BRASÍLIA – Estudo do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) em parceria com o Plano Nordeste Potência, divulgado nesta segunda (30/10), identifica uma série de desequilíbrios em contratos de arrendamento de terras para projetos eólicos na região.
O mapeamento inédito (.pdf) sobre 50 contratos celebrados com pequenos proprietários rurais foi elaborado após denúncias sobre cláusulas que preveem baixas remunerações, períodos longos de vigência sob pena de multas elevadas e poucas contrapartidas sociais, entre outros.
As empresas, por sua vez, afirmam seguir a prática jurídica recomendada e que os prazos atendem às necessidades dos projetos de energia. Leia as notas na íntegra ao final da matéria
Os contratos foram obtidos no Sistema de Consultas Processuais da Agência Nacional de Energia Elétrica (SIC/Aneel), nas juntas comerciais locais ou por iniciativas das próprias comunidades, sob condição de anonimato.
Os autores do estudo reconhecem o papel das renováveis na transição energética e segurança climática, mas questionam a forma como essa expansão está ocorrendo, agravando problemas sociais entre populações muitas vezes já em situações de vulnerabilidade.
“Tanto no interior, quanto no litoral, nós víamos que havia uma reivindicação de populações tradicionais, povos campesinos e pequenos agricultores que se sentiam prejudicados, um sentimento de injustiça diante desses empreendimentos alocados nas terras deles”, conta o pesquisador e advogado Rárisson Sampaio.
Membro da Laclima, uma iniciativa de advogados latinoamericanos pela mobilização climática, e um dos autores do estudo, Sampaio explica que, mais do que um conflito energético, essas comunidades vivem um conflito sobre o uso da terra.
“São pessoas que dispõem de poucas propriedades. Não estamos falando de grandes latifundiários. São pequenas propriedades, muitas vezes, um bem familiar, e chega um empreendimento com uma promessa de renda. Mas quando se concretiza, e vem as limitações do uso da propriedade e o baixo retorno financeiro, gera um sentimento de indignação”, relata.
Acordos por adesão
Ao analisar os acordos firmados em municípios da Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, os pesquisadores perceberam uma recorrência de contratos-padrão, que se diferenciam somente nas especificações dos locais, dos proprietários e dos valores.
Esse tipo de prática se assemelha aos acordos por adesão – quando, por exemplo, se contrata um serviço de internet –, indicando que a elaboração foi unilateral e sem debate com as comunidades diretamente envolvidas ou assistência de instituições públicas para uma negociação equilibrada.
“Muitas vezes, as comunidades sequer têm a noção de que elas podem reivindicar alguma coisa durante a negociação. Elas acham que são obrigadas a concordar com os termos. Não há negociação”, observa o advogado.
Dos 50 contratos analisados, 12 deles possuíam o mesmo conteúdo, mudando apenas as partes envolvidas e o tamanho da área arrendada (quase todos inferiores a 50 hectares, somente um com 150 ha).
São acordos de arrendamento da Casa dos Ventos (Araripina e Santa Filomena, em Pernambuco, e João Câmara e Parazinho, Rio Grande do Norte), EDP Renováveis (Florânia/RN), Renova Energia (Caetité/BA) e Companhia Valença Industrial – CVI (CPFL), em João Câmara/RN.
O período de vigência varia de 27 a 49 anos, com prorrogação automática e sem previsão de revisão. Os prazos acompanham os de outorga da Aneel para operação dos parques, mas a prorrogação automática sem revisão é apontada pelos autores do relatório como limitantes para os donos da terra.
Questões como ausência de correção monetária anual, juros e multa por atraso no pagamento das mensalidades são recorrentes. Assim como a cobrança pela prestação de assessoria jurídica.
Desses 12, só os contratos da Casa dos Ventos em Araripina (PE) e João Câmara (RN) estabeleciam juros de mora por mês de atraso do pagamento das mensalidades aos proprietários, por exemplo.
