Biocombustíveis

Como comprometer o primeiro mercado regulado de carbono do Brasil

Não será retirando força do RenovaBio – ou com a implantação atropelada do MBRE – que construiremos uma política para mitigação e adaptação às mudanças do clima, escreve Edson Rodrigo Toledo Neto

Energia é principal fonte de emissão de capitais brasileiras. Na imagem: Fumaça escura, de emissões poluentes, saindo dos escapamentos de dois caminhões (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

A Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio) foi instituída pela lei 13.576/2017 e tem por objetivo estimular a eficiência produtiva e a redução das emissões de gases de efeito-estufa (GEE), contribuindo para o alcance das metas brasileiras no Acordo de Paris, bem como aumentar a oferta e a participação dos biocombustíveis na matriz energética brasileira.

Trata-se do primeiro mercado regulado de crédito de carbono do Brasil, operando sob a lógica de formação de um mercado organizado de certificados de descarbonização (CBIO), lastreado pelo conteúdo de carbono dos biocombustíveis.

Baseia-se em três instrumentos principais: metas anuais de redução da intensidade de carbono (gCO2eq/MJ) da matriz de combustíveis de transporte para um período de 10 anos; certificação de biocombustíveis por meio da Nota de Eficiência Energético-Ambiental (NEEA); e um mercado de CBIOs.

Quando analisamos os objetivos do RenovaBio, o primeiro e o segundo objetivos são de natureza ambiental; e o terceiro e quarto, de natureza setorial. No entanto, há um descasamento destes dois eixos (ambiental e setorial) com políticas de Estado mais amplas.

No caso ambiental, não há ainda uma definição de qual seria a contribuição ideal de cada setor da economia para a redução das emissões, de forma a alcançar os compromissos do Acordo de Paris da maneira mais eficiente e com menor impacto social.

Integração de políticas climáticas

Os estudos Opções de Mitigação em Setores-Chave da Economia e o PMR Brasil foram os únicos a tratar sobre o tema no governo federal.

No entanto, o RenovaBio foi aprovado em lei e parcialmente regulamentado antes dos resultados destes estudos, que possibilitassem uma análise de custo-benefício das alternativas e inserção em programas intersetoriais.

No caso dos objetivos setoriais, o RenovaBio não está inserido em uma política industrial mais ampla, o que o torna: mais sujeito a sinais contraditórios ao interagir com outras políticas e mais vulnerável ao lobby setorial.

Na prática, não houve uma análise prévia das alternativas que pudessem lograr resultados transversais ao menor risco de forma integrada, com ganhos de escala sob os aspectos ambientais e setoriais. Percebem-se nítidos resultados no setor sucroenergético, mas não disseminados nos demais setores.

Ainda sob o aspecto da implementação do RenovaBio, a governança na definição das metas de aquisição de CBIOs pelos distribuidores de combustíveis é atribuída ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) a partir de recomendação do Comitê do RenovaBio, respaldado pelo Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM).

Nesse sentido, o Ministério de Minas e Energia (MME) e a Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP) construíram, sob a tutela do CNPE, toda a regulação necessária.

Sob o aspecto microeconômico, o mercado de CBIO é marcado por um número de ofertantes (>400) superior ao número de demandantes (<200) e as emissões equivalentes totais, consideradas para efeito de fixação das metas, oriundas dos combustíveis fósseis líquidos, que totalizaram 204,06 megatoneladas de CO2eq (MtCO2eq) em 2021, o que denota a “pegada de carbono” do setor de transporte.

Interferência no mercado de CBIO

Ao colocar uma lupa sobre as metas, na vera mesmo, somente irrisórios 17,6% da pegada é de fato compensada pela meta de aquisição de 35,98 milhões de CBIOs, prevista para 2022.

Portanto, a contribuição para o Acordo de Paris do setor de óleo e gás (upstream), refino e distribuição (downstream) ainda é muito limitada, deixando a descoberto de medidas compensatórias cerca de 168,1 MtCO2eq, que deveriam ser compensadas, por exemplo, por compras no mercado voluntário de créditos de carbono de forma a atingir o status net-zero em carbono do setor.

A previsão de entrada em operação de cerca de 50 plantas de etanol (milho e cana) dão uma dimensão do que vem por aí. Excesso de oferta de CBIOS.

Se o MME já vê dificuldade em avaliar o que de fato se passa no atual boom de preços do CBIO, talvez precise olhar mais para sua capacidade de desenvolver inteligência de mercado.

