Energia

Descarbonização – não há tempo a perder

Carlos Peixoto escreve como, ao longo da história, exigências da vida civilizada demandaram intervenções regulatórias e pesados investimentos públicos

Descarbonização – não há tempo a perder. Na imagem: “Tigreiros”; Litografia de Henrique Fleiuss, Semana Ilustrada n° 05, 186. Acervo Fundação Biblioteca Nacional. No Rio de Janeiro do Brasil Império, escravizados apelidados de "tigres" eram os responsáveis pelo recolhimento e despejo de dejetos
No Rio de Janeiro do Brasil Império, escravizados apelidados de "tigres" eram os responsáveis pelo recolhimento e despejo de dejetos. (Imagem: Litografia de Henrique Fleiuss)

Precisaremos de mais energia para manter nosso estilo de vida e para proporcionar vida digna aos grandes contingentes humanos que ainda vivem com muito pouco. Viver num mundo mais civilizado demanda mais energia, mais investimentos e maiores custos, não menos.

Antes do automóvel, as pessoas e mercadorias eram transportadas em charretes ou a cavalo. Tente se imaginar naquele tempo em uma grande e rica cidade norte-americana, ou mesmo europeia, com milhares de cavalos e mulas em circulação.

Pense no acúmulo de excrementos nas ruas. Na logística e mão-de-obra requeridas para recolher, tratar, transportar e descartar a enorme quantidade de estrume, sem pensar no mal cheiro e nos problemas e custos com saúde pública.

Nesse contexto, surge o automóvel como uma grande solução. Primeiro a vapor, logo a gás combustível e depois a gasolina.

Tendo em vista os constantes acidentes fatais e os efeitos da poluição que estressava o sistema de saúde pública, os reguladores passaram a exigir a instalação de cintos de segurança, freios a disco (depois ABS), direção hidráulica etc.

Na esteira dos movimentos ambientalistas e como resposta aos problemas respiratórios e dos constantes nevoeiros poluidores nas grandes cidades, surge a exigência de instalação de catalisadores para controle de gases nos veículos, sistemas de melhoria da queima de combustível, injeção eletrônica, etanol, biodiesel etc.

Voltemos um pouco no tempo e pensemos em como os habitantes das cidades lidavam com os dejetos domésticos. Quem acordasse cedo para trabalhar, tinha que se desviar dos fluxos atirados pelas janelas nas ruas de fundos, quando não a céu aberto nas ruas principais.

As exigências da vida civilizada requereram intervenções regulatórias e pesados investimentos públicos em sistemas de esgotos e tratamento de água. E aplicação de multas a quem insistisse em descartar seus dejetos domiciliares nos espaços públicos.

O mesmo ocorreu com o lixo doméstico. Hoje, os residentes das cidades pagam pelo recolhimento, tratamento e descarte do lixo, em grandes operações logísticas que mobilizam recursos milionários nos grandes centros.

Um mundo de transições

Enquanto nós humanos vivíamos errantes como catadores e caçadores, e depois em pequenas aglomerações de camponeses, essas normas, regulamentos e custos não eram aplicáveis.

Ao passar a viver em grandes cidades, regras ambientais e de convivência exigiram mais investimentos, mais custos, ou seja, todo esse aparato organizativo na verdade aumentou as despesas das famílias. De forma que uma parte do retorno financeiro do nosso trabalho passou a ser dedicado a cobrir despesas relacionadas com viver civilizadamente.

Foram muitas as transições no passado, com suas mudanças no estilo de vida das pessoas, suas preocupações, seus custos e seus retornos. Os seres humanos vivem se adaptando às demandas ocasionadas pelas transições energéticas, mudanças no ambiente, na organização social, demandas regulatórias, enfim, as exigências de viver em forma civilizada.

A natureza vem dando sinais inequívocos da exaustão de sua capacidade de continuar reciclando nossos rejeitos. A preocupação agora são os gases do efeito estufa (GEE) despejados na atmosfera sem qualquer tratamento ou controle.