Segundo a empresa, os documentos listados possuem mais de uma década e os empreendimentos já foram vendidos há mais de seis anos.
O da EDP Renováveis, em Florânia, também não está mais com a companhia. A agência epbr teve acesso ao documento assinado em 2011, mas a EDP informa que não tem contratos vigentes na região mencionada.
Cláusula de sigilo e pouca informação
O sigilo imposto nos contratos é apontado como um complicador. Os arrendantes – pessoas que cedem a terra para os empreendimentos – ficam isolados e não se comunicam entre si por medo de descumprirem o acordo que impõe sigilo.
Como pesquisador da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o advogado Rárisson Sampaio acompanha o desenvolvimento de projetos na região de Santa Luzia, conhecida como Seridó Paraibano.
“Há uma desmobilização da comunidade. Eles não conseguem se articular. Parte da população se vê restrita de poder divulgar os termos contratuais, porque temem perder a renda”, observa.
Everaldo Andrade, liderança sindical do município de Cuité, na Paraíba, conta que tem feito um trabalho de orientação com os agricultores, e percebe que há uma falha na comunicação das empresas com os donos das terras.
“Muitos estão sendo prejudicados, porque arrendam [mais de 50% da terra] e perdem acesso ao CAF (cadastro de agricultura familiar) e INSS. Olhando alguns contratos, a gente viu que essas informações não foram passadas para os agricultores”, relata.
Em 2022, o assentamento de Brandão, em Cuité, recusou uma oferta de uma empresa de energia para arrendamento de suas terras para instalação de torres de geração eólica depois de analisar os termos do contrato.
A proposta, que inicialmente parecia tentadora, acabou se revelando uma ameaça ao modo de vida e produção local.
O povoado produz hortaliças, milho e feijão nos assentamentos Brandão I e II, com 700 hectares cada. Caso decidisse pelo arrendamento de suas terras – inicialmente a oferta era para 100%, depois foi para 50% – receberia R$ 13 por ano por hectare, em um contrato de 49 anos. O valor seria dividido entre as 27 famílias que vivem no local.
“Não tem vantagem nenhuma para nós. Não somos contra as energias renováveis, somos contra a forma que está sendo implantada”, comenta Everaldo Cassiano da Costa, presidente do assentamento Brandão I.
Assistência jurídica
Outro ponto identificado pelo levantamento do Inesc é que, quando essas comunidades recebem assistência jurídica, ela é fornecida pelas próprias empresas que estão arrendando a terra – com desconto nas mensalidades pagas pelo arrendamento.
“Como a comunidade vai manifestar seu interesse legítimo se quem está esclarecendo ela é o advogado da empresa?”, questiona Sampaio.
Para o Inesc, as vulnerabilidades destas populações, com baixos níveis de renda e escolaridade, as tornam alvos fáceis para a exploração.
“O racismo estrutural contra negros, indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, que sempre foram marginalizadas dos espaços de debate e decisão, agora se perpetua em um modelo injusto, que garante lucro para poucos no grave contexto das mudanças climáticas”, avalia o assessor político do Inesc Cássio Cardoso Carvalho.
Desafio da transição justa
A indústria eólica está em alta no Brasil. A fonte responde por cerca de 11,8% de toda a oferta de eletricidade no país e a tendência é ampliar ainda mais sua participação na matriz nacional.
Em maio de 2023, os parques eólicos acumulavam uma capacidade instalada de 26 gigawatts (GW), com 900 usinas instaladas, de acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Desse total, 85% estão na região Nordeste, que concentra 93,6% da capacidade eólica.
A Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica) estima que, até 2028, o Brasil terá 44,78 GW de capacidade instalada de geração a partir dos ventos.
Novas energias como as eólicas offshore e produção de hidrogênio verde – que usa eletricidade renovável para eletrólise – colocam mais pressão sobre a forma como essa expansão do parque renovável brasileiro será feita, uma vez que se discutem políticas públicas para incentivar o desenvolvimento do setor.
