BRASÍLIA — O Ministério de Minas e Energia (MME) colocou em consulta duas portarias para regulamentar a cessão de áreas offshore para instalação de parques eólicos. Os textos são uma continuidade do decreto 10.946/2022, que deu o pontapé inicial no marco regulatório dessa nova indústria no Brasil.
Em resumo, as portarias detalham a delegação de competência à Aneel para firmar os contratos de cessão de uso; traz prazos e condições para emissão das Declarações de Interferência Prévias (DIPs), além de apontar critérios de julgamento da licitação de maior retorno econômico pela cessão do prisma.
As DIPs são uma espécie de etapa de licenciamento – uma validação em diversos órgãos se há viabilidade para instalar os parques offshore, sem comprometer outros interesses no mar.
Também propõem um balcão único de atendimento e o Portal Único de Gestão das Áreas Offshore para Geração de Energia (PUG-offshore).
“A criação do PUG atende a um anseio manifestado dos agentes e poderá dinamizar o processo autorizativo pensado para a fonte offshore”, explica Raíssa Cafure Lafranque, diretora de novos negócios e vice-presidente da EDF Renewables do Brasil.
Com uma carteira de 1,7 GW de geração eólica onshore e solar no Brasil, a francesa EDF Renewables, braço da EDF, tem planos para desenvolver projetos híbridos que combinem eólicas offshore e hidrogênio verde no país.
“É imprescindível para o desenvolvimento do offshore no Brasil uma regulamentação clara, com critérios e diretrizes bem estabelecidas para eventuais processos competitivos – quanto mais clara a definição de tais critérios se der, maior a segurança e a robustez promovida aos investimentos”, completa.
Entre os agentes do setor consultados pela agência epbr, predomina a visão de que os documentos em consulta conseguem dar respostas a questões importantes, mas algumas dúvidas ainda pairam.
Uma delas é justamente em relação aos critérios de valoração das cessões.
“Muita coisa foi deixada para a Aneel. Mantém-se a dúvida em relação ao pagamento a ser devido, que terá o critério definido pela Aneel em conjunto com MME. A portaria só traz que esse maior retorno econômico não vai ser exclusivamente financeiro”, comenta Juliana Melcop, sócia da área de Energia do Souto Correa Advogados, que representa empresas do setor energético.
A proposta é considerar também os retornos ambientais, sociais e para a cadeia de valor.
“O que faz todo sentido, mas temos que entender como eles vão ser objetivamente avaliados. Isso ainda é algo que a regulação posterior terá que trazer”, diz Juliana.
Em entrevista à epbr, ela explica que entender esses critérios é fundamental para o cálculo que o investidor faz do valor da cessão de uso na hora de planejar seu empreendimento.
A advogada também chama a atenção para o dispositivo que propõe licitações tanto para cessões independentes quanto planejadas, algo que poderia contrariar o interesse dos agentes e tornar o processo mais lento.
Na cessão independente, o agente estuda uma área e apresenta seu projeto, enquanto na planejada o governo lança uma chamada para projetos pré-selecionados.
Nesse ponto, Juliana acredita que o encaminhamento dado no PL 576/2021, aprovado no Senado no mês passado, atende melhor à indústria, já que primeiro avalia se há outras interessadas no perímetro antes de lançar a licitação.
“Acho que isso poderia ser revisto pelo ministério, e ser feito um procedimento alternativo, quando não tem mais do que um interessado. Ter um mecanismo de valoração das participações estatais para que seja decidido um valor, sem necessariamente precisar de uma licitação para aquela área”.
Já Gil Maranhão, diretor de Comunicação, Responsabilidade Social Corporativa e Carbono da Engie e responsável pela Ocean Winds no Brasil, avalia como positiva a regulamentação via decreto, na medida em que tenta aproveitar parte da legislação existente para óleo e gás na cessão de áreas, com adaptações.
“Me pareceu ser feito mais ou menos para acomodar o que já existe, isso é muito bom”.
Dos cerca de 170 GW em projetos de eólicas offshore com pedido de licenciamento no Ibama, 15 GW são da Ocean Winds. A joint venture entre a Engie e a EDP Renováveis está entre as empresas com os maiores projetos do tipo no país.
