RIO — Jair Bolsonaro (PL) voltou a interferir na Petrobras, ao demitir o presidente da estatal, José Mauro Coelho — no cargo há cerca de 40 dias apenas. Caio Paes de Andrade será o quarto comandante da petroleira em pouco mais de um ano. Os antecessores todos caíram após contrariarem o presidente da República com reajustes nos preços dos combustíveis.
Ao longo das recorrentes crises políticas sobre os preços, Bolsonaro já disse que não manda, nem tem ingerência sobre a Petrobras; e que “não podemos estar subordinados às decisões do conselho [de administração da estatal], que está abaixo obviamente de leis e da própria Constituição”.
Mas, afinal, que poder o presidente da República pode exercer, de fato, sobre os preços dos derivados praticados pela empresa?
A seguir, a agência epbr recorre à legislação e posicionamento dos órgãos de controle, na tentativa de clarear este que é um dos debates mais quentes da corrida eleitoral de 2022.
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Quem manda na Petrobras?
O poder do presidente da República sobre os preços dos combustíveis — e sobre a gestão da companhia, de uma forma geral — é indireto.
O sócio da BMA Advogados, José Guilherme Berman, explica que a Petrobras, como sociedade de economia mista, integra a Administração Pública indireta. Não tem, portanto, uma relação de subordinação direta à União, como o Ministério de Minas e Energia, mas o controlador exerce influência sobre a empresa, via conselho de administração (CA) e assembleias de acionistas.
A Petrobras é controlada pela União, mas tem ações negociadas na B3 e em Nova York. Ao todo, cerca de 720 mil acionistas pessoas físicas têm ações da petroleira. Fundos de investimentos também têm milhões — quando não bilhões — de reais e dólares investidos na empresa.
Embora a União tenha 50,3% das ações com direito a voto, a maior parte do capital total — 63,39% — está nas mãos de investidores brasileiros (18,9%) e estrangeiros (44,49%).
Essa composição acionária cria, em alguns momentos, conflitos de interesse na gestão da empresa.
“A sociedade de economia mista tem um pecado original. Ela exerce atividades de interesse público que, nem sempre, são contrários ao interesse dos acionistas minoritários. Mas às vezes são”, comenta Berman.
O controle exercido pela União dá direito ao governo de contar sempre com a maioria das cadeiras do conselho da Petrobras e de ter posição dominante nas discussões das assembleias de acionistas — onde ocorrem a eleição dos membros do CA e deliberações sobre reformas no estatuto social e sobre aumentos de capital, por exemplo.
Mas o que cabe ao conselho?
A definição dos preços dos combustíveis, no dia a dia, é uma missão da diretoria da empresa, mas é o CA o órgão colegiado de orientação e direção superior da Petrobras — sendo responsável, portanto, pela definição das estratégias da empresa. De acordo com o estatuto social da Petrobras, cabe ao conselho, dentre outras funções, fixar a orientação geral dos negócios e as políticas globais da petroleira, incluindo a de gestão estratégica comercial, além de fiscalizar a gestão da companhia.
E quem manda no conselho?
Dos onze atuais membros do conselho da Petrobras, seis foram indicados pela União: Márcio Weber (o presidente do colegiado), José Mauro Coelho, Murilo Marroquim, Sônia Villalobos, Luiz Henrique Caroli e Ruy Schneider. As outras cinco cadeiras são ocupadas por representantes dos empregados (Rosangela Buzanelli) e dos acionistas minoritários: Juca Abdalla, Marcelo Gasparino, Francisco Petros e Marcelo Mesquita.
A demissão de Coelho forçará uma nova eleição para o CA da Petrobras. Isso porque a destituição de qualquer membro eleito por voto múltiplo, como ocorreu em abril, implica na destituição de todos os demais conselheiros eleitos pelo mesmo mecanismo — no caso, Weber, Marroquim, Villalobos, Caroli, Schneider, Gasparino e Abdalla.
O voto múltiplo:
Quando o voto múltiplo é acionado, a chapa apresentada pelo governo é desfeita. Nesse caso, são eleitos os nomes mais votados individualmente, e não em bloco, dentre os nomes indicados pelo controlador e pelos minoritários. Em abril, por meio desse mecanismo, os investidores se articularam e conseguiram deslocar dois nomes indicados pela União e, assim, aumentaram a representatividade dos minoritários no colegiado.
A nova eleição para o conselho, ainda sem data marcada, será uma oportunidade para que o governo busque nomes mais alinhados aos seus planos. É do jogo: o presidente da República pode indicar a maioria dos conselheiros e o presidente da estatal e, assim, exercer influência indireta sobre a administração da empresa.
Há regras, no entanto, para a indicação de conselheiros.
