A descentralização dos sistemas energéticos é um processo caracterizado pela maior diversificação e multiplicidade de agentes, com tendência a se localizarem mais próximos dos centros consumidores. Por si só, a descentralização não é garantia de sistemas energéticos de baixa emissão de gases de efeito estufa (GEE) como nos mostram os sistemas isolados no Brasil, ainda hoje largamente dependentes de combustíveis fósseis.
Dessa forma, em que medida a descentralização é também um elemento caracterizador da transição energética?
Boa parte dessa associação com a transição energética está ligada às grandes transformações verificadas principalmente no setor elétrico e agrupadas no termo Recursos Energéticos Distribuídos (RED).
Os RED trazem uma alteração da configuração do setor elétrico na direção de maior flexibilidade e diversificação espacial, permitindo ao consumidor também se tornar produtor (nesse caso, chamado de “prossumidor”). Os RED englobam desde a geração distribuída (GD), tecnologias de armazenamento (como baterias), novos usos (como veículos elétricos), participação do consumidor (como resposta da demanda), até programas de eficiência energética.
Como estão localizados próximo aos centros de consumo, os RED reduzem as ineficiências associadas à transmissão e distribuição e os custos econômicos e ambientais relacionados, além de reforçar a segurança de suprimento das comunidades por ela servidas.
Se oferece uma série de oportunidades para tornar a produção, distribuição e consumo de eletricidade mais eficiente e menos emissora de GEE, a descentralização, de outro modo, coloca novos desafios ao sistema existente, demandando regras e incentivos novos e coerentes para responder a essas novas perspectivas, caso contrário ela pode gerar graves problemas.
Tomemos, por exemplo, o caso da GD.
A escala relativamente pequena de muitas tecnologias de energia renovável (como solar e eólica) reduziu drasticamente a barreira de entrada no mercado de geração de energia. Ademais, em locais onde legislação relativamente favorável foi implementada, houve expansão significativa da GD.
Em alguns casos, esse rápido crescimento levou a preocupações ligadas à estabilidade e funcionamento das redes elétricas locais, além de ameaça às distribuidoras incumbentes, com o receio, em particular, da chamada “espiral da morte”.
Nesse fenômeno, um processo de saída dos consumidores da distribuidora por alternativas mais vantajosas de RED (por exemplo, com menores custos devido a incentivos tributários, isenções tarifárias, ou por oferecerem opções de menor emissão de GEE) leva a um aumento das tarifas da distribuidora aos consumidores remanescentes de forma a cobrir os custos da sua infraestrutura existente, incentivando a mais consumidores saírem da distribuição. No limite, essa migração crescente causaria o colapso econômico-financeiro do negócio.
Dessa maneira, o desafio ligado à expansão da descentralização do setor elétrico não é propriamente o nível que ela pode vir alcançar, mas como integrar de forma eficaz os diversos sistemas descentralizados que surgirem com o sistema centralizado existente, de tal modo que se garanta a segurança energética e, ao mesmo tempo, redunde em menores perdas econômicas e ambientais nessa transformação.
Certamente, a revolução associada à digitalização, permitindo a integração e interconexão dos sistemas pequenos e descentralizados a baixos custos, será um fator preponderante no sucesso desta integração.
Nesse sentido, as mudanças na tecnologia e nas estruturas físicas observadas nos últimos anos com a descentralização trazem e trarão desafios no planejamento e na expansão dos sistemas elétricos do futuro.
Regulação flexível aos avanços tecnológicos, serviços de infraestrutura e mecanismos de coordenação serão necessários em uma ação concertada para o desenvolvimento do novo desenho dos mercados de energia.
Incluímos também nesta reflexão as adaptações de papel e de escopo de atuação da governança institucional (regulador, planejador, operador do sistema e operador de mercado) frente aos desafios de um sistema mais descentralizado.
Para o Brasil, a descentralização deve ser encarada como uma oportunidade ligada à transição energética.
Sistemas descentralizados podem ser eficientes para atender de modo mais eficaz realidades locais em um país continental e com diferenças regionais acentuadas.
A implementação ordenada de regulação apropriada e de avanços tecnológicos propícios à incorporação de recursos energéticos mais próximos dos centros de consumo permite reduzir perdas econômicas, gera menor emissão de GEE e aumenta a segurança de suprimento caso os sistemas descentralizados sejam integrados harmonicamente (de forma transversal, equilibrada e interconectada) ao sistema centralizado existente.
Portanto, a descentralização pode contribuir de forma significativa para uma economia de baixa emissão de GEE no país e aumentar a competitividade das economias locais, com acesso a tecnologias competitivas e de mais baixa emissão de GEE.
Definir a estratégia de longo prazo para esta transformação para a incorporação virtuosa de novos sistemas descentralizados é tarefa complexa que, em uma perspectiva ligada à transição energética, requer ter atenção a mecanismos eficazes de integração com o sistema existente, aumentar a resiliência local e permitir acesso à energia competitiva e mais adaptada às particularidades dos perfis de consumo das diversas regiões do Brasil.
Emílio Matsumura é diretor-executivo do Instituto E+ Transição Energética e professor do IBMEC/RJ.
Pablo Silva é pós-graduando em Engenharia Química da UNICAMP e consultor do Instituto E+ Transição Energética.