Reduzir o consumo de energia fóssil é uma realidade, alinhada aos objetivos de se atingir emissões líquidas zero de carbono na atmosfera.
Nos variados cenários propostos para o “Carbon Net Zero”, fica evidente a necessidade de se aumentar exponencialmente a eletrificação, com uso massivo de fontes alternativas, como eólica e solar, além de hidrogênio, biomassa e esforços na captura de carbono.
Um desafio e tanto, que exigirá uma profunda e complexa mudança estrutural do setor energético e da sociedade, com reflexos sobre a oferta e a demanda de energia.
Reflexos sobre a oferta
Uma parcela da energia total produzida, disponível para uso final, é alocada para produção de energia, enquanto o restante é direcionado para outros usos da sociedade.
Em outras palavras, pega-se parte da energia produzida para produzir-se energia nova demandada, de forma a manter-se o equilíbrio entre oferta e demanda.
No último século, este equilíbrio tem sido sustentado basicamente por carvão, petróleo e gás. Contudo, isso está prestes a mudar e o reequilíbrio será diferente.
Para entender-se melhor a questão, é preciso recorrer a alguns números. Estima-se, por exemplo, que para cada “pacote de energia” investido no gás natural haja um retorno próximo de 20 vezes, ou seja, vinte “pacotes de energia” são gerados para cada um que é consumido para produzi-lo (ver esquema da Figura 1). O mesmo “pacote” investido na produção de energia fotovoltaica retorna 8 pacotes de energia, na média global (Slameršak et al, 2022).
Assim, são necessários 2,5 “pacotes de energia” investidos em fotovoltaica para produzir o mesmo retorno energético observado para o gás natural. Esta diferença de 1,5 “pacotes” adicionais precisa ser produzida de algum lugar, caso contrário, haverá déficit de energia líquida disponível.
A produção de hidrogênio a partir da eletrólise da água é outro exemplo ainda mais didático. Estima-se que são necessários três “pacotes de energia” da rede para produzir “dois pacotes de energia de hidrogênio”, isto é, o retorno energético é negativo (Buttler e Spliethoff, 2018).
Quer dizer, para produzir-se hidrogênio é preciso ter excedente de energia. O excedente hoje é garantido pelas fontes fósseis, que estão sob escrutínio.
Realizar captura de carbono, construir painéis solares, torres eólicas, baterias para automóveis e toda infraestrutura de suporte envolvida vai exigir uma parcela maior da energia líquida disponível para erguer e manter o novo sistema energético.
Soma-se a isso a observação de que a demanda adicional ocorre justamente ao mesmo tempo em que a substituição de fósseis por renováveis tende a reduzir a oferta líquida de energia, na comparação vis a vis de modo geral.
Embora esses números possam variar, dependendo da premissa utilizada no estudo, uma avaliação ampla a respeito das alternativas elencadas como motrizes da transição energética, nos variados cenários, leva a uma descarbonização que naturalmente induz a uma redução da oferta líquida de energia. A contrapartida necessária é a redução da demanda.
Fazendo mais com menos
Os diversos cenários para o “Net Zero” sugerem de forma indireta que a transição energética de baixo carbono aumentará a parcela da geração total de energia destinada à construção, operação e manutenção do sistema de energia, em comparação com o sistema energético atual.
Uma maior quota de energia utilizada para manter o sistema energético pode contribuir para uma diminuição da energia líquida disponível para a sociedade. Dependendo da via de mitigação, essa diminuição da energia líquida pode ser maior ou menor.
As alternativas em tela (eletrificação, baterias, hidrogênio etc.), em conjunto, sugerem um declínio na energia líquida disponível em algum momento durante a transição.
No entanto, isso não significa que a escassez de energia seja uma característica inevitável da transição energética de baixo carbono.
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O declínio energético líquido projetado não se deve a possibilidades restritas de crescimento da oferta, mas porque as alternativas propostas assumem um uso de energia mais eficiente. Assim, espera-se que a redução da demanda ocorra pelo ganho de eficiência no uso da energia.
A perspectiva de utilização mais eficiente de energia na sociedade significa que serviços energéticos fundamentais, como aquecimento, iluminação e transporte, ainda podem ser fornecidos, mesmo se houver menos energia líquida disponível.
A qualidade de vida pode ser mantida ou ampliada com uma menor utilização de energia per capita, desde que haja melhora na eficiência das tecnologias consumidoras de energia.
Será necessário passar das escolhas de consumo com intensidades de energia mais elevadas para as de menor intensidades (trocando automóveis por bicicletas, por exemplo) e evitando completamente as alternativas mais ineficientes (como andar de avião). A transição vai exigir mudanças de hábitos da sociedade.
Obviamente, há riscos envolvidos no processo. Se a redução da oferta líquida de energia vier antes dos ganhos de eficiência ou da redução da demanda, haverá estresse, com sinais de escassez de energia. O equilíbrio entre a oferta e a demanda contará, como conta hoje, com a contribuição fundamental dos combustíveis fósseis.
Não há contrassenso em se investir na produção de energia fóssil ao passo que se fomenta a descarbonização.
A otimização energética e a necessidade de manutenção da oferta líquida de energia são imperativos a serem observados na trilha da descarbonização. É preciso ter energia, segurança energética, para se fazer mais, consumindo menos. Avante!
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Referências
Buttler, I., Spliethoff, H. Current status of water electrolysis for energy storage, grid balancing and sector coupling via power-to-gas and power-to-liquids: A review, Renewable and Sustainable Energy Reviews, Volume 82, Part 3, 2018, Pages 2440-2454.
Slameršak, A., Kallis, G. & O’Neill, D.W. Energy requirements and carbon emissions for a low-carbon energy transition. Nat Commun 13, 6932 (2022).
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