Energia

A crise hídrica e a transição energética, por Emílio Matsumura

A crise atual reflete também a desconsideração dos efeitos das mudanças climáticas nos modelos de operação e planejamento do setor

Concentração de mercado da Eletrobras privatizada preocupa agentes – foto Usina controlada por Furnas, da Eletrobras, em Minas Gerais

Seca extrema no Chile, o mês de fevereiro mais seco dos últimos 150 anos na Califórnia, calor de mais de 49oC no Canadá, inundações na Europa Ocidental com centenas de mortes. As maiores frequência e intensidade dos eventos extremos em diferentes pontos do globo são exemplos da urgência e da proporção que os problemas causados pelas mudanças climáticas podem assumir nos próximos anos.

Também o Brasil, historicamente assolado por períodos de seca, enfrenta desde 2020 a pior seca dos últimos 90 anos e com efeitos devastadores para o setor energético.

Críticos têm apontado diversas falhas de entendimento pelo governo sobre as medidas mais apropriadas a serem tomadas para administrar a crise atual. As autoridades do setor têm trazido propostas de solução e cabe a reflexão se estas são as mais apropriadas e, de modo mais importante, se estão alinhadas com a transição energética e uma visão mais estrutural para o setor elétrico.

O que podemos aprender com esta crise para melhorar o setor elétrico após sua superação?

Na crise hídrica atual, o risco de falta de potência neste ano (e, como decorrência, situações de “apagões” ou blecautes) é bem maior do que o risco de falta de energia (no qual se decretaria um racionamento).

Entender a distinção é essencial, pois se evita tomar medidas que possam vir a ser contraproducentes e, pior, agravar o problema do ponto de vista estrutural.

Uma crise de potência traz desafios novos ao país, principalmente por não contarmos com preparação institucional e mecanismos funcionais para sinalizar aos consumidores com a devida desagregação temporal a escassez de energia em determinados momentos do dia.

Crises de potência não são comuns no Brasil, um país historicamente com excesso de potência. Sua gestão envolve soluções que desloquem o consumo de um período para o outro no dia (sem necessariamente ter que reduzir o consumo total). Além de qualificação do operador para realizar apagões preventivos caso necessários.

Crises de energia, mais familiares ao setor, envolvem propostas que visem a redução do consumo total de energia elétrica, não necessariamente em horas especificas do dia.

O Brasil não possui procedimentos estabelecidos para lidar com ambas as crises, o que pode dificultar sua gestão.

Programas de resposta da demanda têm sido debatidos e implementados, mas sua eficácia no Brasil até agora não se mostrou à altura do desafio que teremos pela frente.

Regra geral, consumidores pouco conhecimento têm de como suas contas de luz se relacionam com seu padrão de consumo.

A adequação do consumo a situações de estresse hídrico via programas de resposta da demanda bem estruturados reduz não apenas o custo da energia para a sociedade, mas também as emissões associadas à geração de termelétricas mais ineficientes e poluidoras.

Porém, um desenho de um programa eficaz requer que se explique ao consumidor o que se espera dele, além de estabelecer mecanismos que o incentivem a agir na direção definida.

A crise atual reflete também a desconsideração dos efeitos das mudanças climáticas nos modelos de operação e planejamento do setor.

A questão metodológica de fundo é complexa do ponto de vista estatístico. Se, por um lado, há desconfiança generalizada de quebra estrutural na série histórica das vazões, por outro lado, não se pode afirmar com razoável confiança qual seria o novo patamar das “novas” séries e mesmo que as alterações nos padrões estatísticos históricos serão as mesmas em todas as regiões do país.

No entanto, isso não isenta as autoridades de atuar com balanço de riscos mais cuidadoso em que a frequência de cenários de estresse hídricos seja mais recorrente, enquanto se aprimoram os modelos estatísticos das séries das vazões.

Essas críticas precisam ser correta e tempestivamente endereçadas de forma estrutural, pois com a intensidade e a frequência dos eventos extremos se aprofundando, situações de estresse hídrico serão mais comuns daqui para frente.

Nesse contexto, usar medidas provisórias que apenas lidam com os impactos conjunturais e transferem o custo para o futuro, sob a hipótese de que a normalidade retomará, é estruturalmente equivocado, onerando ainda mais a população, principalmente a mais vulnerável.

Estar preparado para o futuro requer fazer uma análise de riscos de eventos que hoje possuem efeitos ainda difíceis de serem antecipados ou medidos, procurando reduzir ao máximo seus impactos deletérios para a população.

E, nesse caminho, não devemos nos esquecer de que a transição energética nacional deve priorizar soluções economicamente eficientes, ambientalmente responsáveis, socialmente justas e politicamente viáveis.

Emílio H. Matsumura é diretor-executivo do Instituto E+ Transição Energética — think tank incubado pelo Instituto Clima e Sociedade (iCS)