“É preciso avançar sim, mas também é preciso evitar repetir erros do passado”, por Bruno Armbrust

Citygate (ponto de entrega de gás) da Compagas, distribuidora de gás natural do Paraná; Rede de gasodutos nas cores amarela e vermelha, com trabalhador realizando inspeção; veste uniforme azul e capacete branco (Foto: Divulgação)
Citygate (ponto de entrega de gás) da Compagas (Foto: Divulgação)

Por Bruno Armbrust

A Constituição Federal de 1988 conferiu aos estados o direito de explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de distribuição de gás canalizado. A inclusão desse parágrafo na constituição foi um divisor de águas no setor.

Antes de 1988, existiam praticamente duas distribuidoras de gás estruturadas no país: a CEG, no Rio de Janeiro, e a Comgás, em São Paulo. Nos demais estados a Petrobras fornecia gás canalizado diretamente a algumas poucas e grandes indústrias por meio de dutos dedicados, sem passar pelas redes de distribuição.

No Rio, apesar da presença da CEG, isso também ocorria; a Petrobras disputava com a CEG a distribuição de gás, sendo que os volumes distribuídos pela Petrobras superavam os da CEG, que ficava restrita aos consumidores industriais de médio e pequeno porte e aos mercados residencial e comercial.

Tal situação, somada a presença do estado na gestão do negócio, limitou durante anos a capacidade de expansão da distribuição no Rio de Janeiro que se viu envolto numa disputa entre a CEG e a Petrobras pela distribuição do gás. Chegou-se ao absurdo das duas construírem, concomitantemente, dutos de distribuição de gás na disputa pelo fornecimento a uma mesma indústria. Não bastasse essa situação, esse quadro se agravava ainda mais pelo fato de a Petrobras, em alguns casos de fornecimento de gás direto aos seus clientes, praticar condições mais vantajosas do que praticava para a CEG. Depois de longas negociações, essa situação se viu solucionada em 1997 pouco antes da privatização da distribuição no Rio.

Passados mais de 20 anos, o mesmo modelo que gerou grandes conflitos no passado, ressurge agora com outra roupagem com a justificativa de que alavancará grandes investimentos. O modelo de distribuição de gás que muitos preconizam agora, tem algumas características que se assemelham às que geraram uma longa disputa entre a CEG e a Petrobras pela distribuição de gás e que foram muito prejudiciais ao setor. A experiência do passado nos mostra que esse não é o melhor caminho.

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A partir da constituição de 1988, o setor de distribuição de gás começou a se organizar com os estados constituindo suas concessionárias de distribuição. A Petrobras pouco a pouco foi deixando de distribuir gás diretamente aos grandes clientes e transferindo seus ativos de distribuição para as concessionárias estaduais. Como medida compensatória, ela passou à condição de acionista minoritária nessas distribuidoras por meio de sua subsidiária Gaspetro.

Em 1997, ocorreu um novo e importante marco no setor, que foi a realização no Rio de Janeiro do primeiro leilão de concessão de distribuição de gás no país. O leilão foi cercado de enorme interesse de grupos internacionais e o consórcio vencedor ofereceu um ágio de 75%. O valor do lance vencedor pelas duas áreas de concessão foi de US$ 576 milhões à época, e superou todas as expectativas iniciais.

Nos anos seguintes, o governo de São Paulo fez o mesmo, obtendo um êxito ainda maior com um modelo onde ofertou, além da área metropolitana, duas áreas tipo “green field,” tendo apurado US$ 1,4 bilhão com as três áreas. Somente com as duas áreas “green field” arrecadou US$ 441 milhões.

Os estados do Rio e São Paulo, que por meio de suas concessionárias de distribuição atendiam por ocasião das privatizações pouco mais de 700 mil clientes com um consumo total de cerca de 4 milhões de m3/dia de gás, deram um grande salto pós privatização. Ao longo das últimas duas décadas esses dois estados alcançaram cerca de 3,5 milhões de clientes e um volume de vendas anual de 40 milhões de m3/dia, sendo 20 milhões só no mercado convencional o que só foi possível a partir de expressivos investimentos na expansão das redes de distribuição.

A privatização não só beneficiou os estados pela significativa arrecadação com a venda das concessões, como também toda a sociedade foi beneficiada com a expansão dos serviços de distribuição do gás canalizado e a melhora na qualidade dos serviços.

Muitas indústrias, que consumiam óleo combustível, tiveram suas caldeiras e fornos convertidos para o gás natural. Residências e comércios substituíram os botijões de GLP por gás canalizado garantindo maior segurança e conforto. Novos outros usos ganharam espaço como o veicular, cogeração, climatização e geração termelétrica. A privatização da distribuição de gás contribuiu significativamente para o desenvolvimento econômico desses dois estados.

Passadas mais de duas décadas, Rio e São Paulo terão que começar a pensar na renovação dos atuais contratos de concessão ou na realização de novas licitações para um novo ciclo contratual. Outros estados, ainda que tardiamente, começam a considerar a possibilidade de privatização de suas concessionárias de distribuição de gás.

Mudanças no marco legal do gás, algumas já ocorridas e outras em curso, sem dúvida contribuirão para introduzir um regime de concorrência no setor do lado da oferta de gás. Outras, no entanto, tem algum potencial de gerar conflitos o que não seria positivo e poderiam voltar a gerar situações de privilégios de uns poucos consumidores como já ocorreu no passado.

A nova Lei do Gás poderá ser um novo divisor de águas mas precisará encontrar uma indústria de redes (distribuição e transporte) forte e com capacidade financeira para fazer frente aos novos desafios de investimento para atender novas demandas que surgirão a partir de condições mais competitivas, que se espera para o gás natural.

No entanto, o modelo que se desenha a partir do PL 6.407/2013 e da iniciativa de alguns estados, vem gerando uma certa insegurança pela possível interpretação de que grandes consumidores poderiam construir indiscriminadamente suas conexões diretamente aos terminais de GNL, UPGNs e a gasodutos de transporte, dando um sinal de incerteza e instabilidade, semelhante ao que ocorria até o final dos anos 90 com a CEG e a Petrobrás disputando o mesmo mercado de forma predatória.

Cabe ressaltar que a ausência de um regime de exclusividade na distribuição de gás, poderá acarretar não só a perda da capacidade de investimento das concessionárias, mas como efeito colateral, aqueles estados que pretendem privatizar suas concessionárias, verão reduzidos os valores de outorga caso contemplem na regulação estadual, a possibilidade de um cliente livre poder construir sua própria rede de distribuição.

Um menor volume de gás sendo movimentado nas redes de distribuição, terá como efeito, maiores tarifas de distribuição para os atuais usuários dos serviços de distribuição de gás canalizado.

A redução do ritmo da expansão das redes de distribuição poderá condenar muitos consumidores ainda sem gás a ter que utilizar substitutos energéticos muitas vezes mais caros, poluentes, inseguros e menos eficientes.

Não podemos ancorar o crescimento do mercado de gás futuro a partir de um modelo com centenas de carretas de GNL percorrendo as rodovias brasileiras para atendimento a clientes pontuais e  alguns poucos e grandes consumidores com gasodutos dedicados, se beneficiando de um gás mais barato sem contribuir para a expansão das redes e para a modicidade do sistema sob o risco de vermos um novo ciclo de estagnação na expansão do gás e a história se repetindo.

Bruno Armbrust  foi presidente do grupo espanhol Naturgy no período de 2007 a 2019 e é atualmente sócio da ARM Consultoria, que presta consultoria para comercializadoras e distribuidoras de gás

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