A desverticalização da atividade de transporte de gás natural, considerada um dos principais mecanismos para o incentivo à concorrência e ao aumento da produção do gás no país, vem sendo amplamente discutida entre os agentes do setor, desde o programa “Gás para Crescer”, lançado em 2016, até o advento na Nova Lei do Gás (Lei 14.134/2021), publicada em abril deste ano.
Esse instituto era tratado pela Lei do Gás anterior apenas sob o aspecto jurídico, que basicamente estabelecia que as empresas transportadoras não poderiam exercer outras atividades da cadeia do setor, além da atividade de transporte.
No entanto, não havia nenhuma blindagem, do ponto de vista societário e funcional, que efetivamente conferisse a independência e autonomia necessária das transportadoras para a inibição do conflito de interesses e práticas anticompetitivas em relação aos demais agentes concorrenciais da cadeia.
Durante os últimos anos, a desverticalização (unbundling, em inglês) passou por uma evolução regulatória no país, que teve início com a previsão introduzida pelo Decreto 9.616/18 de que caberia à ANP fixar os critérios de autonomia e independência a serem aplicados às transportadoras, até ser incorporada à Nova Lei do Gás, o que trouxe segurança jurídica para todas as iniciativas precedentes.
O Artigo 5º da mencionada Lei estabeleceu o unbundling das transportadoras sob o aspecto jurídico, societário e funcional em relação às atividades concorrenciais da indústria (exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural).
Além disso, definiu também que as transportadoras deverão se submeter à certificação de independência a ser expedida pela ANP, dentro do prazo de três anos contados da publicação da Nova Lei do Gás ou em até dois anos contados da edição da regulação do órgão.
Dita norma já foi objeto da Consulta e Audiência Pública ANP 18/2020 e está em vias de aprovação pela agência.
Adicionalmente, foram estabelecidas na Nova Lei do Gás regras de desverticalização funcional, voltadas para os agentes concorrenciais da cadeia, em relação às distribuidoras de gás canalizado reguladas e fiscalizadas pelos estados, a fim de vedar a influência significativa dos agentes concorrenciais em relação às distribuidoras. Ditas regras foram reforçadas em seguida pelo Decreto Regulamentador 10.712/2021.
Contribuindo para este novo contexto, o Termo de Compromisso de Cessação de Conduta (TCC) firmado entre o Cade e a Petrobras em 2019 definiu o compromisso da Petrobras de alienar a suas participações acionárias em ativos de midstream (transportadoras NTS, TAG e TBG) e ativos de downstream (Gaspetro – detentora de participação em 19 das 27 distribuidoras de gás natural do país).
Com o objetivo de assegurar a desverticalização funcional das empresas durante o processo de desinvestimento, o TCC também estabeleceu que a Petrobras deveria indicar, em até seis meses de sua assinatura, Conselheiros de Administração que se enquadrassem no conceito de administradores independentes, assim definido pelas regras do Novo Mercado de Gás.
Atualmente, a NTS e a TAG já foram totalmente desinvestidas pela estatal, enquanto a TBG e a Gaspetro estão em vias de desinvestimento.
Diante das iniciativas até então tomadas, estamos na fase de transição para um mercado de gás desverticalizado.
Neste cenário, a atividade de comercialização ganha papel relevante para impulsionar o destravamento do mercado, já que tem como ponto focal a busca pela diversidade de agentes para o casamento entre a oferta e a demanda.
Além dos novos desafios para o desenvolvimento da atividade de comercialização, que passará a ser exercida por múltiplos agentes no mercado organizado, são inúmeros os ajustes e soluções que devem ser perseguidos para que seja possível alcançar os efetivos benefícios da desverticalização.
Por exemplo, o acesso não discriminatório de múltiplos agentes à capacidade de transporte e às infraestruturas essenciais (escoamento, processamento e terminais de GNL), o desenvolvimento da atividade de estocagem, a definição de regras de balanceamento do sistema de transporte, dentre outros.
Contudo, a Nova Lei do Gás já lançou as bases para o mercado organizado (mercado de balcão e de bolsa), que são os espaços físicos ou sistemas eletrônicos, destinados ao registro e transações com gás natural, o que possibilitará a criação hubs virtuais destinados à negociação e ao registro de múltiplas operações de compra e venda da molécula, por meio de contratos padronizados.
Neste ano também, a ANP iniciou as discussões para o Modelo Conceitual do Mercado de Gás na esfera de competência da União ao debaterem workshops as regras para revisão e modernização das normas infralegais que disciplinam as atividades de comercialização e carregamento de gás natural, incluindo as questões voltadas para a criação do mercado organizado de gás, com hubs virtuais de negociação e sua integração com a atividade de transporte e carregamento da molécula.
Com vistas a uma maior diversidade de agentes comercializadores, o novo marco legal também criou a figura da Entidade Administradora de Mercado de Gás Natural, que terá papel fundamental para a coordenação dessa atividade, garantindo o registro das operações, transparência dos preços e volumes comercializados, dentre outros.
Tais entidades deverão previamente firmar acordo de cooperação técnica com a ANP, que, então, receberá dessas entidades as informações acerca das transações concluídas, visando diminuir o custo regulatório dos comercializadores.
Nesse ambiente, já é possível notar o interesse de diversos agentes da indústria pela atividade de comercialização: de acordo com os dados atualizados pela ANP em 8/9/21, já são 149 agentes comercializadores autorizados pela agência.
Este cenário demonstra que, apesar de tantas metas ainda a serem alcançadas, temos a perspectiva de investimentos na atividade por diversos players, o que resultará em benefícios importantes para o desenvolvimento do setor, tais como transparência de preços, competição gás-gás, competição entre combustíveis, segurança de suprimento e a liquidez para o mercado de gás.
Maria Carolina Priolli é advogada da área de Petróleo, Gás & Offshore do Vieira Rezende Advogados. O escritório Vieira Rezende Advogados representa empresas do setor de petróleo e gás.
Este artigo expressa exclusivamente a posição da autora e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculada.
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