O decreto nº 8945/ 2016, que regulamentou a Lei das Estatais, veta a indicação, para o CA, de:
- representantes de órgão regulador;
- ministros, secretários estaduais e municipais;
- funcionários comissionados na administração pública federal, direta ou indireta;
- dirigentes estatutários de partido político e de parlamentares, ainda que licenciados;
- parentes consanguíneos ou afins até o terceiro grau das pessoas mencionadas acima;
- pessoas que atuaram, nos últimos três anos, na estrutura decisória de partido político;
- pessoas que atuaram, nos últimos três anos, na organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;
- pessoas que exerçam cargo em organização sindical;
- pessoas físicas que tenham firmado contrato ou parceria, como fornecedor ou comprador, de bens ou serviços de qualquer natureza, com a União, com a própria estatal e subsidiárias, nos três anos anteriores;
- pessoas que tenham ou possam ter qualquer forma de conflito de interesse com o controlador ou com a própria estatal;
- e pessoas que se enquadrem em qualquer uma das hipóteses de inelegibilidade.
Os limites do conselho
A Lei das Estatais (nº 13.303/2016) diz ainda que o acionista controlador deverá preservar a independência do Conselho de Administração no exercício de suas funções. Além disso, mesmo indicado pela União, um conselheiro de administração pode atuar de forma independente.
A figura do conselheiro independente foi criada para assegurar que o CA não seja uma mera extensão do controlador, além de oferecer uma visão externa para a companhia e dar voz aos minoritários. Na última eleição para o CA da estatal, em abril de 2022, a União conseguiu emplacar seis membros no colegiado, sendo cinco deles autodeclarados independentes. O governo, contudo, pode rever as indicações para a próxima eleição. O estatuto da Petrobras exige que ao menos 40% dos membros do conselho sejam independentes.
Além disso, todo conselheiro tem responsabilidades definidas pela Lei das S.A. (nº 6.404/1976). Dentre elas, deve “exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa”. Também não podem se omitir no exercício ou proteção de direitos da companhia.
Entre 2011 e 2014, no governo de Dilma Rousseff, a petroleira controlou preços para conter a inflação. Embora tenha acumulado, nesses quatro anos, um lucro de R$ 56,25 bilhões, a estatal operou, em todo o período, com fluxo de caixa livre negativo — indicador importante para medir a saúde financeira da empresa. Isso significa que a companhia precisou recorrer a endividamentos para manter o funcionamento do negócio. A conta chegou quando, a partir de 2014, o preço do petróleo começou a cair e a petroleira entrou em crise financeira.
Ex-conselheiros da Petrobras, da época do governo de Dilma, chegaram a ser processados na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), mas, ao fim, foram absolvidos em 2021. A acusação entendia que houve falha no dever de lealdade dos conselheiros por terem induzido investidores a erro ao retardar decisão sobre mudanças na precificação.
Entre os acusados estavam o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, a ex-ministra do Planejamento e ex-presidente da Caixa Miriam Belchior e o ex-presidente do BNDES Luciano Coutinho. Além deles, respondiam ao processo os ex-conselheiros Francisco Roberto de Albuquerque, Marcio Pereira Zimmermann, Sérgio Franklin Quintella, Jorge Gerdau Johannpeter e José Maria Ferreira Rangel.
Ainda há processos na Justiça Federal, em primeira instância, contra alguns dos ex-conselheiros.
Os limites do presidente da República
A interferência do governo sobre a administração da Petrobras está regida legalmente por um tripé formado, basicamente, pela Constituição, pela Lei das S.A. e pela Lei das Estatais.
O artigo 117 da Lei das S.A. cita que o acionista controlador pode responder por abuso de poder — quando, por exemplo, adotar “políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos que trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia”.
A mesma lei diz que essas atividades econômicas devem ser desenvolvidas em caráter de livre competição com outras empresas, em função das condições de mercado.
A mesma legislação ressalva no artigo 238 que o controlador poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação.
O objeto social da Petrobras, definido na Lei do Petróleo (nº 9.478/1997) é “a pesquisa, a lavra, a refinação, o processamento, o comércio e o transporte de petróleo proveniente de poço, de xisto ou de outras rochas, de seus derivados, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, bem como quaisquer outras atividades correlatas ou afins, conforme definidas em lei”.
Desde o controle de preços exercido pela Petrobras, no governo de Dilma, a legislação e a governança da petroleira mudaram e estabeleceram algumas amarras quanto à orientação das atividades da estatal pela União.
A Lei das Estatais, em seu artigo 90, diz que “ações e deliberações do órgão ou ente de controle não podem implicar interferência na gestão das empresas públicas e das sociedades de economia mista a ele submetidas nem ingerência no exercício de suas competências ou na definição de políticas públicas”.
A mesma lei, em seu artigo 8, parágrafo 2º, estabelece ainda que quaisquer obrigações e responsabilidades que a estatal assuma “em condições distintas às de qualquer outra empresa do setor privado em que atuam deverão”:
- estar claramente definidas em lei ou regulamento, bem como previstas em contrato, convênio ou ajuste celebrado com o ente público competente, observada a ampla publicidade desses instrumentos;
- ter seu custo e suas receitas discriminados e divulgados de forma transparente.