A revolução industrial resultou em vertiginoso aumento da demanda por energia, suprida maiormente por fontes de origem fóssil. Nosso estilo de vida atual tem causado grandes transformações no ambiente natural, com o constante aquecimento do planeta. As previsões científicas são de que a continuar nesse ritmo, logo começaremos a não mais poder plantar, colher, ou habitar certas áreas da Terra. De maneira progressiva.

Acompanhamos todos os dias as notícias de enchentes, incêndios, perdas de colheitas, disputas territoriais e imigração forçada, numa lista cada vez mais macabra.

E nos perguntamos: foi o mal cheiro ou o desconforto que nos fez abandonar as charretes e optar pelos automóveis? Foi a fumaça ou a tosse que nos levou a instalar os catalisadores nos carros e nas chaminés das fábricas? Foram as doenças e a mortalidade infantil que nos obrigaram a investir no saneamento básico, em vacinas e em hospitais?

Cada uma dessas mudanças exigiu das pessoas que as viveram uma nova forma de morar, de se transportar, de se relacionar com as cidades, com as demais pessoas e o estado. Exigiram maiores investimentos, custos e novas formas de organização da produção e consumo de energia.

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O senso de urgência da descarbonização

Há, hoje, um embate entre o grupo dos que defendem maior rapidez na reação dos agentes e reguladores com relação às mudanças climáticas e implementação das soluções e aqueles que preconizam uma transição mais lenta e menos radical.

Há os que propugnam por maior celeridade e rigidez na regulação, com incentivos e punições relacionadas às emissões de GEE e aqueles que, investidos nos negócios da “velha economia”, esperam que aguentemos um pouco mais.

E subgrupos cujos interesses os levam a fazer lobby e patrocinar estudos em favor dessa ou daquela tecnologia de descarbonização; ou os que pensam que ainda devemos continuar explorando e convertendo energia de origem fóssil indefinidamente.

Como se essa alternativa estivesse disponível. Como se já não soubéssemos que nosso tempo é escasso e que a cada década que perdemos, maiores serão os impactos para as gerações futuras.

Vejamos o que ocorreu na década de 1980, quando nos demos conta dos problemas causados pelo buraco na camada de ozônio — consequência da liberação de certos gases na atmosfera. Após grande esforço internacional, quase 100 produtos químicos nocivos ao meio ambiente tiveram sua produção e consumo regulados ou proibidos mediante um acordo ambiental multilateral. Toda a economia que girava em torno desses produtos sofreu modificações.

Trinta anos se passaram e recentemente a ONU divulgou relatório informando da reversão dos efeitos na camada de ozônio. Isso demonstra que é possível mudar, mesmo com custos e investimento adicionais. Basta sermos capazes de entender, explicar claramente e convencer a sociedade civil, reguladores e agentes econômicos das consequências de não implementar a tempo as ações necessárias à descarbonização da economia, por mais amargas e custosas.

Ainda bem que é cada vez maior o número de líderes internacionais — tanto no setor público como no privado, inclusive no Brasil — que entendem a urgência de ações que reorientem políticas públicas e investimentos na direção da descarbonização. Criando oportunidades de desenvolvimento e investimentos, onde alguns só conseguem enxergar aumento de custos e dificuldades.

O imperativo já não é unicamente econômico, pois a crise climática alcança níveis de não retorno. Os altos custos da transição não podem ser o vetor das decisões. Precisamos investir no escalonamento das tecnologias promissoras ou arcar com os custos de atrasar o processo.

E quanto aos fabricantes de charretes, pás e urinóis? Fosse por eles e ainda estaríamos pisando em esterco.

Carlos Peixoto é cofundador e CEO da H2helium Projetos de Energia de Baixo Carbono, membro do comitê de energia da Britcham, Câmara Britânica de Indústria e Comércio e head de marketing da CCS Brasil, Associação Brasileira de Captura de Carbono.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.

Referências

Disponível em: <pt.wikipedia.org/wiki/História_do_automóvel>. Acessado em 16/3/23

Disponível em: <http://www.siam.mg.gov.br/sla/download.pdf?idNorma=8902>. Acessado em 16/3/23

Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2023/01/1807817>. Acessado em 16/3/23