadas a mercado, mas, isso envolve aprimoramentos para garantir a alocação apropriada de riscos e custos entre os agentes, além de levar a melhor utilização dos recursos, levando-se em conta especialmente a segurança energética do país.
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Desenho orientado a mercado
Em um sistema orientado a mercado, os preços (regulados ou livres) dos mercados de energia têm um papel fundamental na coordenação da produção, consumo, transporte, distribuição e comercialização entre as partes. Por exemplo, a diferenciação de preços ou tarifas entre grupos de clientes em função do componente local ou regional é de particular interesse na expansão dos sistemas de produção distribuída (predominantemente renovável) ligados às redes de distribuição de baixa tensão.
Um sistema de preços que seja estruturado a partir de um desenho de mercado bem especificado alocará de forma transparente e apropriada os custos e riscos tanto de serviços de distribuição quanto de soluções de recursos energéticos distribuídos, de modo que os consumidores, com informação adequada, possam fazer as escolhas que melhor reflitam suas preferências.
Expansão do mercado livre
De fato, um dos grandes desafios na modernização do setor de energia elétrica no Brasil, e em geral na América Latina, está na liberalização do mercado de forma ordenada, entendida aqui tanto como a possibilidade de livre escolha do consumidor do seu provedor de serviços energéticos, quanto um setor cuja solução é mais orientada a mercado.
Em primeiro lugar, a maior participação de fontes renováveis variáveis na sua expansão e as perspectivas de maior descentralização associadas à atual transição energética impõem a necessidade de alterações nos arranjos comerciais e operacionais compatíveis com a transformação de um sistema hidrotérmico centralizado para um sistema de múltiplas fontes, descentralizado e com participação mais ativa do consumidor.
Nesse sentido, as regras de mercado no setor elétrico devem ser readequadas para garantir a incorporação de múltiplos sistemas descentralizados que operem de maneira integrada ao sistema centralizado, sem causar, eventualmente na sua incorporação, problemas de estabilidade ou congestionamento das redes existentes.
De fato, os preços devem ser ajustáveis para garantir que cada recurso ligado à rede seja despachado de forma eficiente no curto prazo e que a geração (especialmente a partir de energias renováveis variáveis) esteja localizada de modo a reduzir os custos globais do sistema.
Em segundo lugar, é necessário revisar a estrutura tarifária para que o consumidor final perceba os sinais econômicos do mercado atacadista e possa responder a eles tempestivamente na ponta.
Além disso, a separação das atividades de comercialização e fornecimento de rede (separação fio-energia) é fundamental tanto para a sinalização correta para a expansão da geração distribuída como para evitar possíveis conflitos de interesse associados ao uso de informação privilegiada dos dados de consumidores.
- Esses pontos são descritos com mais detalhes no estudo A Reforma do Setor Elétrico sob a Perspectiva da Transição Energética
Outro aspecto relevante para um bom desenho de mercado no setor de energia diz respeito não apenas ao ajuste de curto prazo entre oferta e demanda, mas aos incentivos por ele criados para estimular os investimentos necessários para o equilíbrio de longo prazo.
A volatilidade de preços dos energéticos em momentos de estresse, principalmente pelo lado da oferta, tem trazido uma discussão acalorada sobre a importância do preço de curto prazo (preço spot) na sinalização de investimento a longo prazo.
Por outro lado, o próprio mercado é capaz de criar soluções para reduzir eventuais exposições ao risco de preços elevados por meio de contratos futuros ou contratação a longo prazo.
Flexibilidade
Por fim, um bom desenho de mercado precisa ser suficientemente flexível para incorporar a realidade de inovações exponenciais e, potencialmente, disruptivas.
Ao tornar o sistema de energia mais flexível e adaptável a novas tecnologias, com maior capacidade de processar dados e informações dos agentes e de rápida resposta em termos de alterações dos arranjos comerciais, operacionais e regulatórios às mudanças trazidas pelas inovações, mais próximo o mercado estará da solução eficiente de modo resiliente.
A atual transição energética, ao se apoiar na descentralização e digitalização do setor de energia, aponta na direção de uma configuração mais complexa dos sistemas energéticos, marcada pela integração de múltiplos agentes, fluxos multidirecionais de energia e sujeita a constantes inovações.
Essa configuração, por sua vez, requer um bom desenho de mercado que forneça as condições para que o sistema possa coordenar de modo eficiente as negociações entre os agentes, endereçando eventuais falhas de mercado e propiciando os incentivos corretos para que os investimentos necessários sejam realizados.
As reformas do setor elétrico e do setor de gás natural ora em discussão no Brasil apontam na direção correta, mas ainda são insuficientes para preparar o país para todas as oportunidades e desafios que a transição energética trará para os mercados de energia nos próximos anos.
Um desses desafios é a inclusão da precificação de carbono na formação de preços de energia, endereçando o problema da externalidade das emissões de gases de efeito estufa.
Em resumo, não é tarefa fácil, mas a construção de mercados de energia eficientes é fundamental para o país aproveitar as grandes oportunidades associadas à sua transição energética.
Emílio Matsumura é diretor-executivo do Instituto E+ Transição Energética e professor do IBMEC/RJ.
Pablo Silva Ortiz é Engenheiro de Energia com formação interdisciplinar em gestão de recursos energéticos e tecnologias de conversão de energia, experiência obtida através da participação em projetos de pesquisa e consultoria em instituições de ensino superior e organizações reconhecidas internacionalmente. Atualmente, atua como coordenador técnico do Instituto E+ Transição Energética.