Elbia Gannoum, presidente executiva da Abeeólica, afirma que mantém diálogo com as comunidades em busca de uma transição justa.
Para isso, a associação desenvolveu um plano de ação, olhando tanto para os problemas mais antigos quanto para o presente.
“A atividade eólica no Brasil é razoavelmente nova e, no início, não se tinha conhecimento nem dos seus impactos. A partir de 2014, com a resolução Conama, essa regulamentação ficou mais forte. E os parques mais recentes não estão mais apresentando tantos problemas”, comenta a executiva.
“O nosso plano de ação é buscar soluções para o passado e fazer um presente muito melhor com esse olhar de transição energética justa”, completa.
À epbr, Gannoum defende ainda que, no Brasil, a transição energética tem condições de ser justa por natureza.
“O Brasil tem muitos recursos renováveis como eólica e solar, tem potencial muito grande para desenvolver essas fontes e elas trazem muito PIB para o país, geram muito emprego e renda”.
Levantamento (.pdf) da associação estima que, cada R$ 1 investido em eólica rende R$ 2,9 para o PIB nacional.
Contratos mais justos
Para dar mais segurança às comunidades que arrendam suas terras, o relatório do Inesc traz algumas recomendações, entre elas, o acompanhamento e fiscalização das negociações e dos contratos pela Aneel e pelo Ministério Público.
“É preciso debater e discutir a forma como a transição vem se materializando no Brasil, para que, de fato, possamos erradicar a pobreza e injustiça energética, além de descarbonizar nossas matrizes”, defende Carvalho, assessor do Inesc.
Para equilibrar os interesses de empresas e comunidades, sugere ainda a criação de mecanismos de arbitragem para revisão de cláusulas contratuais excessivamente onerosas em direitos e obrigações, além de salvaguardas contratuais com parâmetros definidos sobre valores pagos pelo uso da terra na geração de energia.
O que dizem as empresas
Casa dos Ventos
“A Casa dos Ventos informa que elabora seus contratos de arrendamento seguindo as melhores práticas, com transparência e alinhada às boas regras de compliance. A empresa enfatiza que seus contratos jamais tiveram previsão de multas e reitera seu compromisso com o desenvolvimento social e com a sustentabilidade dos territórios onde atua. Reforça que vai além das contrapartidas determinadas por lei realiza uma série de investimentos socioambientais, viabilizando programas em quatro pilares: educação e cultura; desenvolvimento humano e lazer; segurança hídrica e saneamento; fortalecimento da pecuária e da agricultura familiar..”
Renova Energia
“A Renova Energia vem desenvolvendo e construindo, há mais de 15 anos, diversos projetos de energia renovável, em especial geração de energia eólica, em todo o país e sempre primou pela transparência e respeito junto às comunidades do entorno de seus projetos.
Nossos contratos de arrendamento seguem a prática jurídica recomendada e se adequam às características dos projetos de energia eólica – longo prazo, preservação do uso original da terra, remuneração atrelada a instalação de estruturas do projeto e em linha com o mercado (podendo ser fixa por aerogerador ou variável – % sobre as receitas do aerogerador), além de fomentarmos e financiarmos a regularização fundiária.
Os contratos são instrumentos privados e protegidos com confidencialidade, sendo firmados de livre vontade entre as partes, não sendo obrigatórios ou vinculados a qualquer instituição pública.
Cabe ressaltar que a energia eólica compõe mais uma opção de geração de renda na propriedade rural, não impede a continuidade da exploração agropecuária e atua, na verdade, reduzindo a vulnerabilidade socioeconômica.”
EDP Renováveis
“A EDP Renováveis não tem contratos vigentes com proprietários em Florânia, no Rio Grande do Norte”.
CPFL
“A CPFL Renováveis informa que cumpre toda a regulação aplicável ao setor para geração de energia eólica.”