O estatuto social da Petrobras complementa que a empresa pode ser orientada pela União a assumir obrigações ou responsabilidades “em condições diversas às de qualquer outra sociedade do setor privado que atue no mesmo mercado”, desde que a petroleira seja ressarcida por isso.
Nada impede que a União articule, via conselho de administração, a revisão desse ponto no estatuto. Caberia por lei ao governo, contudo, dar transparência aos custos incorridos pela Petrobras num eventual controle de preços.
Berman também não acredita que haja impeditivos legais para a revisão da política de preços da estatal, de forma a manter o alinhamento ao mercado internacional dentro de uma perspectiva de médio e longo prazos – ora segurando o repasse de picos, ora mantendo os preços acima da referência à paridade internacional para compensar.
“É difícil dizer se há prejuízo para a estatal, com essa política, se a lei não estabelece um recorte temporal para análise das perdas e ganhos”, afirma.
Ele também alega que o não alinhamento ao preço de paridade de importação (PPI), a curto prazo, não necessariamente se traduz em prejuízos à estatal – e sim, renúncia de receitas.
- Troca na Petrobras tem Guedes de volta e possível trava nos reajustes A ideia é que, se o preço internacional variar dentro de uma faixa pré-estabelecida, a companhia ficaria impedida de praticar reajustes
A Constituição e os órgãos de controle
Nenhuma lei se sobrepõe à Constituição e, nesse caso, há diferentes interpretações sobre uma possível intervenção sobre os preços da Petrobras.
A Carta Magna de 1988 cita a livre concorrência como um dos princípios da ordem econômica. Ao subsidiar preços dos combustíveis, a estatal estaria, portanto, na visão de concorrentes da petroleira, ferindo o equilíbrio do mercado nacional — que, desde o governo do PT vem passando por movimentos de abertura.
Na época em que controlava preços, no governo Dilma, a Petrobras era monopolista de fato no abastecimento — situação que não é mais a realidade atual, desde que a estatal passou a conviver nos últimos anos com a presença dos importadores privados e, mais recentemente, no fim de 2021, com a concorrência da Acelen, que comprou a Refinaria Landulpho Alves (RLAM), na Bahia, e passou a deter 13% da capacidade nacional de refino. Atualmente, a Petrobras responde por abastecer cerca de 80% do diesel no mercado brasileiro.
A própria Constituição, no entanto, diz, em seu artigo 173, que a “exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”. Na visão de Berman, a interpretação desse artigo abre espaço para intervenção do governo, de forma excepcional, em favor do interesse público.
O debate, nesse caso, é se o atual momento de escalada dos preços internacionais — agravada pela guerra na Ucrânia — configuraria um caso excepcional, dentro de uma indústria que vive de ciclos de preços; e se a intervenção estatal deveria ser limitada à Petrobras ou direcionada para uma política de subsídios estruturada e isonômica, de forma a contemplar também os demais produtores e importadores, como ocorreu em 2018.
Nesse ponto, cabe citar a posição dos órgãos de controle aos quais a Petrobras responde. A estatal assinou, em 2019, um compromisso com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), para venda de oito refinarias — equivalentes à metade da capacidade de refino nacional.
O acordo define que, até a conclusão da alienação dos ativos, a Petrobras deve demonstrar “isonomia competitiva aos demais participantes do mercado”.
Na visão dos importadores, representados pela Abicom, esse compromisso só é possível com o alinhamento ao preço de paridade de importação (PPI). Sem isso, não há atratividade para os tradings privados — o que traz riscos, reconhecidos pela própria Petrobras, ao abastecimento.
O Tribunal de Contas da União (TCU) pondera que a eventual utilização da estatal para fixação de preços abaixo da paridade internacional, sem os devidos ressarcimentos por parte do Estado, “configura-se como desvio de finalidade” e pode ser contestada por investidores e levar a “ajuizamentos de ações coletivas no Brasil e no exterior, com potencial de causar enormes prejuízos à Petrobras e à União”.
“Em algumas oportunidades, a fixação de preços abaixo da paridade internacional já gerou renúncias de receitas e perdas contábeis bilionárias na Petrobras, o que, juntamente com investimentos malsucedidos por problemas de corrupção e planejamento, ameaçou seriamente a sua sustentabilidade econômico-financeira, com alto nível de endividamento e aumento expressivo do risco de crédito e insolvência nos anos que se seguiram… O monopólio no refino expõe a Petrobras a riscos de ingerências indevidas na definição dos preços dos combustíveis por grupos de interesses”, cita o TCU, no relatório recém-publicado de fiscalização sobre a venda da refinaria RLAM (na íntegra, em .pdf)