A meta de 35,98 milhões de CBIOs representa uma redução de 27,8% em relação à meta anteriormente projetada para o mercado em 2019.

O preço médio do CBIO, em 2020, foi de R$ 33,32/CBIO e, em 2021, foi de R$ 34,77/CBIO. Em 2022, o preço médio se elevou para R$ 106,97/CBIO.

A partir da edição do decreto 11.141, de 21 de julho de 2022, houve a postergação da meta de 2022 para 30 de setembro de 2023, resultando na redução repentina do preço spot do CBIO de R$ 209,50/CBIO, em 30/06/2022, para R$ 90,63/CBIO, em 19/08/2022, conforme dados da B3.

Intervenções do tipo podem comprometer os resultados do RenovaBio ou sinalizam um alerta para a necessidade de novos instrumentos de regulação que obedeçam a uma lógica de mercado.

RenovaBio e o mercado regulado de carbono

Sob o aspecto de política de clima, o RenovaBio teve uma ascensão meteórica não só pela rápida aprovação legislativa, mas também pela alta adesão setorial.

A mesma história meteórica talvez se repita com o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), regulamentado pelo decreto 11.075, de 19 de maio de 2022, dado o manifesto apoio de setores industriais e dos mercados financeiro e de capitais.

Entretanto, a mesma ausência de uma análise mais sistêmica e integrada, seja com o RenovaBio, seja com a Política Nacional de Mudanças do Clima (PNMC) ainda persiste.

O MBRE é uma sinalização importante no sentido de se estabelecer um preço para as externalidades negativas da mudança do clima, mas que, nitidamente, é extemporâneo, pois não aguardou as discussões em curso no Congresso Nacional sobre o tema e demonstra relativo amadorismo do Ministério do Meio Ambiente (MMA).

O decreto regulador do MBRE nem mesmo cita o RenovaBio e tão pouco define uma entidade governamental reguladora, bem como não aponta os mecanismos de funcionamento do MBRE, o que coloca o MMA e relativa desvantagem em relação ao MME no desenvolvimento de instrumentos do gênero.

Outra questão relevante é a opção pela solução de mercado para a precificação de carbono, que embute uma armadilha, definida pela forte flutuação que os créditos de carbono podem alcançar.

Caso os aprendizados de três ciclos do mercado de carbono europeu (Emissions Trade Scheme – ETS), encerrados em 2020, não sejam assimilados, recairemos sobre o velho princípio do path dependece, no qual erros do passado continuarão a ser cometidos no futuro, desnecessariamente.

Os preços de carbono no ETS atingiram valores fora do comum nos últimos meses, alinhados à evolução dos preços da energia elétrica e preços do petróleo após o início da Guerra da Ucrânia.

O mesmo movimento pode ter provocado a elevação de preços do CBIO e, possivelmente, não uma manipulação de preços por parte dos usineiros de etanol e biodiesel, como entidades de classe do downstream apregoaram.

Entretanto, vale destacar que o MBRE é a opção que confere maior flexibilidade aos agentes obrigados (regulados) e tem o apoio do Centro Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS).

O Projeto PMR Brasil recomendou sua instituição ancorada na gestão ministerial, dentre os integrantes do CIM, com estreita participação privada nos processos de revisão e suporte técnico à tomada de decisão, verificação dos inventários de emissão de GEE, planos de monitoramento e operação da plataforma eletrônica de transação.

Outro ponto relevante para instituição do MBRE é a definição regulatória do ativo “certificado de carbono”.

A posição atual do Banco Central do Brasil (BCB) e Comissão de Valores Mobiliários (CVM) é no sentido de reconhecê-lo como uma commodity, assim identificado para no caso do CBIO. Contudo a Lei 12187/2009, que instituiu a PNMC, o reconhece em seu Art. 9º como “título mobiliário” indo de encontro ao posicionamento desses órgãos reguladores.

Portanto, não será retirando força do RenovaBio ou promovendo uma implantação atropelada do MBRE que construiremos uma política de Estado para mitigação e adaptação às mudanças do clima.

Vale repensar erros e acertos da precificação de carbono ao redor do mundo e buscar uma integração de políticas públicas e não a perpetuação da fragmentação das ações relacionadas ao tema, sob pena de pagarmos um custo desnecessário por falhas de governo.

Edson Rodrigo Toledo Neto é Doutorando em Economia (UnB), Sócio-Conselheiro da Green Bonds Brasil, fintech que presta serviços de precificação e monetização de carbono e Servidor afastado do Ministério da Economia.