À agência epbr, o executivo afirma que as portarias contemplam o que seriam suas maiores preocupações. A maior delas era evitar a especulação com reservas de áreas por agentes sem intenção de desenvolver projetos de fato.
A forma como serão feitas as cessões, os prazos e a apresentação dos estudos seriam alguns dos aspectos capazes de criar barreiras a possíveis especuladores.
Dois caminhos destoantes
Ao redor do mundo, a eólica offshore avança com leilões. Já o Brasil tenta dar seus primeiros passos com o decreto 10.946/22, em fase de regulamentação. Paralelamente, o Congresso Nacional analisa o PL 576/21, do senador Jean Paul Prates (PT/RN).
“Durante as discussões do PL e do decreto, houve pontos de similaridade, como a possibilidade de aproveitamentos que são iniciados por agentes privados ou pelo governo; ou o que fazer quando múltiplos agentes querem uma determinada área. Mas esses dois caminhos [PL e decreto] têm pontos destoantes”, comenta Emilio Matsumura, gerente no Brasil da BlueFloat, empresa que também soma quase 15 GW em projetos com pedidos de licenciamento no Ibama.
Na terça (13/9), o executivo participou com a Abeeólica de um webinar promovido pela FGV Ceri sobre mecanismos de contratação e os modelos de negócio para os ventos offshore.
“Por exemplo, no PL, entre os critérios para selecionar um projeto vencedor para determinada área, se manteve a tarifa de eletricidade. Nessa fase do projeto, tem muita incerteza para o tomador de decisão fazer um compromisso em relação à tarifa de energia. Isso torna o processo mais complicado em relação aos demais parâmetros”, avalia.
Na visão do executivo, o texto do governo está mais alinhado com as experiências internacionais, um ponto que é importante para atrair investidores de diferentes partes do mundo.
Pressa na regulamentação
A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) calcula que o potencial eólico offshore do Brasil pode chegar a 700 GW. Com mais de uma alternativa na mesa – e Executivo e Legislativo sem um acordo –, a aposta da Abeeólica (Associação Brasileira de Energia Eólica e Novas Tecnologias) está no que promete ser a solução mais rápida: a regulamentação do decreto.
“O Brasil enquanto política de Estado deve se posicionar melhor nessa corrida da transição energética. Sua potencialidade é grande, mas temos percebido outros países que também têm potencial, como Chile, no hidrogênio verde, a Noruega, com seus investimentos em renováveis, a Austrália, e países da África”, comenta Elbia Gannoum, presidente da Abeeólica.
A associação está discutindo as portarias com os associados e considera que grande parte do que está posto veio de sugestões do setor.
“Tem alguns ajustes que pretendemos fazer, mas ela trata de duas questões cruciais: como será o leilão da cessão do uso do mar, e cria o balcão único, que é algo que o setor vinha pedindo”.
Elbia também defende que entre a cessão planejada e a independente, a segunda seja prioridade.
“Na minha opinião, essas cessões têm que sair principalmente da independente. Não acho que faça sentido o governo gastar dinheiro e tempo mapeando áreas que o setor privado já mapeou”.
Isso agilizaria as cessões, já que o setor privado já está indicando as áreas, acrescenta.
Pelas contas da Abeeólica, com a portaria sendo regulamentada até novembro, no primeiro quadrimestre do ano que vem o país já tem condições de fazer um leilão de cessão, estar pronto para um PPA (contrato de negociação de energia em longo prazo) no início de 2026 e ter os primeiros empreendimentos prontos no final da década.
Outras preocupações
Há ainda que conciliar diferentes interesses. A indústria de óleo e gás, por exemplo, está de olho nos projetos eólicos como solução para descarbonizar sua produção, eletrificando plataformas do pré-sal, por exemplo.
Outra demanda do O&G é a realização de leilões de energia específicos no mercado regulado vinculada às cessões. Proposta que não tem consenso entre os geradores de energia e que é rejeitada pela portaria 685/22.
O papel da EPE, como responsável na cessão planejada por fazer os estudos de áreas e analisar os pedidos na cessão independente, definindo as regras de sobreposição, por exemplo, também levanta questionamentos, por ser um desafio que exigiria dezenas de milhões de dólares por estudo para decisão de investimento.