Opinião

Reforma regulatória do GLP na Argentina reforça liberdade de mercado, mas preserva a lógica da marca

Decreto elimina controle estatal sobre preços e autorizações no mercado de gás de botijão, mas mantém rastreabilidade por marca como pilar logístico da cadeia, escreve Fabrício Duarte

Fabrício Duarte é o diretor executivo da Associação Internacional de Gás Liquefeito de Petróleo — AIGLP (Foto Divulgação)
Fabrício Duarte é o diretor executivo da Associação Internacional de Gás Liquefeito de Petróleo — AIGLP (Foto Divulgação)

O Decreto 446/2025, publicado no último dia 3 de julho pelo Poder Executivo argentino, introduziu uma transformação significativa no marco regulatório do mercado de gás liquefeito de petróleo (GLP).

A medida representa um avanço rumo à liberalização da cadeia de valor — enchimento, comercialização e distribuição — com forte ênfase na simplificação burocrática e ampliação da concorrência.

O novo regime substitui o modelo estabelecido pela Lei 26.020, de 2005, que instituiu uma regulação estatal intensa sobre o setor. A proposta do governo Milei é clara: reduzir a intervenção pública aos aspectos de segurança e fiscalização técnica, atribuindo ao setor privado a responsabilidade operacional e comercial.

Ainda assim, mesmo em um ambiente de mercado aberto, um princípio permanece inalterado — a obrigação da marca, estampada no corpo do cilindro, continua sendo pilar organizador da indústria de GLP.

Desregulação com foco na eficiência

A principal diretriz do Decreto 446/2025 é a eliminação de barreiras à entrada de novos agentes. A obrigatoriedade de autorização prévia para operar no setor deixa de existir: basta a apresentação de documentação compatível com a regulamentação vigente.

Caso não haja manifestação contrária da Secretaria de Energia em até 10 dias úteis, considera-se concedida a autorização, aplicando-se o princípio do “silêncio administrativo positivo”.

Além disso, foram eliminadas exigências como o parque mínimo de 50 mil vasilhames para se credenciar como distribuidor.

Isso viabiliza a entrada de novos operadores, inclusive de menor porte, com o que o regulador acredita poder estimular, potencialmente, uma eventual descentralização e talvez a redução da concentração de mercado. 

Livre formação de preços e acesso à oferta

A nova normativa extingue os mecanismos de preços de referência e as cotas de aquisição de GLP junto às produtoras, transferindo à livre negociação entre as partes a definição de preços e volumes.

A expectativa do setor é que os valores passem a refletir mais fielmente as cotações internacionais, como as praticadas no hub de Mont Belvieu, nos EUA.

Também foi autorizada a importação de GLP sem necessidade de anuência prévia, bastando o cumprimento da regulamentação vigente. Já a exportação segue liberada, desde que respeitado o abastecimento interno — e, se não houver objeção oficial em até sete dias após a notificação, será automaticamente autorizada.

A marca como estrutura da logística e segurança

Apesar do corte profundo na intervenção estatal, a exigência de que o distribuidor possua uma ou mais marcas registradas foi mantida. Além disso, cada vasilhame deve conter identificação clara da planta envasadora, garantindo rastreabilidade.

O novo marco permite, ainda, que distribuidores operem com GLP de qualquer produtor, podendo envasar para diversas marcas, inclusive por meio de contratos bilaterais com outros distribuidores.

Isso amplia a flexibilidade operacional sem desmontar o sistema de logístico baseado na marca, reconhecido como essencial para manter padrões mínimos de rastreabilidade, segurança e atendimento ao consumidor.

Centros de destroca: da obrigatoriedade à voluntariedade

Outro ponto de flexibilização importante é o tratamento dado aos mecanismos de troca de vasilhames.

O decreto reconhece a liberdade dos agentes para definir se participarão de centros de destroca específicos ou de soluções equivalentes, desde que aprovadas pela autoridade de aplicação.

Na prática, legitima-se o modelo já utilizado por várias empresas, com destrocas diretas entre marcas.

Um novo paradigma com inspiração brasileira

O Decreto 446/2025 estabelece um novo modelo para o GLP argentino: menos burocrático, mais ágil e voltado à eficiência de mercado. No entanto, essa transformação não foi construída do zero.

O texto legal e os princípios adotados demonstram clara inspiração no modelo brasileiro, especialmente em dois aspectos estruturantes:

  1. A não obrigatoriedade de centros de destroca centralizados: o sistema brasileiro, baseado na responsabilidade individual das marcas e na possibilidade de acordos operacionais entre empresas, serviu como referência para a flexibilidade regulatória adotada agora pela Argentina.
  2. A manutenção da obrigatoriedade de marca nos vasilhames: assim como no Brasil, a Argentina optou por preservar a marca como base para controle logístico, responsabilidade civil e garantia de rastreabilidade e segurança ao consumidor.

Essa inspiração no modelo brasileiro — consolidado ao longo de décadas como eficaz e funcional — demonstra que, mesmo em um governo orientado pela desregulamentação, há o reconhecimento de que certas estruturas são fundamentais para a operação saudável do setor.

A liberdade de mercado pode e deve coexistir com mecanismos que assegurem previsibilidade, confiança e segurança para os consumidores e agentes da cadeia de abastecimento.

Com essa reformulação, a Argentina dá um passo relevante rumo à modernização do seu setor de GLP, ao mesmo tempo em que adota boas práticas internacionais que combinam liberalização com fundamentos operacionais sólidos.


Fabrício Duarte é o diretor executivo da Associação Internacional de Gás Liquefeito de Petróleo (AIGLP). Tem mais de 30 anos de experiência em gestão pública e privada, e com forte atuação em relacionamento institucional no Brasil e na América Latina.

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